As batidas do coração de Pierre
funcionavam como um relógio para mim.
3 por segundo.
180 por minuto.
Eram a prova gritante de que ele ainda
estava acordado, a despeito do que Ellie ordenara. Ele estava deitado sobre um
túmulo, com os olhos apertados de forma dramática, enquanto eu tentava ignorar
seu cheiro. Aquele cheiro de sangue.
- Kat?
- Ele perguntou depois de um tempo, arriscando abrir um olho e depois o
outro.
- Sim?
- Mamãe demora?
- Não muito, Pierre. Durma como ela
mandou e tudo vai ficar bem.
Eu sabia que ele estava com medo, mas
não conseguia me concentrar nisso. Tudo que eu sentia era sede.
Um dos lados positivos de ser humano ou
demônio (ou os dois) é que você tem todos esses sentimentos para distrair da
necessidade de se nutrir.
- Kat? – Ele chamou outra vez, soando
cansado, mas nervoso.
Esforcei-me para ser pelo menos
condescendente. Já que na idade dele eu tinha visto coisas muito piores do que
as que aconteceram naquela noite, de forma nenhuma conseguiria ser
compreensiva.
- Sim, Pierre?
- De onde criaturas como nós viemos?
Precisei de um certo esforço para me
lembrar que ele era meio íncubo. A sede era tanta que tudo que eu conseguia ver
era seu lado humano. E na floresta, nem sinal de Ellie. Saltei para o lado de
Pierre e prendi a respiração.
- Depois da criação do mundo, quando
Adão ainda habitava o Jardim do Éden sozinho, Lúcifer enviou uma de suas crias,
Lilith, para seduzir Adão e destruir o jardim. Deus então criou Eva, frustrando
os objetivos de Lilith, que foi chamada de volta ao inferno e recebeu uma
punição: Todos os dias daria a luz a 1000 filhos e filhas – íncubos e súcubos.
Esses demônios cumpriram os mandamentos que Lilith não cumpriu: seduzir e
destruir. Eles possuiriam humanos e copulariam com eles criando crianças que trariam
as pestes. E assim nasceram bebês como você, Pierre.
- E quanto aos vampiros, Kat, de onde
eles vêm? – Disse uma voz vinda da floresta.
- Da Áustria, Ellie. – respondi
ironicamente.
A silhueta de Ellie, carregando um bolo
de corpos amassados, finalmente aparecia à luz da lua. Pierre já ressonava.
Atirei-me na direção de Ellie, mas seus olhos faiscaram, avisando para manter
distância e responder a pergunta. Eu suspirei.
- Um dia, um íncubo enviado a terra
possuiu um homem chamado Claudius. Ele costumava ser rei da Romênia na época em
que a terra tinha um nome que eu não consigo pronunciar. Uma vez tendo possuído
o íncubo, conheceu Cíntia, esposa de Claudius e se apaixonou por ela. – Nesse
ponto eu fiz uma careta - Como não queria destruir sua vida, ele voltou ao
inferno e pediu a Lilith para que fizesse dele humano. Sua mãe concordou, mas
sendo transformado em humano ele perdia todos os direitos que tinha no inferno.
Ele abandonou o hospedeiro e recebeu um corpo que correspondesse a aparência de
sua alma. Ao ser desprezado por Cíntia, que sofria pela perda definitiva do
marido, ele implorou aos demônios do inferno que lhe concedessem vingança. Seu
pedido foi negado diversas vezes, até que resolveram fazer uma concessão. E ele
foi transformado no primeiro vampiro: ganhou beleza e imortalidade, entre
outros poderes, mas foi sobrepujado pelos que antes eram seus irmãos e recebeu
três ordens...
- Multiplique, destrua, mantenha-se
longe. – Ellie completou sorrindo e me atirou um dos corpos. Menos de 30
segundos depois ele estava atirado sobre a pilha de ossos atrás do túmulo onde
eu estava.
- Não vai beber? – Perguntei olhando os
outros corpos nos braços dela.
- Já bebi. – Ela pegou um dos corpos e
colocou do lado de Pierre. – Essa aqui não tem muito sangue aproveitável, mas
imagino que seja sua.
Enquanto Ellie se afastava e levava o
outro corpo em direção à arvore, a lua iluminou o rosto pálido sobre o túmulo.
- Sophie! – Exclamei sem poder me
controlar. – A Danse Macabre foi para
ela.
- Foi o que eu pensei também. – Ellie
disse terminando de pendurar o outro corpo na arvore. – Então eu acho que
quando ela acordar vai querer deste aqui.
Quando Ellie pulou da arvore bem atrás
de mim e eu vi o outro corpo, eu entendi o que tinha acontecido naquela noite.
- Alguma parte da história sobre o
surgimento de vampiros que você contou é verdade? – Ellie disse, tão perto que
sua respiração jogava fios do meu cabelo contra o rosto.
- Não. – Respondi devagar, pensando na
dança que assustara Pierre mais cedo.
- Qual é então?
Por um minuto, o cemitério inteiro
estava silencioso. Os únicos sons vinham do corpo ressonante de Pierre e da
respiração lânguida de Ellie em minha nuca. Engoli em seco antes de sussurrar:
- Alguns segredos deveriam nunca ser
revelados.
As Crônicas de Kat:
Danse Macabre
Entre novembro de 1864 e janeiro de 1873, Kat e Ellie permaneceram quase
fora do radar. Com exceção de alguns ataques ocasionais a vilarejos, elas se
dedicaram à criação de Pierre, por isso as anotações de Kat durante esses anos
resumiam-se ao desenvolvimento da criança demônio.
Com 8 anos então, Pierre já cometera mais de 5 assassinatos em massa, já
sabia ler e escrever e sua dieta resumia-se em frutas e cereais e algum sangue
ocasional que não o nutria, mas fazia com que se sentisse parte da família.
Verdant, França
12 de janeiro de 1873
Diário de Sophie
Magnólia me chama lá em baixo, mas eu
estou ignorando. Sei que tudo isso é só um teatro e que, na verdade, ela não
quer que eu desça. A versão de mim que ela lentamente tece diante dos olhos do
Barão causa uma impressão muito melhor do que qualquer aparição minha pode
causar.
Já faz 10 dias que o Barão busca por
esposas entre as famílias nobres da cidade. E com Deborah e minha irmã já
mortas e titio e Magnólia não tem filhos, eu sou a última que pode defender o
sangue Hass para as próximas gerações.
