Acordei com um gotejar insistente na
cabeça. Isso me distraiu por um instante e, incialmente, não pensei em abrir os
olhos. Lembrei que quando eu morri estava chovendo muito e... Espera, quando eu
o quê?
Abri os olhos quando me dei conta do que
havia acontecido. O gotejar atingiu meus olhos diretamente. Praguejei ao me
sentar e esfregar os olhos para limpá-los. O liquido que respingara neles era
quente e metálico. Sangue. Por algum
motivo eu parecia saber disso antes mesmo de olhar.
Suspirei. O cheiro de sangue me distraía,
mas eu tentava ser prática. Eu havia morrido. Estava certa de que havia
morrido. Então como era possível que eu ainda estivesse ali? Em casa? Será que
eu sempre estive no inferno? Até que faria sentido.
Eu estava sentada no chão duro, encarando
minhas calças sujas de sangue e meus dedos machucados. Percebi naquele momento
que não tinha visto de onde vinha o sangue que pingara em meus olhos.
Levantei a cabeça e dei de cara com um furo
no forro que respingava sangue sem parar. Engoli em seco. Isso só podia
significar que mais gente morrera comigo.
Consegui me lembrar aos poucos do que
acontecera naquela tarde. A invasão da polícia, os tiros, a sensação de que meu
corpo estava pesado demais para minha alma... E estava chovendo, chovendo
muito.
Mas ali estava eu outra vez.
Vivíssima.
Ou pelo menos parecia estar.
Antes que eu pudesse me perguntar pela
milionésima vez que diabos estava acontecendo, alguém colocou a cabeça pela
fresta da janela, atraindo minha atenção. Olhos verde-escuro me encararam,
curiosos. Então a garotinha pôs seu corpo para dentro.
- Ah, você acordou. Pensei que eu fosse ter
que levar um corpo lá para fora. Odeio quando destroem o coração, demora tanto.
Levantei a mão para pedir que ela se
calasse. Se eu deixasse ela falaria para sempre.
- Kat, de que diabos você está falando?
- Certo. – Ela balançou o corpo para frente
e para trás, como se precisasse aliviar a tensão. – Você é uma vampira agora.
Mas eu fiz isso para salvar sua vida, então, por favor, não fique brava.
Ergui a sobrancelha, achando que ela estava
maluca.
- O que?
- Isso mesmo que você ouviu. Eu sou uma
vampira e transformei você em uma. Ora, vamos, você desconfiava.
- Eu desconfiava de qualquer coisa, eu não
sabia nada sobre você.
- Bem, agora você sabe. E precisa saber
sobre mais algumas coisas. Eu tinha prometido ao Exército que não transformaria
ninguém por impulso e também não queria transformar ninguém sem que antes ela
soubesse onde poderia se meter, mas eu não contava com uma invasão da polícia
russa à sua casa. Nem com o seu assassinato antes da hora... Deyah me disse que
eu saberia quando alguém tivesse sido feita para o Exército e eu sei que você
foi, Tatiana, eu sei.
O desespero e a falação dela me fizeram
bufar.
- Meu Deus, Kat, calma. Me explique tudo.
Depois se desespere.
Ela sorriu.
- Certo, por que não faço isso no caminho
até a minha casa? Preciso apresentar mais algumas pessoas a você.
As Crônicas de Kat:
My wild heart bleeds with yours
O encontro com Bianka trouxe novas perspectivas ao Exército,
agora com mais uma vampira - que aceitara entrar e fora aceita quase sem
hesitações. Todas estavam dispostas a fazer o possível e o impossível para que
o plano de Deyah desse certo e resolveram que depois que tudo estivesse normalizado
em relação à alma de Sophie, iriam viajar pelo mundo todo procurando pelas
vampiras certas.
Quando foram embora de Berlim, o primeiro diário de Kat, que
havia sido atualizado quase sem interrupções por duas semanas, já não tinha
nenhuma página em branco. Kat passou alguns anos sem fazer anotações e só
voltou a escrever quando Ellie lhe deu um diário novo de presente de Natal.
Genebra, Suíça
27 de dezembro de 1942
Novo diário de Kat
Há males que vem para o bem. Eu realmente
não sei de onde essa frase surgiu.
Estávamos em uma sala lotada de homens
feridos. Era um hospital improvisado na Suíça que fora criado às pressas para
receber feridos da Segunda Guerra. Havíamos ido para a Suíça justamente para
escapar da guerra por alguns anos.
As gêmeas ensinavam Anika e Naomi a fazer
malabarismos com bisturis. Ellie, Sophie, Charlottie e eu estávamos sentadas no
chão ao lado de uma maca vazia, conversando sobre o passado de Charlottie.
Kaylee não era vista em lugar nenhum, mas nenhuma de nós parecia se importar.
Kaylee evoluiu bastante depois do primeiro
ano de transformação. Na verdade, eu acho que as vampiras de Ellie (Anika e as
gêmeas) a convenceram de que todo o sangue que ela beberia e todas as pessoas
que ela mataria seriam para o bem maior, para a salvação de todos os vampiros
ou algo do tipo. Elas sabem ser convincentes quando querem.