Nem sei o que tem de demais no sangue
Hass.
Diário de Kat
Sempre quis conhecer Verdant – o
vilarejo no norte da França onde 20 mil bruxas foram queimadas no século IX,
logo no início da Inquisição, sempre me encantou. Mil anos depois a cidade
ainda é vista como amaldiçoada. E realmente é.
Não é preciso ser um gênio para
entender maldições de bruxas mortas em nome da magia. Elas são mártires. O seu
sacrifício protege seu sangue e amaldiçoa o sangue de todos que tentarem mal
contra eles. E já que de acordo com os relatos - nos quais eu não exatamente
acredito - todas as bruxas da cidade foram mortas, sobrou bastante sangue cheio
de maldição.
Estamos instalados no cemitério da
cidade porque por algum motivo Pierre dorme bem em túmulos. Eu e Ellie nos
revezamos na caça, tomando cuidado com quem matamos. Sempre existe a chance de
uma bruxa ter escapado e passado a magia a diante e se tem uma coisa que eu
aprendi com a minha mãe é: Não mexa com a vida de bruxas. Jamais.
14 de janeiro
Diário de Sophie
Estou exausta, mas de certa forma,
feliz. O barão me escolheu!
É claro que escolheu.
Ele disse que jamais viu rosto tão
angelical, moldurado por cabelos tão belos e colorido por olhos de cor tão rica
em todas as suas viagens pela Europa! Exatamente essas palavras. Sei porque não
posso esquecer o momento em que ele se ajoelhou em minha frente e me entregou
um anel, que dizia ter pertencido à todas as suas antepassadas nos últimos, com
uma enorme pedra de diamante azul e pediu para que eu fosse só sua.
Mas não sou ingênua. Sei que isso tudo
foi muito bem ensaiado por ele e sua mãe. Não existem tantas nobres assim em
Verdant e as que existem estão comprometidas com nobres de maiores títulos e
mais ricos que ele. Então fique com Sophie Hass ou fique sozinho!
Na verdade, eu não me importo que
Sebastian – ele já deixou que o chamasse assim – me ache que a criatura mais
tenebrosa de toda França. Eu serei baronesa! Terei um nome que é nobre desde a
época de Joanna D’arc (Sua família recebeu esse título pela ajuda durante a
Guerra dos 100 anos). Isso é muito mais do que Deborah jamais
Sei que Magnólia partilha de minha
felicidade por ir embora. Ela finalmente vai se livrar da imprestável que é
razão para viver desconfortável em sua própria casa.
Hoje fui tirar minhas medidas, ainda
para o vestido de noivado. O baile que o anunciará está marcado para 7 de
fevereiro. Parece longe, mas o casamento será logo em seguida, no fim do mês.
Meu vestido é longo e azul com uma
abertura de vermelho vivo no peito, que a costureira diz valorizar meu tom de
pele. À noite eu sei que vai parecer poderoso.
Pensando agora, lembro que aconteceu
uma coisa esquisita quando eu saía da costureira. Magnólia ficou para trás
discutindo seu próprio vestido e eu fiquei na soleira da porta, olhando o
movimento na banca de frutas do outro lado da rua. De repente, meus olhos se
cruzaram com os de um garotinho.
Ele era alto, pálido e tinha cabelos
muito escuros. Eu daria mais ou menos uns 10 anos a ele. Ele estava preso à
saia de uma garota mais alta que estava de costas para mim, com o rosto meio
escondido.
Foram seus olhos que me chamaram
atenção. Eram de um azul escuro, cor de noite, mas de uma intensidade cruel que
não tinha nada de infantil. Eles fizeram algo dentro de mim vibrar como se me
lembrando das minhas raízes mais antigas. Como minha irmã costumava fazer com
seus olhos azuis.
O garotinho apertou a saia com mais
força. A frieza agora era confusão e medo. A moça então se virou. Como era
bonita! Os cabelos escuros caíram em cascata sobre o rosto de uma forma que me
deixava com vontade de tocá-los. E aquele rosto! Tão suave!
Até que se destorceu e a fúria que eu
vi ali por um momento me fez recuar. Então ela pegou o garotinho no colo e ele
apontou um dedo para mim. Por reflexo levantei dois dedos em sua direção. Então
ele começou a chorar, como se eu o estivesse torturando.
E no instante seguinte, eles não
estavam mais lá.
Diário de Kat
- Existem 3 tipos de pessoas nas quais
demônios não podem tocar: sacrifícios, pessoas protegidas por sacrifícios e
frutos de incesto.- Foi isso que eu respondi para Ellie quando ela me contou
sobre o incidente na banca de frutas.
- Por que frutos de incesto? – Ellie
perguntou com Pierre, ainda assustado, no colo.
- Ao contrário do que muitos pensam, a
união entre dois seres é a mais sagrada de todas e no incesto ela é maculada,
fazendo do fruto dele tão sujo que se torna intocável. Por isso as bruxas
mantinham “o sangue puro”. A expressão certa seria “o corpo fechado”. Demônios
não podem tocar sua alma, só o seu corpo, a menos que a pessoa assim decida.
Uma bruxa na qual demônios não podem tocar é uma bruxa poderosa.
- Será que ela...?
- Não dá para saber. Eu prefiro
acreditar na segunda opção. Se ela é descendente de qualquer uma das 20 mil
bruxas que se entregou em sacrifício, ela é protegida de ações externas.
- Mas é um feitiço de mil anos...
- Que parece está se desgastando, ou se
quebrando, caso contrário Pierre estaria pior...
Com isso, Ellie ficou em silêncio. Eu
levantei meus olhos para ela.
Eram incrivelmente raras – considerando
que eu passava todos os dias com ela - as vezes em que eu podia admirar a
vampira que Ellie se tornara. Ali, parada no escuro, com os olhos pensativos
brilhantes e apenas uma parte dos dentes à mostra Ellie poderia ser musa de
qualquer pintor renascentista. Eu sabia que, para Pierre, ficar no colo dela
era como se pendurar em qualquer estátua dali, mas é o que acontece quando se é
criado por vampiros. E a frieza de Ellie me fazia gostar do que via ainda
mais. Ela é perfeita como uma obra de
arte perfeitamente moldada por mim e ninguém mais. Ela não se parecia com um
anjo (como dizem que eu pareço), mas sim com a razão principal do desejo de
alguém.
À luz da lua, eu podia esperar que os
ossos dos túmulos se erguessem e viessem reclamar sua Elenore. Não fariam isso
sem uma boa briga. Ellie é minha. Ela é meu mérito. Por mais que Pierre fosse
meu triunfo secreto, Ellie sempre foi a peça chave do meu grupo.
Um plano começou a surgir em minha cabeça,
e eu perguntei sorrindo se Ellie já estava pronta para hipnotizar alguém.
20 de janeiro
Diário de Sophie
Com a confusão do casamento e tudo o
mais, eu esqueci de registrar algo assustador que tem acontecido em Verdant:
Pessoas tem desaparecido aos pares quase toda noite. Geralmente são homens
fortes ou mulheres jovens, o que é bem preocupante.
Os anciões constantemente lembram as
lendas das forças malignas que ficaram aqui depois das mortes das bruxas, mas
estamos no fim do século XIX, é claro que ninguém os leva a sério. Eu acho que
deveriam levar. E duvido muito que alguém em Verdant saiba mais sobre forças
malignas do que eu. De qualquer forma a culpa tem recaído em alguns fugitivos
da prisão de Paris.
Agora sobre os acontecimentos de hoje:
meu tio estava no campo e encontrou um corpo. Ou melhor, ossos. Automaticamente
julgaram ser de um dos desaparecidos, mas bastou um médico colocar os olhos
para saber que era impossível. Os ossos eram muito antigos. Parecia quase
pré-históricos. Não dava para entender como ossos tão antigos tinham ido parar
no meio do campo de trigo, tão expostos, sendo que não estavam ali ontem. Minha
tia, que já estava ansiosa e agia como se soubesse de algo grave antes mesmo de
saber sobre os ossos, se lembrou então de algo: a Danse Macabre.
Danse
Macabre é a dança universal da morte, onde tudo e todos que vivem têm seu lugar
um dia. Uma lenda antiga diz que em noites de lua cheia ou de lua nova, os
representantes da Morte e as vezes até a própria se levantam e vem buscar os moribundos
para a sua dança, lembrando aos que brincam com a morte de sua inevitabilidade.
A próxima lua cheia só acontece no
início do mês que vem e a última lua nova aconteceu há 5 dias, o que faz com
que a teoria de Magnólia se perca. Além disso, a Danse só ocorre em ciclos
especiais da lua, como a da lua azul que aconteceu há
Diário de Kat – Anotações
de Ellie
Estou na escrivaninha do quarto do
Barão Noville agora enquanto ele dorme. Sinto-me cheia do meu primeiro
“irresistente” (que é como Kat chama aqueles que oferecem seu sangue de boa
vontade, mesmo que estejam hipnotizados para isso) e queria poder sair daqui,
para que fosse mais fácil resistir à vontade de matá-lo de uma vez. Mas Kat
pediu que eu ficasse aqui até que ela voltasse, então eu agradeço por pelo
menos, estar com o diário dela e poder anotar tudo o que aconteceu nos últimos
dias.
Começamos a pesquisa pela costureira.
Fingi ser a irmã mais velha de Pierre e Kat levando-os para fazer novas roupas.
Logo fiz perguntas sobre a moça de cabelos dourados que havíamos visto saindo
da loja há alguns dias. Perguntas que ela respondeu com prazer: A garota se
chama Sophie Hass e está para se casar com o projeto de nobre que dorme na cama
às minhas costas. Perdeu a mãe e a irmã em um acidente assustador há 6 anos,
coitadinha, e desde então mora com os tios. Tem 18 anos agora e é uma flor de
menina, com um rosto cuja beleza só não se iguala à da pequena na qual ela
tentava vestir em um vestido marrom tão sem graça que fazia Kat parecer uma
criança, realmente.
Quando saímos da costureira, Kat disse
que estava na hora de agir. Deixamos o cemitério ontem à noite e invadimos uma
cabana há um quilômetro do castelo onde estou que tem comida o suficiente para
Pierre.
Agora Kat está na casa de Sophie e eu
era responsável por descobrir o máximo que eu pudesse sobre o barão, mas o
idiota só sabia me encher de elogios sem sentido quando entrei em seu quarto no
meio da noite e depois cedeu a hipnose tão rápido que eu estou achando que sua
cabeça fosse completamente vazia.
Eu nunca vou entender homens, e muito
menos como já pude me interessar por eles. São criaturas tão fascináveis pela
beleza externa. E nem o sangue é melhor. Kat diz que tem algo a ver com o fato
de mulheres serem mais suscetíveis a sentimentos por isso seus corações batem
mais rápido com mais frequência, deixando o sangue mais saboroso com o passar
do tempo.
Tudo que eu sei é que preferia estar lá
fora caçando ou simplesmente ensinando algo a Pierre a estar aqui presa com
esta criatura.
21 de janeiro
Diário de Sophie
Acabei de ter uma das experiências mais
esquisitas da minha vida. E acredite, isso significa muita coisa.
Eu estava sentada na cama, escrevendo
sobre o que aconteceu ontem, quando ouvi uma batida na janela. (Aliás, percebi
agora que terminei a escrita de ontem no meio de uma frase. Eu estava em choque
com algo que pensei, mas não era nada tão importante) Como tem um galho lá que
me perturba há um bom tempo eu não me importei.
Até que as batidas se tornaram
constantes e ritmadas, então eu fui até a janela e a abri para ver o que estava
acontecendo. Fui recebida por olhos verdes que me encaravam pendurada na árvore
que fica ao lado da janela.
- Não se assuste, por favor. – a garota
disse, baixinho - Eu só preciso de um lugar para ficar.
Eu recuei instintivamente, mas foi um
erro. Deu espaço para a criaturinha saltar pela janela e pousar no chão à minha
frente.
- Quem é você? – Disse assustada, e por
alguma razão, pensando em feitiços antigos.
Ela tentou ajeitar o vestido creme
completamente esfarrapado no corpo pequeno e delgado, mas lindo de várias
maneiras, antes de levantar os olhos para mim.
- Meu nome é Katerina. Mas você pode me
chamar de Kat. Desculpe pela aparição desengonçada, mas eu não tinha para onde
ir e eles me disseram que você me entenderia e ajudaria.