- Uma das
minhas coisas favoritas era passar algum tempo em uma cidade agindo como uma
moradora normal. – Charlottie dizia sorrindo, enquanto Sophie fazia uma trança
complicada em seu cabelo – Eu hipnotizava alguém a acreditar que era meu pai ou
mãe e o levava para uma cidade nova. Fazia com que a cidade toda me conhecesse,
causava pânico por algumas semanas e depois matava todos é claro. Acho que fiz
isso quatro vezes em um espaço de 10 anos. Foi interessante.
Esse relato me fez pensar em como minha
vida seria se eu não tivesse sido forçada a ir para Paris e encontrado Ellie -
esse encontro foi direta ou indiretamente responsável por todas as coisas que
aconteceram depois. Provavelmente eu ainda estaria em algum lugar da Ucrânia
com alguns amigos destruindo vilas e matando pessoas. Minha mãe ainda estaria
viva. Eu seria uma vampira normal.
Fiz uma careta. Estava mais do que satisfeita com o destino que levei.
Sophie terminou a trança de Charlottie e se
levantou para esticar as pernas. Eu prestei atenção em seus movimentos, quase
surpresa em perceber que ela não parecia tão diferente do que sempre fora.
Depois que começou a aceitar as, assim chamadas, alucinações, levou menos de
dois anos para que a alma de Sophie voltasse ao controle de seu corpo.
Tecnicamente ela sempre esteve no controle, mas agora não estava mais em agonia
no Inferno. E também não está em seu corpo. É complicado entende ou explicar,
mas ela está em algum lugar por aí, controlando o corpo de longe e deixando-o
indestrutível.
Sophie não mudou muito depois de ter a alma
de volta, exceto por duas razões: agora ela sente e não precisa mais de sangue
ou qualquer outro tipo de nutrição. Sentir não fez dela sentimental. E não
precisar de sangue não fez dela menos cruel. Sophie passou por muita coisa, em
vida e depois dela e optou por não ser frágil e a lutar pelo que acha ser
correto. É uma das meninas de quem eu mais tenho orgulho, junto com Ellie.
E falando em Ellie, ela é a causadora de um mal
completamente sem sentido. Quando saímos do hospital onde nos alimentamos, e
íamos até o acampamento achar algum lugar para dormir, ela me puxou pelo braço
para que eu andasse atrás do resto do grupo animado.
- Eu acho que você já sabe, mas não custa
nada confirmar seus temores. Eu fui responsável pela morte de Bianka.
Suspirei. É claro que eu sabia.
- Posso ao menos saber por quê?
- Não, você sabe que não. – Ela mordeu o
lábio inferior - Mas é só isso? Não está brava por eu ter feito algo totalmente
egoísta e contra o bem maior?
Torci a boca.
- Acho que você está passando muito tempo
com Annie e as gêmeas, Ellie. Eu não me importo com o bem maior. Só quero fazer
isso tudo porque quero ser um dos seres mais poderosos do mundo. Mas eu detesto
quando conhecimento é jogado fora por nada. Bianka repassaria uma espécie de
conhecimento para suas descentes que nenhum clã nesse mundo teria. E eu
valorizava Deyah o suficiente para querer um futuro assim para os descendentes
dela, mesmo que o bem maior não fosse alcançado. Tudo que eu queria saber é:
Valeu a pena? Matar Bianka foi realmente a única solução lógica?
Ellie tirou os olhos azuis de mim.
- Saber demais
também é perigoso, Kat.
1º de janeiro de 1943
Diário de Kat
- Às vezes eu acho que essa guerra vai
durar para sempre. – Naomi disse, suspirando. – E se não durar, uma próxima
virá e outra e outra e mais outra até o mundo acabar.
Ela estava deitada no chão com os pés na
parede, a luz fraca do sol coberto por nuvens entrando pela janela acima de
suas pernas. Todas nós estávamos de calças e com mais casacos do que jamais
usáramos antes. Era o inverno na Suíça, implacável.
- Não sei por que vocês detestam tanto a
guerra. – Charlottie disse embaralhando cartas para ensinar às garotas alguns
jogos - Banhos de sangue são sempre interessantes.
- Correr o risco de ter a cabeça explodida
mesmo dentro de casa. Sentir esse cheiro de morte e de doença em todo canto
tendo faro apurado. Saber que milhões de pessoas que poderiam ser ótimas vampiras
estão morrendo. Isso não tem nada de interessante.- Rebati, lendo um livro
próxima a lareira.
Quando saímos de Berlim, fomos para a
Áustria. A cabana em Graz era o melhor lugar para que Sophie descansasse
enquanto sua alma voltava. Passamos esses quase dois anos lá. Aproveitei esse
tempo para mostrar a Naomi o legado de nossa família e de forma surpreendente
até para mim, disse a ela que podia usar qualquer coisa ali a seu bel-prazer.
Ela ficou satisfeita em ler o máximo daquilo.