- Eles quem ? – Perguntei atônita.
- Os espíritos, ora! Eu sou a última de
uma família de bruxas também!
O choque foi imediato. Como uma garota
simplesmente pousava no meu quarto e dizia conhecer o único de meus muitos
segredos que precisava ser guardado até a morte?
- AAh, você não tem conversado com o
outro lado ultimamente. – Kat disse, demonstrando compreensão. – Você é bem
mais velha do que eu. Sua mãe tentou sacrificar você também?
Recuei mais uma vez, entrando em
pânico. Naquele ponto, já estava me forçando a acreditar que aquilo era um
sonho. Então a expressão de Kat mudou outra vez, se tornando triste.
- Me desculpe. Eu estou cansada, não
deveria falar tanto de coisas assustadoras... Há duas noites minha mãe tentou
me sacrificar. É necessário que todas as últimas bruxas de cada família que
sobrou em Verdant se sacrifique para que a maldição sobre a cidade continue
forte o suficiente. Eu fugi. Não era lua cheia ou nova, então um sacrifício...
-...Faria você voltar como vampira. –
Completei quase que inconscientemente.
- Isso! Então eu fugi. E ontem à noite
os espíritos disseram que Sophie Hass seria a pessoa certa para falar. Você
sabe como são os espíritos, eles sempre têm seus próprios motivos secretos.
Eu finalmente entendi. Ela era só uma
garotinha, fugindo com medo da própria mãe e sozinha. Exatamente como eu, seis
anos atrás.
Eu a ajudei a tomar banho e emprestei
roupas que ficaram enormes, mas confortáveis para dormir. Então arrumei um
canto para que ela dormisse no quarto e nós duas fomos dormir.
Esta manhã, ela não estava em lugar
algum.
Diário de Kat
Cheguei à casa do Barão e encontrei uma
Ellie impaciente, à beira da janela, e a vista de qualquer um que subisse a
rua. Assim que me viu, ela saltou da janela, se transformou e pousou ao meu
lado.
Não sei se eu já disse isso, mas Ellie
pode se transformar em morcego. A transfiguração de vampiros está ligada a
encantamentos e a condições que eu ensinei a ela logo nos primeiros meses que
passamos juntas. Ela dominou a técnica, como se fosse feita para isso.
- Você é completamente insana? –
Perguntei enquanto ela arrumava o vestido que naturalmente tinha deslizado
durante a transformação.
- Ainda não, mas estava prestes a
ficar.
Balancei a cabeça e comecei a andar.
- Você se entedia muito fácil, Ellie. E
vai acabar nos metendo em alguma encrenca.
- Quanta confiança! Até parece que não
lembra de quantas vezes eu nos salvei de encrencas que você arranjou.
- Eu me lembro, mas Verdant é diferente
de qualquer outro vilarejo que já visitamos. Tem sangue de bruxas espalhado por
cada canto dessa cidade. É muito mais poder do que eu já vi. Um passo em falso,
leva direto para um abismo.
Com o silêncio que se seguiu eu fui
forçada a me virar para Ellie.
- Por que você sempre fica tão absorta
quando fala sobre bruxas?
- Porque eu sou uma, oras!
- Não, Kat. Você está morta agora. Você
é uma vampira.
O tom condescendente, o mesmo que ela
usa com Pierre, fez meu estômago revirar.
- Morta ou não, eu tenho sangue nas
veias e meu sangue é de bruxa. Eu ainda sei feitiços, invocações, evocações e
ainda posso chamar a natureza... Ela apenas não me reconhece mais como parte
dela.
- Kat...
- Você não quer discutir isso.
Ela suspirou delicadamente.
- Você tem razão. – Disse – E como foi
com Sophie?
Eu sorri.
- Por que vocês órfãs estão sempre tão
desesperadas por alguém com quem se identificar e manter por perto que ignoram
coisas básicas como “deixar alguém desconhecido entrar em casa no meio da noite
é perigoso” ou “se tem sangue na roupa de alguém que não está machucado, o
sangue provavelmente é de outra pessoa”?
- Ei, não me venha com essa de “vocês
órfãs”, Katerina! Ambas sabemos que você me hipnotizou o bastante para desses
detalhes passarem despercebidos.
- É esse o problema com Sophie: Ela não
pode ser hipnotizada. Isso e o fato de ela odiar vampiros.
- Por que ela odeia vampiros?
- Isso eu não descobri, mas uma coisa é
certa: aquela garota esconde algo que faria metade dessa cidade colapsar.
O que eu não entendo é como. Eu tenho
muitos segredos. Meu tempo na Romênia e na Ucrânia é tão obscuro quanto uma
noite sem estrelas. Mas eu sou uma vampira. Se assassinato é meu instinto
básico, é de se esperar que existam muitas coisas piores na minha história.
Agora que diabos uma garota que vive em
uma cidade minúscula e que perdeu a mãe e a irmã e agora vive quase como uma
criada com os tios e que vai se casar com um homem que quase matou de tédio
alguém que já está morta pode ter a esconder?
Tudo bem, ela é uma bruxa. E esconde
isso, mas foi como bruxa que eu apareci para ela e ela continuou esquiva e
arredia, até que viu a si própria em mim e me acolheu como uma irmã.
Foi fácil descobrir que ela era bruxa.
Bastou o sobrenome, Hass. Eu li um diário de uma Hass que se envolveu com magia
negra e voltou como vampira, mas foi morta por caçadores. Então, quando eu fui
conhecer Sophie, eu acrescentei o detalhe do sacrifico e finalmente tive
certeza de que o feitiço em Verdant está se quebrando.
Chegamos à cabana quando o sol já
nascia. Pierre ainda dormia, espalhado sobre o sofá, então Ellie o acordou e o
mandou comer, deitando no sofá, onde ele estava. Eu me deitei no chão, pronta
para ir dormir também, mas então me lembrei:
- Ellie, como foi com o barão?
- Extremamente tedioso. – Ela respondeu
com os olhos fechados, e as mãos sobre a barriga.
- Eu sei, mas eu quis dizer se você
conseguiu descobrir alguma coisa útil com ele.
- Não. Ele só sabia babar por mim e me
dizer o quanto era linda.
Não era bem uma surpresa.
- Ele está sendo forçado a se casar, se
apaixonaria até por uma cabra se isso significasse fazer da vida de Sophie um
inferno. – Disse, mostrando a lógica.
- Não acho que a mãe dele vá deixá-lo
fazer da vida de Sophie um inferno. – Ela respondeu encarando o teto.
- Por que você diz isso?
- Ela está fazendo do tudo para ter
certeza que Sophie vai se apaixonar por Sebastian, e manter fidelidade a
família deles.
- E por que? Ela é órfã, sem nada a
oferecer aos Noville além do nome.
- E do sangue de bruxa.
A lógica veio a mim como um chute na
barriga.
- Ela sabe. – Me levantei em um salto -
Se eles tiverem um filho, a família da baronesa está protegida para sempre. Mas
se Sebastian cometer qualquer erro contra Sophie... - Não completei a frase.
- Então eu sinto muito que eu possa ter
dado a Sebastian a vontade de frustrar os planos da mãe.
Olhei a bela vampira de olhos fechados,
o corpo relaxado no sofá.
- O que você fez, Ellie?
Ela abriu um sorriso, que fez a luz do
sol nascente brilhar sobre seus caninos de uma forma macabra.
- Nada que milhares de vampiras não
tenham feito antes de mim.
Eu a encarei, esperando por mais, mas
ela simplesmente se virou para o lado, dando as costas para mim. Foi quando vi
um rasgo em seu vestido que ia do início das costas até a cintura e soube o que
ela queria dizer com “que milhares de vampiras não tenham feito antes de mim”.
22 de janeiro
Poema colado no diário de
Sophie
Oceano nefasto
Que invade minha noite
E tira meu sono
Prometa-me que pelo menos esta hora
Serei eu seu o dono
Quero ouvir teu sussurro sereno
Do teu respirar
Antes que pegue no sono
Prometa-me que pelo menos esta hora
Serei eu o seu dono
23 de janeiro
É como se eu tivesse tudo que eu sempre
quis: Meu príncipe encantado, uma mãe de verdade e uma irmã.
Kat ressurgiu na noite seguinte,
explicando o motivo do seu sumiço: Ela tinha medo de que minha tia a visse em
casa e eu ficasse encrencada. Então eu expliquei que está tudo bem que ela
fique, desde que permaneça no quarto. Ela ficou por aquela noite, mas continua
escapando antes do sol nascer aparecendo só quando o sol se põe.
Ontem, Sebastian veio até aqui e me
entregou o poema que coloquei aqui. Ele disse que meus olhos não pararam de
persegui-lo durante a noite, tomando conta de sua vida inteira como um oceano
dominador. Eu achei isso tão maravilhoso. Quer dizer, ele realmente não
precisava escrever algo assim, o casamento já está encaminhado, mas ainda assim
ele o fez.
E ainda tem a mãe dele: a baronesa tem
sido como uma mãe. Ela disse que perdeu os pais quase na mesma idade em que eu
perdi minha família. Ela vem aqui e me conta histórias, discute detalhes do
casamento e várias outras coisas. Eu já a amo como uma mãe.
25 de janeiro
Diário de Kat – Anotações
de Ellie
Faz 2 dias que a criaturinha irritante
não aparece nessa casa. E ainda me força a ver o barão todas as noites.
O motivo é que agora ela quer Sophie em
nosso grupo; o mistério em torno da garota foi forte o suficiente para fazer
até Kat se encantar. Agora a vampirinha está enfurnada naquela casa,
descobrindo o máximo possível sobre Sophie e atraindo a confiança dela para
transformá-la assim que possível.
Eu a lembrei que Pierre não conseguiu
torturar Sophie, então talvez ela não possa ser transformada em vampira, mas
Kat diz que é diferente se ela quiser ser transformada e abrir mão da proteção
do sacrifício. É tudo uma questão do que Sophie quer ou deixa de querer. O
único problema é que Sophie odeia vampiros, por um motivo que nós duas nem
sabemos, então Kat tem muito trabalho pela frente.
Kat nunca transformaria alguém a força
por mais que ela pudesse fazer isso. Seria agir como a mãe dela, e isso é algo
que ela definitivamente nunca faria. Se tivesse sentimentos, Kat odiaria sua
mãe.
Minha parte no plano delicado é afastar
o barão o máximo possível de sua noiva e descobrir o que a mãe dele sabe sobre
a maldição. Isso não tem ido muito bem. Ultimamente Sebastian tem escrito
poemas sobre mim e quando sua mãe encontrou um deles, o forçou a entregar todos
eles, aos poucos, para Sophie. Este é um caso onde o medo vence o amor, porque
não importa o quanto ele esteja apaixonado pela sua musa noturna (cujo nome ele
sequer sabe) nada é maior do que o medo da fúria de sua mãe caso os planos dela
sejam frustrados - planos dos quais tudo que ele disse que sabe é que precisa
desempenhar este papel de noivo dedicado.
Kat não fica frustrada com a falta de
informações, apenas pede para que eu continue tentando. Bem, isso frustra a mim. Eu nunca tive Kat tão longe ou
tão fria. É como se Sophie fosse a única coisa com que ela se importasse agora.
Até de Pierre ela esquece.
Veja bem, isso não é ciúmes, até porque
ciúmes é um sentimento, mas pelos últimos 8 anos, nós 3 temos sido uma família,
uma própria comunidade sem segredos e agora vê-la dividindo algo com alguém de
fora é tão... Errado.
27 de janeiro
Diário de Sophie
Hoje foi a última prova do vestido do noivado e
depois passei a tarde toda brincando com Kat no jardim. Se você ignorar os
olhos, ela se parece com a minha irmã aos 10 anos, especialmente quando se
irrita.
- Sophie, - Ela chamou enquanto estávamos deitadas
no gramado – Quanto você sabe sobre o mundo lá fora? O que você conhece?
- Nada. Nunca saí de Verdant. – Respondi, com os
olhos fechados por causa do sol.
- E você nem pensa em sair?
- Como baronesa talvez eu viaje para outros países.
Eu serei rica afinal de contas. Mas não acredito que deixarei Verdant, só me
mudarei para o castelo.
- E me deixará sozinha!
Abri os olhos e me sentei olhando para ela e sendo
recebida por um muxoxo mimado do tamanho do mundo.
- Não Kat, nunca! Você é como minha irmãzinha. Irá
para a corte comigo.