Kaylee e Ellie estavam mais do que
satisfeitas em ficar reclusas na cabana por aquele período. Passavam dias
cuidando dos jardins. Fizeram um novo guarda-roupa inteiro para todas as nove,
já que vivíamos nos desfazendo dos nossos. Charlottie passava o tempo todo com
a irmã. As duas tinham muito a colocar em dia e Sophie às vezes ficava tão
fraca que precisava do humor ácido de Charlottie para fazê-la rir. Enquanto
isso, Anika e as gêmeas – que naquela época ganharam o título de “vampiras de
Ellie” já que as “três mais novas” não fazia mais sentido – serviam de leva e
traz para as notícias de Viena sobre a guerra. Elas viajavam de trem uma vez
por mês e passavam uma semana na cidade. Quando a guerra acabou, a Áustria se
tornou república e a família real foi exilada, Anika se recusou a voltar a
capital por meses. Só voltou a Viena quando as gêmeas convenceram Kaylee a se
esbaldar em um pouco de sangue.
Ao fim de 1920 nós já estávamos com tudo
organizado e prontas para viajar pelo mundo a procura de vampiras em potencial,
começando pela Europa, é claro. O problema: A Europa não estava pronta para
nós. Ou para qualquer outra coisa. A guerra destruíra grande parte do
território do país. Riqueza era algo raro, quase impossível de se encontrar
naqueles dias. O valor de todo dinheiro europeu entrara em queda, ou melhor, em
depressão, com uma rapidez vertiginosa.
Passamos alguns anos pulando entre um país
e outro, procurando alguém ou alguma coisa que valesse a pena. Já havíamos
rodado mais de metade da Europa quando 1934 chegou e as meninas resolveram que
com outra guerra se aproximando (o que já era óbvio) era melhor parar um pouco
e tirar aquele ano para comemorar meu aniversário de 100 anos.
A ideia era bater o recorde de assassinatos
que tínhamos cometido. Nenhuma de nós sabia o número exato de pessoas que
havíamos matado – exceto Anika que nunca parou de contar – então acabamos
matando enlouquecidamente por dias. Eu achava aquilo contra os princípios nos
quais Deyah havia criado os vampiros e o que queria que nós fizéssemos, mas
concordei com a ideia maluca pelo número de lembranças agradáveis dos meus
primeiros anos que aquilo me trazia. E concordei que fazer 100 anos com rosto
de 10 e corpo de 14 é uma ocasião especial demais para não ser comemorada. Por
isso, 34 foi um ano completamente perdido. Apenas depois dele voltamos a andar
por países passando um determinado período de tempo em cada cidade para ver se
encontrávamos alguém que servisse para nossos ideais.
Em 39, a Segunda Guerra explodiu. Viemos
então para a Suíça que não luta em uma guerra desde antes de eu nascer. Deveria
ser um lugar seguro.
23 de fevereiro
Diário de Kat
A última coisa que eu esperava, aconteceu.
Ellie agora está trabalhando como
voluntária no hospital da Cruz Vermelha. Eles têm convocado todas as mulheres
mais ou menos da idade em que ela foi transformada. Nós tínhamos como nos
esconder disso, até porque Sophie e Kaylee conseguiram, mas Ellie resolveu que
queria trabalhar por um tempo só para sair do ócio e descobrir novidades sobre
a guerra. Ontem, depois do seu terceiro dia de trabalho, ela voltou para o
nosso apartamento trazendo pela gola da camisa um homem que arfava de dor.
As outras oito de nós estávamos sentadas no
tapete da sala, como sempre, próximas a lareira, conversando. Ellie atirou o
corpo entre nós e um gemido escapou dos lábios dele, denunciando sua vida.
- Ellie, mas que m...? – Me interrompi
quando o homem levantou o rosto e focou os olhos nos meus.
Eu e Sophie ofegamos ao mesmo tempo.
- PIERRE??
Todas nós nos levantamos. Um lampejo de
vida passou por seus olhos, mas logo em seguida ele os fechou, desmaiando.
- Ele mesmo! – Ellie grunhiu com o rosto
ainda mais duro do que o normal - Esse... Esse...
Não conseguiu completar a frase de tão
transtornada que estava. Olhei para Sophie, que estava tão preocupada quanto
eu. As outras seis nos encaravam com expectativa, esperando uma explicação.
Delas, Anika era a única que realmente entendia nossa tensão.
- Sophie, leve-o para o quarto. – Eu disse,
tentando ser razoável. – Nós três precisamos arrancar algumas informações dele
e depois decidir seu fim. E quero Annie conosco também. Ellie, você precisa
explicar exatamente como o encontrou.
Sophie suspirou e puxou o corpo desmaiado
de Pierre, pela gola da camisa surrada, como Ellie fizera. Nem pensei em dizer
para ela não fazer isso. Nós três tínhamos o direito de torturar Pierre o
quanto quiséssemos.
Ellie se sentou e nos encarou. Nós
continuamos de pé.
- Esta tarde um caminhão cheio de soltados
alemães feridos chegou ao hospital. - Começou - Foi um caos porque todos
pareciam gemer juntos em uma sinfonia desafinada. Também havia aquele cheiro de
sangue fresco em todos os lugares o que me deixava desconcentrada. Resolvi que
não aguentaria ficar mais um minuto naquele lugar e me dirigi até a saída,
camuflada pelo caos.
“Foi quando ouvi meu nome dito em meio a
uma tosse alta. Me virei por reflexo. Os olhos dele chamaram minha atenção
mesmo em meio a sala bagunçada. Claro que chamaram, meu Deus, com aquele brilho
doentio, é claro que chamaram.” Ellie suspirou e colocou o rosto entre as mãos.
“O que ele está fazendo aqui? Por que ele foi surgir justo agora?”
A essa altura Sophie já
havia voltado e olhava em silêncio para Ellie. Nós duas estávamos surpresas. A
Ellie de sempre teria matado ou pelo menos tentado matar Pierre sem nem pensar
duas vezes. Pensar nisso me atentou para os motivos de Ellie. Andei até ela e
parei à sua frente com as mãos sobre seus joelhos.
- Você precisa descansar.
– Disse, olhando em seus olhos, quando ela tirou as mãos do rosto. – Precisa de
um banho quente, relaxar e não pensar nisso até de manhã. A volta de Pierre
causava mais efeitos em você do que em qualquer uma de nós. Precisaremos de
você acordada e bem quando formos tratar de Pierre.
Quando Ellie, em seu
habitual silêncio frio, concordou e saiu da sala, eu pedi que Sophie e Anika
ficassem para trás para conversar comigo e mandei todas as outras para a cama.
- O que vocês acham? –
Perguntei, me sentando no braço do sofá.
- Eu acho extremamente
bizarro um demônio lutando no exército alemão. – Anika disse, sendo óbvia.
Sophie sorriu.
- Ele é só meio demônio e,
se você pensar, até que faz sentido.
- Não foi isso que eu quis
dizer. – Reclamei, impaciente.
Elas se entreolharam antes
de voltar a falar comigo.
- Bem, eu duvido muito que
ele estivesse procurando por nós. – Anika disse, séria - Ele apenas deu azar de
se machucar e ir parar no hospital em que Ellie estava trabalhando. A questão é
só uma: Ele não se regenera? Por que está tão machucado?
- É, foi o que eu pensei
também. – Sophie completou. – Ele tinha muitos ferimentos superficiais que se
curariam muito fácil. Só se...
Ela parou no meio da
frase, aparentando pensar.
- Se...? – Perguntei,
pedindo a conclusão.
- Se ele estivesse em uma
explosão ele provavelmente estaria cheio de ferimentos internos. – Sophie
colocou, cuidadosa - Esses levam mais tempo para curar e provavelmente quando
aconteceu, ele estaria fraco demais para evitar ser carregado para o hospital.
Se ele tivesse tomado banho, comido e sido bem cuidado no hospital provavelmente
ele já estaria curado e pronto para a outra, mas chamar o nome Ellie foi o
maior erro dele.
- Faz sentido. –
Concordei, com um suspiro. – O que faremos com ele?
Elas ficaram em silêncio.
Eu também não fazia ideia do que faria.
- Não sabemos quão forte
ele está. – Eu disse em voz alta para organizar meus pensamentos – Também não
sabemos se seria possível mata-lo ou tortura-lo sem ter a fúria do Inferno
virada contra nós. Todas nós temos nossa alma no inferno o que significa que
ela provavelmente pode ser destruída em um piscar de olhos. Quer dizer, todas
nós, menos uma.
Sophie sorriu, mostrando
que entendia.
25 de fevereiro
Diário de Kat
Resolvemos que alguém
ficaria em guarda no quarto de Pierre e chamaria as outras quando ele acordasse
ou fizesse algo. Anika aceitou o papel, dizendo que queria terminar o livro que
estava lendo. Eu e Sophie fomos dormir.
Acordei com o barulho da
cozinha sendo revirada, com panelas caindo e armários sendo abertos e fechados
violentamente. Levantei da cama que dividia com as gêmeas e Ellie – o número de
camas na casa fazia com que as camas de casal precisassem ser divididas. No
corredor, encontrei Anika dormindo sobre o livro, o que não foi nada
surpreendente. Corri até a cozinha e encontrei, é claro, a cabeça de Pierre enfiada
dentro de um armário.
- Que diabos você pensa
que está fazendo? – Gritei, entrando na cozinha.
Ele tirou a cara do
armário e sorriu, com ironia.
- Procurando comida. –
Respondeu. Sua voz estava mais grossa e séria - Mas é claro que aqui não tem.
- Comida virou artigo de
luxo durante a guerra, Pierre. Definitivamente não compensa ter comida em casa
quando não se consome isso.
- Nem Sophie?
Ergui a sobrancelha.
- Como você...? – Comecei,
depois balancei a cabeça – Ah, não importa. Sim, nem Sophie. Sophie não precisa
de nada para continuar vivendo.