- Mas eu não posso entrar para a corte. Minha mãe
ainda me procura, ficar bem a vista seria a morte para mim.
- Nós daremos um jeito. Sempre há um jeito.
Ela sorriu, mas de uma forma triste.
- De qualquer forma, não quero ficar em Verdant. Há
tanto para se ver lá fora e nem a vida eterna me proporcionaria tempo de
experimentar tudo.
Eu fiz uma careta.
- Por que você fala tanto sobre vida eterna?
- Você nunca pensou em viver para sempre?
- Você diz como um vampiro?
- E por que não?
- Por que alguém iria querer viver como um sugador
de sangue demoníaco?
- Ser vampiro é como qualquer maldição, você sacrifica
sua alma em troca de poderes incríveis... E vida eterna.
- Você ignora a parte macabra da coisa toda.
Sangue, homicídios, uma vida puramente noturna. Você mesmo fugiu disso quando
veio até aqui, Kat.
- É, mas eu repensei minha escolha. Como eu disse,
é uma maldição. Mas vampiros geralmente estão ocupados demais aproveitando o
que é ser um vampiro para se importar com essa parte do sangue e dos
homicídios.
Eu a olhei, incrédula. No meio da discussão, os
olhos verdes brilhavam como folhas ao sol.
- Por que você gosta tanto de vampiros? –
Perguntei.
Ela ergueu o queixo sendo petulante.
- Por que você não gosta?
Nesse momento, Magnólia saiu pela porta dos fundos,
me gritando. Quando olhei novamente, Kat não estava mais lá.
28 de janeiro
Diário de Kat
Eu estava
colocando Pierre para dormir, quando Ellie entrou na cabana, ruidosamente,
carregando o corpo gorducho do banqueiro da cidade nos ombros. Eu o ataquei
antes mesmo que ela o soltasse.
Quando terminei,
ela estava sentada no sofá com as mãos sobre o colo, olhando para mim com os
olhos cor de mar tão gelados que poderiam transformar a casa inteira em um
iceberg.
Fui até o sofá e
me sentei ao seu lado. Como ela continuava a me encarar, eu me deitei em seu
colo arregalando os olhos de uma forma que só a vampira mais gélida do mundo
ousaria ignorar. Infelizmente, a vampira mais gélida do mundo é Ellie.
- Você pode, por
favor, me perdoar? – Perguntei, pensando no que ela escreveu aqui.
- Me diga o que
está acontecendo e eu posso considerar não arrancar a cabeça da sua amiguinha
Hass.
- Você não faria isso...
Ela nem piscou.
- Ah, eu faria sim. Caso você tenha se
esquecido, eu sou uma vampira Katerina, e vampiros são demônios sem alma. Sabe
o que isso significa? Que nós não temos nada a perder.
Mas eu pisquei, várias vezes.
- Espera... Você tem medo que me torne
menos vampira por passar mais tempo com Sophie do que com você e Pierre? É
sobre isso que é todo essa conversa de “somos vampiras”?
Ela não respondeu. Então eu peguei seu
rosto pelas bochechas com as palmas das mãos e puxei-o na minha direção.
- Ellie, eu SOU uma vampira! Uma
vampira! Eu pertenço a você e a Pierre, não a Sophie.
- Não foi isso que você disse há alguns
dias. – Ela disse ainda com o rosto entre minhas mãos, os olhos me
surpreendendo com a frieza que ainda conseguiam passar.
- É uma condição vampírica. Uma
obsessão quase amorosa por algumas pessoas. Não existe condição mais forte do
que vampiros ligados por laços de sangue, Ellie. Nada para o vampiro substitui
o sangue. É ele que no faz pertencer a alguma coisa... Pertencer... a uma
família. – Eu fiz uma longa pausa. As peças se encaixando devagar e tudo
fazendo sentido. O que me perturbara o dia inteiro, quase me fazendo desistir
de transformar Sophie finalmente tinha uma solução. – Ellie, você é brilhante!
Ela finalmente desvencilhou o rosto das
minhas mãos.
- O que eu fiz?
- Finalmente descobri como transformar
Sophie!
- Como você pretende convencê-la a
isso? – A pergunta soou amarga.
Olhei nos olhos de Ellie, novamente sem
conter a admiração por ela. A sensação de lembrar que eu a criei é tão
inebriante que eu mal conseguia acreditar que estava prestes a fazer isso outra
vez.
Depois de um momento, eu peguei o braço
de Ellie delicadamente e deslizei a unha do indicador pela veia que aparecia na
parte interior do cotovelo até seu pulso, numa cicatriz de mordida. Esse tipo
de cicatriz nunca vai embora por completo.
- Com a mesma coisa que mantém nós duas
juntas. Sangue.
1º de fevereiro
Diário de Sophie
Aqui está registrado o início de minha dor,
para que quando sentir isso outra vez, eu possa me lembrar de que tudo é
finito.
Sinto-me febril. De uma forma dolorosa
e sufocante. A última coisa da qual sinto vontade, é de levantar da cama e
ainda assim preciso fazê-lo toda manhã.
Digo a mim mesma que me tornarei
baronesa, que a mãe de Sebastian será como minha mãe e que meu marido tão doce,
será meu melhor amigo, mas tudo soa como um eco em uma alma perturbada, que
começa a definhar.
Kat foi embora. Por definitivo se é
verdade que vampiros podem sangrar até a morte e eu mal posso acreditar que
sinta tanta falta dela. De uma vampira! É como perder minha irmã para essa
força maldita, outra vez.
Tudo aconteceu há 2 dias, quando nós
duas fomos juntas pegar meu vestido e sapatos na costureira. Deixei Kat em uma
esquina escura, fora da vista de intrometidos e fui até a loja. Quando voltei a
encontrei caída no chão, cercada de sangue e com um corte na barriga.
- Sophie... Um cachorro... eu não o vi.
– Ela disse com a voz cheia de dor e os olhos quase fechados.
Eu fiquei em choque. Não havia métodos
de tirá-la dali sem agravar aquele ferimento, já enorme.
- Sophie... – Ela disse, parecendo
exausta – Você pode me salvar... Escute, eu preciso que se mantenha calma,
certo? Eu preciso do seu sangue. – Ela engasgou e gemeu de dor. – Ele vai me
curar... Porque eu sou uma vampira.