Um brilho provocante
passou por seus olhos.
- A menos que alguém roube
a alma dela de volta, naturalmente.
Revirei os olhos.
- Boa tentativa. Por ter o
corpo fechado a alma de Sophie só escapa do controle dela por livre e
espontânea vontade. E nem sonhe em ameaçá-la em minha frente. – Me aproximei
dele. – Até porque você tem várias coisas importantes para se preocupar no
momento.
- Como o quê, por exemplo?
- O fato de você estar
sendo mantido como prisioneiro em uma casa com nove vampiras loucas para se
livrarem de você assim que arrancarmos todas as informações que precisamos.
Eu estava parada na frente
dele. Ele é um pouco mais de 20 centímetros mais alto que eu.
- Nove? – Ele disse
abaixando o tom de voz - Isso é surpreendente, anjo. Realmente surpreendente.
Mas eu sei que vocês não sabem como me matar.
Dei de ombros.
- Para tudo se dá um
jeito. Além disso, matar não é a pior coisa que se pode fazer com alguém.
Pergunte para Kaylee, nossa especialista em torturas.
- A de Cianne?? Aliás, que
derrota aquela hein, Kat? Como foi passar 17 anos presa, 10 deles desacordada?
- Não é da sua conta. E
como foi para você? Fugir da única família que você conhecia e acabar quebrando
a cara ao se dar conta de que não existe essa história de Príncipe do Inferno?
Ele bufou.
- A monarquia está fora de
moda mesmo. Existem coisas mais importantes que você pode ser do que príncipe.
Ouvimos um pigarro que
quebrou a tensão com que conversávamos. Sophie e Ellie aguardavam, de braço cruzados
na soleira da porta da cozinha.
- Olá, Sophie. – Pierre
disse, dando mais intensidade a seu sorriso sedutor. – Mamãe.
Ellie grunhiu e eu me
juntei a elas.
- Então - Ele disse, nos
observando enquanto ficávamos em silêncio - Onde está aquela especialista em
torturas que você citou, Kat?
Antes que eu pudesse
responder, Sophie andou até ele. Pierre a encarou, se perguntando que diabos
ela estava fazendo. Sem expressão, ela tocou a testa dele. Ele começou a berrar
imediatamente. O cheiro de carne queimada tomou conta da cozinha enquanto ele
se abaixava gradativamente e caia no chão. Eu e Ellie nos entreolhamos e notei
que ela tentava segurar um sorriso.
- Não ouse falar conosco
como se você fosse igual a nós. - Sophie disse, deixando o dedo onde estava até
que ele terminasse de cair - E não venha com perguntas agora. O seu destino
está em nossas mãos e é bom que saiba disso. Se resolver cooperar conosco,
ótimo, nós podemos facilitar as coisas para você. Se não, nós faremos o que for
necessário com você e a culpa por sua dor vai ter sido apenas sua.
Ele rosnou com a mão na
testa e não respondeu.
- Levante. – Sophie
ordenou. – E vá até a sala. Permaneça sentado no sofá, enquanto acordamos as
meninas. Você responderá todas as nossas perguntas, de uma forma ou de outra.
Se você agradar todas as nove de nós o suficiente, talvez você coma hoje, caso
contrário, veremos.
Ele rosnou de novo e se
levantou fazendo o que Sophie havia mandado. Pedi que Ellie ficasse para trás
vigiando ele e fui com Sophie acordar as meninas.
- Como você sabia que
podia fazer aquilo? – Perguntei quando as gêmeas se sentaram, esfregando os
olhos.
- Não sabia. Foi apenas
uma intuição. – Sophie respondeu, sorrindo com crueldade. Suas presas ainda
estavam ali, mesmo que não tivessem mais utilidade. – Perdi a chance de tentar
ontem quando o segurei pela camisa. Hoje eu resolvi que não tinha nada a perder
e estava certa. Acho que agora entendemos porque o Inferno nos mantem em
guarda. A verdade sobre nós é muito perigosa para eles.
Concordei com a cabeça,
mas completei:
- E talvez para nós
também.
Acordamos Anika que pediu
desculpa um milhão de vezes por ter dormido, mesmo eu tendo dito que estava
tudo bem. As meninas pediram um momento para se lavarem e se arrumarem. Eu,
Sophie e Ellie que resolvemos que isso não valia a pena, ficamos na sala
observando um Pierre de expressão taciturna. Repassei mentalmente várias vezes
as perguntas que faria para ele. Aos poucos a sala foi enchendo e quando a
última de nós – Kaylee – se sentou no tapete, Sophie explicou tudo que havia
acontecido aquela manhã.
- Agora, naturalmente,
vamos nos organizar para esse interrogatório. – Ela anunciou, quando terminou.
Pierre revirou os olhos achando aquilo tudo dramático. Sophie lançou a ele um
olhar cruel que o fez balançar a cabeça. – Kat, eu e Ellie faremos as
perguntas. Pierre tem que responder a verdade e fazer o máximo possível para
prová-la. Vocês o observam e decidem se acham que ele disse a verdade ou não.
Se tiverem alguma pergunta, basta levantar a mão. Caso haja uma discussão em
relação a sinceridade dele, a mediadora será Anika, já que ela foi a única a
ter uma chance de observar Pierre enquanto bruxa. Alguma dúvida ou opinião? -
Todas ficamos em silêncio, aprovando tudo. Sophie é esperta, especialmente em relação
a Pierre. – Certo. Ellie? Imagino que queira começar.
Ellie concordou com a
cabeça. Pierre levantou os olhos para ela e eles pareciam esperando por algum
tipo de piedade. Ele definitivamente estava fora havia tempo demais.
- Eu quero voltar ao
início. - Ellie começou - Eu poderia fazer milhares de perguntas, mas nenhuma
delas importaria de verdade. Quando começaram a falar com você?
Pierre suspirou, como se
esperasse por aquilo.
- Quando fomos para
Verdant. Na verdade, depois que tentei atacar Sophie e não consegui. Falaram
comigo por sonho e foi quando a sementinha de discórdia foi plantada.
Perguntaram se eu queria mesmo ser comandado e sobrepujado por um bando de
vampiras, sabendo que eu era superior a elas. Eu era jovem demais e adorava Kat
demais para poder entender o que queriam dizer.
- Mas depois mudou de
ideia... – Eu disse.
- A culpa toda foi de
Deyah. O Inferno não ficou nada feliz em saber que ela estava se aliando à
Morte, a força que ela mais odiava, para poder desfazer o que eles haviam feito.
Entendam, o Inferno considera os vampiros um dos seus maiores trunfos e se a
Morte pudesse devolver a Deyah algum tipo de poder que tirasse esse trunfo
deles, seria um problemão. E eles sabiam que o ódio dela pela Morte era tão
profundo que só poderia ser algo desse tamanho para convencê-la a uma
associação.
“Então ordenaram que eu
matasse Deyah. Por algum motivo, eu não quis fazer isso. Até que fiquei sabendo
que o Exército” Ele colocou desprezo
na palavra “Só poderia ser formado por mulheres. Então a matei. Não sem que
antes Kat já tivesse aceito a missão e o plano de Deyah para que transformasse
uma descendente dela. Foi quando o Inferno mandou que eu matasse Ellie. O que
eu não fiz e nem vou fazer.”
- E por quê? – Ellie
perguntou, os olhos deixando a sala ainda mais fria.
- Eu sei que vocês me
consideram um traidor nojento e maldito, mas não é isso que eu sou. - Pierre
quase cuspiu. – Eu não vou matar você, Ellie, porque minha lealdade está em
você quase tanto quanto está no Inferno.
- Interessante esse seu
uso do “quase”. – Ela cuspiu de volta, nada convencida pelo discurso.
Pigarrei.
- Continue, Pierre. –
Ordenei.
- Fomos para Viena e eu
aceitei aquele plano imbecil de Kat. Claro, que era só um teste da minha
fidelidade, ao mesmo tempo que testava se Anika era realmente poderosa. Ela era
poderosa, mas eu não era fiel. Pelo menos não fiel o suficiente. Não ia ser feito de joguete nem de arma por Kat. Era
melhor aceitar meu lado demônio. Antes é claro, eu deixei uma mensagem: Sabia
que o segredo de Ellie também afetava a Morte e, ao mesmo tempo, que ela seria
um sacrifício real para Kat. Eu conheço o relacionamento das duas melhor que
ninguém. Por isso contei quem Kat devia sacrificar. Eu não mataria Ellie, mas
isso não significa que outra pessoa não faria. Claramente, ninguém o fez.
Um burburinho se instalou
enquanto as meninas decidiam se ele dizia a verdade ou não. Só eu permaneci
olhando para Pierre. Ele notou meu olhar e sorriu torto. Eu não estava gostando
nada das provocações dele. Ele parecia dizer “Eu não posso contar todos os meus
segredos sem soltar alguns de vocês”.
Pierre havia mudado muito
desde a última vez que eu o vira. É claro que tecnicamente ele permanecia
aparentando 16 anos, mas ao invés de ser aquele garoto vitoriano bem portado,
bem vestido e barbeado, agora ele era um soldado barbado, violento e
maltrapilho. Seria até atraente... Se eu não tivesse trocado as fraldas dele
quando ele era nada além de um bebê meio demônio. Fiz um sinal com as mãos para
que o Exército se calasse.
- Para onde você foi
depois que desertou?
Ele manteve o sorriso
torto.
- Interessante escolha de
palavras já que eu nunca fiz parte do Exército. Você me ensinou muito sobre
viagens sem destino nenhum. Eu não ainda não sabia como contatar o Inferno,
eles precisavam me contatar, então fui viajando enquanto tomavam uma decisão
sobre mim. Matei alguns homens e assumi a identidade deles para poder viajar.
Saí da Áustria com uma facilidade absurda e me instalei na França por uns anos.