Então ela fechou os olhos e abriu os
dentes, mostrando um sorriso levemente macabro.
Nesse ponto Sophie desmaiou deixando o diário e a caneta cair sobre o
assoalho. Quando acordou, nenhum dos dois estava mais lá. O mesmo só foi
encontrado mais de um século depois, um pouco antes desta narrativa começar.
Esta foi efetivamente a última anotação de Sophie em seu diário.
2 de fevereiro
Diário de Kat
Eu nunca deveria ter mexido com o que
eu não conhecia. Até Ellie me avisou.
Eu ainda podia sentir o olhar chocado
de Sophie em meu rosto, quando eu contei tudo para ela. Então ela caiu em um
choro histérico.
- Não posso ajudar você, Kat. Eu não
posso...
Estiquei devagar as mãos até as dela e as
apertei. Eu estava pronta para a raiva, o desespero, até o choque absoluto, mas
aquela histeria me surpreendeu. Lembrou-me que eu não sabia muito sobre ela,
mas as respostas estavam prestes a chegar.
- Meu corpo é fechado, Kat. Eu sou
fruto de um incesto. Você não pode tomar meu sangue.
Ela continuava chorando enquanto eu via
meu plano desmoronando. Eu não podia transformá-la sendo ela o que era. Ou não
deveria... Mas fiz de qualquer jeito, quando Sophie beijou minha mão
completamente ensanguentada, pedindo perdão por não poder me salvar. Com isso
ela engoliu sangue e não é preciso muito para um batismo definitivo.
No momento em que ela fez isso, eu
senti meu sangue congelar nas veias. Tradicionalmente, frutos de incesto
possuem sangue e corpo impuro e como essas partes são as únicas que um demônio
(em todas as suas divisões e concessões, o que inclui vampiros) toca, nós não
podemos tocar em um fruto de incesto. Mas mesmo que um demônio não possa tocar
alguém, ninguém pode impedir esse alguém se tocar no demônio. E é por isso que
alguns deles se tornam vampiros, por vontade própria. Eu só não acredito que a
última pessoa que eu imaginaria que se transformaria em vampira por vontade
própria, acabou fazendo isso. E eu nunca soube por que ela odeia vampiros.
Pedi para que Sophie fosse embora,
porque não queria que ela me visse morrer. A despedida foi complicada e longa e
eu já estava começando a sentir a perda de sangue. Assim que ela foi embora e a
perdi de vista ataquei a primeira pessoa que encontrei na rua. Passei então o
resto da noite me lembrando de tudo que sabia sobre frutos de incesto.
Eu já tinha lido o que acontece quando
eles se batizam: Dias e dias de dor e febre enquanto o corpo rejeita o sangue
do batismo, que se prende ao corpo e não sai. Então finalmente, o corpo morre
de exaustão e o sangue de vampiro o revive. A maioria deles volta com uma sede
de vingança assustadora contra seus criadores, mas não é isso que me perturba,
não me importo com vampiros sanguinários (até porque todos eles o são), o que
me assusta são as bruxas sanguinárias, ainda mais as que se associaram com a
Morte para amaldiçoar, que são as criaturas mais perigosas de que se sabe.
A maldição de Verdant. Todo mundo diz
que o sangue de quem ataca uma bruxa de Verdant é amaldiçoado, mas ninguém
explica o que exatamente isso quer dizer. E eu sou uma vampira! Ter o sangue
amaldiçoado pode significar... Qualquer coisa!
Prontos
para dançar?
O ruído de estalos se intensificava com o
passar dos minutos. Kat sentia um frio na espinha.
Conhecia aquele som; Ele a levava de
volta a 38 anos atrás, uma memória que ela se esforçava para apagar...
A sete quilômetros dali Sophie estava
inclinada sobre uma bacia, vomitando. A baronesa não gostava nada do que via:
com a garota Hass tão doente, seus planos iriam para o espaço. Ela precisava
ter um bebê. E viver para criá-lo.
De repente o som de cascos de cavalo
chegou a seus ouvidos, mais convidados estavam para chegar ao baile que já
havia começado. A baronesa pegou a noiva pelos ombros, afastando-a da bacia e
arrumou seu vestido dando-a uma aparência aceitável e levando-a até a recepção.
Kat esperava. Nem precisava levantar a
cabeça para olhar para a lua. Ela sabia o que estava para acontecer. Sentia em
seus ossos que um dia pertenceram a uma bruxa.
Pendurada em uma gárgula, ela ouvia os
passos de Ellie e Pierre na floresta, vindo em direção ao cemitério. Eles
fariam acampamento ali, caçariam após o baile e iriam embora de Verdant naquela
noite e da França na manhã seguinte.
Kat sabia que Sophie estava definhando
e temia a maldição, então esperava estar em um lugar onde pudesse combatê-la
quando chegasse a hora.
Sophie estava prestes a desmaiar. Já
pisara no pé do prefeito três vezes de tão tonta que se sentia. A dor já estava
a tirando do sério. Era como o inferno. Bem em suas veias.
- Você, criatura teimosa, descanse,
pois a viagem será longa e você está quase pesado demais para ser carregado. –
Ellie dizia a Pierre arrumando suas roupas e arrumando o lugar para que ele
dormisse.
Os estalos continuavam, cada vez mais
altos. Ellie então se virou para Kat que encarava a pilha de ossos, que sempre
estivera atrás da capela do cemitério em Verdant, com a testa franzida.
- O que foi, Kat?
Como Kat não respondia, Ellie olhou a
pilha. Aos poucos foi vendo os ossos mudarem, se tornando mais pálidos.
Brilhantes. A lua cheia tomando conta deles.
Katerina
O sussurro sibilante cortou o ar. Ellie
tinha certeza ouvira alto e claro o nome.
Katerina
o vento repetiu, mais alto. Meu
sacrifício negado.
- Kat... ? – Ellie perguntou outra vez,
encarando o rosto de anjo com a testa franzida.
- Ellie... O que acontece última
estrofe de Lenore?
Sophie já estava exausta. Mas precisava
falar com Sebastian. Estava cansada de segredos e antes do anuncio do noivado
na meia-noite, ele precisava saber a verdade.
Encontrou seu noivo conversando com os
amigos e pedindo licença o puxou pelo braço até uma varanda.
- Preciso contar uma coisa, Sebastian.
Para que você decida se realmente quer se casar comigo.