Assumi meu nome verdadeiro, com o sobrenome de meu pai. - Ouvi Ellie sussurrar
um “Alec não era seu pai”, mas Pierre fingiu que não havia acontecido. - Criei
uma vida lá, até namorei por um tempo, cheguei a noivar. Já estava quase
esquecendo quem e o que era quando o Inferno voltou a contatar. Disseram que a
Morte estava tentando atrair Kat para ela outra vez, através de uma prima.
Queriam testar minha fidelidade trazendo você de volta para eles. Dá para
entender porque eu estava cansado desse joguete de ‘testar a fidelidade’.
Àquela altura eu acreditava que me casar e viver com Sabine era a melhor coisa
que poderia fazer. Eu me sentia livre. Então não obedeci à ordem que recebi. É
o mínimo dizer que foi um erro.”
Atrás de mim, ouvi Kaylee
suspirar. Ele literalmente estava tentando seduzir as meninas e bancar o
coitadinho. Foi quando me dei conta de que era tudo mentira.
- Boa tentativa. – Eu
disse cruzando os braços. – A verdade, Pierre. Agora.
Ele ergueu a sobrancelha.
- Por que é tão difícil
acreditar nisso?
- Porque as chances de
você se conformar com uma vida tranquila e entediante, casado e feliz, são mais
do que nulas, são negativas.
- Touché. Bem, a maior
parte é realmente mentira. Eu sei como contatar o Inferno. Sou uma ponte,
afinal de contas. Eles me disseram que eu não poderia ocupar o lugar de
“príncipe do Inferno” porque como Kat disse, esse posto não existe. Também
descobri que eu sou filho do que eles chamam de “demônio de baixo calão” e por
isso o máximo que eu podia fazer aqui na Terra era reproduzir e conduzir mais
almas para o Inferno...
- Se isso fosse verdade
você não teria como saber tudo que sabe sobre nós. – Charlottie disse.
- Eu fiquei sabendo muito
pouco sobre isso porque meu pai vivia me visitando em sonhos e me contando como
Ellie estava.
Nos entreolhamos. Ellie parecia
enjoada.
- Isso é verdade, ok? –
Pierre resmungou conforme seu estomago roncava. – Eu não tenho muitos motivos
para mentir.
- Muito pelo contrário. –
Anika disse, sua voz doce tomando conta da sala. – Você tem todos os motivos do
mundo para mentir, por isso duvido muito que sairia dizendo toda a verdade
assim, no primeiro interrogatório.
O olhar que Ellie lançava
para Anika era o extremo oposto do que Pierre recebia.
- O que você sugere?
- Que o interroguemos de
novo daqui a alguns dias, quando ele estiver mais faminto e com mais a perder
se mentir.
- Mas... – Ele começou,
mas foi interrompido.
- Por você ter contado uma
parte da história que eu acredito que seja verdade, - Anika continuou, séria -
você pode tomar banho e conseguiremos roupas limpas para você. Mas nada de
comida ou algo que possa te fortificar.
- E se eu resolver contar
a verdade?
- Tarde demais. Ainda não
podemos acreditar em você. E eu sugiro que vá para o banho logo ou essa oferta
também estará suspensa. As gêmeas ficarão de vigia.
Pierre, Miranda e
Valentina se levantaram de prontidão. As outras de nós permanecemos paradas em
choque pela posição de comando que Anika assumiu. Em pelo menos uma coisa ela
estava certa, Pierre Petrie tinha muitos motivos para mentir.
28 de fevereiro
Diário de Kat
Comemoramos o aniversário
das gêmeas com uma pequena festinha particular. Entregamos presentes para elas
e depois saímos para caçar até o sol nascer. Quando chegamos em casa,
encontramos Pierre desmaiado no chão da sala, de forma dramática. Sophie, que
havia ido conosco só pela diversão, tirou os sapatos e chutou o peito sem
camisa dele algumas vezes, até que ele acordasse.
- Resolveu dizer a verdade
ou ainda vai passar alguns dias nessa enrolação? – Perguntei, enquanto ele
tentava se sentar.
Eu entendi a ideia de
Pierre no mesmo segundo. Ele sabia que era melhor para nós vivo do que morto,
já que precisávamos dele para saber que diabos o Inferno estava armando. Por
isso, com muita raiva de Anika, ele resolveu que não diria nada, pois
acreditava que mais cedo ou mais tarde nós o alimentaríamos, com medo de perder
nossa principal fonte de informações. É claro que ele não poderia estar mais
enganado. Eu sei muito bem que ele não morreria de fome. Não seria fácil assim.
O corpo físico dele provavelmente ficaria bastante fraco, mas sua alma
continuaria nele em sofrimento, até que alguma coisa acontecesse.
Ele suspirou.
- Eu vou contar. – Disse,
demonstrando fraqueza como sua mãe nunca faria. – E recomendo que vocês
registrem tudo.
Nos organizamos na sala
para ouvir o que ele tinha a dizer. As gêmeas resolveram ir providenciar a
comida enquanto interrogávamos Pierre, deixando claro que se ele mentisse sobre
qualquer coisa toda comida iria ser jogada descarga abaixo. Pierre revirou os
olhos ouvindo isso, mostrando que a ironia era uma das últimas coisas que se
apagaria nele.