Katerina.
- Danse Macabre. – Ellie sussurrou
respondendo ao vento.
- Alguém está prestes a morrer. – Kat
disse de volta sem olhar para Ellie. – Alguém que brincou com a morte.
Os ossos começavam a se unir. Pierre
prendeu a respiração atrás de Ellie, o medo fazendo suas veias pulsarem,
desesperadas. Se ele não se controlasse estaria torturando Ellie em questão de
segundos. Kat não sentiria nada. Pierre nunca foi capaz de torturá-la. Ela era
um sacrifício.
Katerina.
- Por que eles sussurram seu nome?
- A Morte está reclamando o que perdeu
da última vez que esteve tão perto de mim.
Meu
sacrifício negado.
- Eu matei minha mãe.
Os olhos de Sebastian se arregalaram
instintivamente. A primeira badalada da meia-noite do dia 8 de fevereiro
ressoou nas ruas quase desertas. Sophie continuava dizendo tudo na lata.
- Ela precisava sacrificar a última com
o sangue Hass para reforçar a maldição sobre a cidade. Seria eu, mas eu seria
um sacrifício impuro que só resultaria em desastres. Eu sou fruto de um
incesto. Única filha de Jonah, com sua irmã Deborah. Então ela matou
Charlottie. Mas não era lua cheia ou nova, ela voltou como vampira. Ela foi
embora quando renasceu. E eu fiquei sozinha com Deborah. Deborah me culpou por
perder Charlottie. Ela me torturou. Física e mentalmente. Então eu a matei.
Coloquei fogo na casa. E ninguém sabia o que tinha acontecido com Charlottie,
então ficou registrado que as duas tinham morrido aquela noite. Em um acidente.
Terceira badalada da meia noite.
- Ellie. Para trás. Pierre, por favor,
acalme-se. Eles querem falar comigo.
Katerina.
Meu sacrifício negado. Voltou para mim?
- Eu não pertenço a você. Fui tomada.
Você sabe disso.
- Com quem ela está falando? – Pierre
perguntou alto demais.
- PIERRE! – Kat gritou sem tirar os
olhos da caveira à sua frente - CALADO. NÃO CHAME ATENÇÃO.
Katerina.
É minha agora?
- Eu já disse que não. Nunca foi a
intenção de minha mãe me entregar a você. Eu esperava que soubesse disso. A
Morte costumava ser mais esperta e menos fácil de enganar.
Os ossos sibilaram. Dezenas agora
estavam unidos, como se de mãos dadas, se aproximando do túmulo da gárgula em
que Kat estava.
Katerina.
Por que está aqui?
- Coincidência. Não é a mim que você
veio buscar. É a algum moribundo que brincou com a morte.
- Por que me conta isso? É um segredo
que deveria levar para o túmulo.
- Porque não quero que você se case com
alguém que não sabe quem é. Quero que me ame pelo que sou.
Sebastian parecia nauseado. Mais ainda
que Sophie, se é que isso era possível. Sophie não ousava levantar os olhos da
escada. Pensava na irmã vampira, em Kat, na doença, em tudo que sabia sobre ser
uma bruxa. O sino badalava ritmicamente.
- Não amo você. Nem poderia. Ainda mais
agora.
Katerina.
Por que persistes a brincar comigo?
- Porque essa é a essência de quem eu
sou. Uma aberração. Não pertenço a você. Nunca pertenci. Eu fui prometida ao
inferno antes mesmo de nascer. Eu não faço parte da Totentanz.
Ninguém
escapa da Dança da Morte. Ela é inevitável.
- Eu não escapei. Eu a recebi e a
escorracei. Eu não pertenço aos mortos.
E
aquelas as quais transformou?
- Elas são minhas. Você não pode
tocá-las.
Katerina.
Continuará a brincar?
- Vocês não têm alguém para buscar?
Kat sabia que estava vendo nada mais
nada menos que os últimos restos mortais das 20 mil bruxas mortas bem em frente
a seus olhos. Só conseguia pensar na maldição.
Última badalada.
Sebastian a segurou pelos braços,
ensandecido.
- Tudo que era preciso era que você se
apaixonasse por mim e nós tivéssemos um bebê para que nossos sangues se
unissem. E como você matou sua mãe, então você está amaldiçoada. Todo plano da
minha mãe foi para o inferno. – Então ele olhou para a escadaria a seus pés. -
Que é para onde você vai. E eu vou estar livre para me casar com ela.
Então a atirou. Sophie caiu pela escada
em cambalhotas. E foi só quando chegou ao chão que foi ouvido o claque dos
ossos se partindo...
...e indo ao chão. A Dança dos Mortos chegara ao final.
Fui acordada por dedinhos me cutucando
nos braços.
Conforme a consciência chegava, eu me
assustava com as sensações em meu corpo. Não havia mais dor. Não havia mais
enjoo. Não havia mais febre. Mas existia esse cheiro. Esse cheiro desesperador,
que fazia minha boca arder como uma sede cruel.
Abri os olhos e fui recebida por olhos
azuis e uma garganta pulsante.
- PIERRE NÃO! CARAMBA! Por que vocês
sempre renascem com vontade de atacar o garoto demônio?
Quando levantei os olhos a cena que vi
foi um garotinho preso as saias de uma moça alta de vestido azul e uma linda
vampira com rosto de anjo parada bem a minha frente com um sorriso que eu
reconheceria em mil anos.
- KAT! – Me pendurei no pescoço dela,
em um abraço apertado.
Ela me abraçou de volta, me apertando
bem firme.
- Fico satisfeita que seu último
sentimento seja seu amor por mim, Sophie.
Atrás dela, a garota resmungou. Kat se
afastou.
- Esses são Ellie e Pierre. As pessoas
que você viu em frente a banca de frutas.
Eu a olhei, confusa. Ela apenas deu de
ombros.
- Eu ainda preciso contar muita coisa.
E ainda preciso descobrir muita coisa com você. Agora, por que não aproveita e
mata a sede? Amanhã viajaremos para longe.
No momento em que ela disse sede, minha
boca voltou a queimar. Deixei um rosnado escapar, então ela sorriu e se
afastou, revelando um corpo pendurado em uma arvore as suas costas. Sebastian.
E foi aí que eu senti meus dentes pontudos contra a pele no meu próprio sorriso
macabro, pela primeira vez.
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