- Depois que contatei meu
pai, ele me disse que eu precisaria cumprir algumas missões. Não deixou claro
na hora que aquela história de príncipe do Inferno era mentira. Pelo contrário,
ele passou horas exaltando todas as minhas qualidades e todos os meus poderes.
Listou todas as maravilhas que eu havia feito para ajudar o Inferno. Eu, mais
do que feliz em finalmente ver minhas qualidades exaltadas por um ser tão
poderoso, aceitei todas as missões que recebia. Elas iam desde roubar alguns
artefatos poderosos até convencer algumas pessoas a se matarem ou a deixarem
corpos livres para possessões.
“Me envergonha dizer que
eu levei anos para me dar conta de que estava sendo enganado. Eu percebi lá
pelo fim da década de 80 que eu só fazia os mesmos trabalhos sujos que vampiros
deveriam fazer. Eu não tinha participação importante em nada que eu pudesse
resultar em algo verdadeiramente grande e se morresse poderia ser facilmente
substituído por qualquer humano possuído por aí. Pressionei meu pai para que
ele fizesse algo por mim. Perguntei o que mais eu precisava fazer para
conseguir o lugar que era meu por direito. Eu já desconfiava que aquilo tudo
era apenas uma forma de me manter sobre controle, mas também não queria aceitar
que teria um papel mais importante nesse mundo se tivesse continuado com Kat.
“Recebi uma mensagem
alguns dias depois anunciando algo totalmente inesperado: Se eu quisesse ser
príncipe teria que criar uma linhagem de humanos que tivessem partes demoníacas
em seu sangue e, portanto, fossem mais suscetíveis a realizar trabalhos para o
Inferno depois. Avisei que eu já sabia que aquela história de príncipe do
Inferno era mentira e fui confrontado de volta com o anúncio de que independente
disso, fazia parte das minhas obrigações como meio demônio disseminar meu
sangue pela Terra. Rebati perguntando se ele achava que eu era um maldito
vampiro. Ele respondeu usando uma tática que eu sei que a mãe de Kat usou com
ela: listou as diversas formas como poderia me matar, já que era um ser mais
poderoso que eu e ainda disse que era melhor eu me contentar em ser quase um
vampiro, já que havia sido educado por vampiras, afinal ele poderia fazer de
mim menos que isso. Aceitei a ideia resignado, até porque não tinha muitas
opções.
“Parti para a Rússia.
Preciso dizer que escolhi minha esposa pelo nome: Katerina. Ela era uma
condessa e estava em condições muito superiores às minhas, mas também havia
sido criada apenas com mulheres e era facilmente influenciada pela beleza
masculina. Acabou se casando comigo contra o que toda família desejava na
época.”
Pierre lançou um olhar
para todas nós, esperando que sua história oferecesse alguma comoção. Todas nós
continuávamos sérias.
- Isso fez de tudo mais
divertido, é claro, era emocionante ascender daquela forma. Minha Katerina era
linda, mas de uma beleza totalmente diferente de qualquer uma de vocês. Não
saberia explicar tal beleza, mas ela tinha pele e cabelos claros e olhos
escuros. Extremamente escuros. Do tipo que sugavam a luz de qualquer sala e
atraíam a atenção só para eles. Nosso casamento durou apenas 5 anos. Duraria
mais, mas fui ameaçado a ter logo um bebê e ela, é claro, morreu ao dar à luz.
“Tive uma filha que chamei
de Alenka. Ella, apelido de minha criança, foi tirada de mim quando meu luto
acabou e me expulsaram da corte. Era 1896. Recebi um aviso de que agora poderia
fazer o que quisesse da vida, esperando receber novos avisos quando precisassem
de mim, o que deveria demorar a acontecer. Como prêmio pelos meus serviços eu
recebi um jornal mental: A cada dois anos tenho um sonho que mostra onde vocês
estão e o que estão fazendo, por isso sei de alguns detalhes e desconheço
outros.
“A questão é que pela
primeira vez na minha vida eu não tinha nada a fazer. Ellie me ensinou um
ditado que dizia que cabeça vazia é
oficina do diabo. Ironicamente, no momento em que deixei de prestar
serviços ao dito cujo, fiquei com a cabeça vazia e me prestei aos prazeres da
vida. O clichê sabe? Me entreguei as bebidas e as mulheres. Não tive outros
filhos pois sabia como evita-los. Acompanhava minha Alenka à distância. Eu
tinha um certo orgulho em tê-la feito e ela cresceu para ser o tipo de mulher
que qualquer um podia ver que tinha uma pitada demoníaca no sangue. Ela se
casou e teve filhos, alguns legítimos, outros não. Era uma condessa perigosa
que todos temiam de alguma forma.
“Quando as guerras civis
na Rússia começaram foi que eu percebi que tinha passado muito tempo ali.
Voltei para a Áustria. Eu era uma espécie de sombra de homem na época, mais
animal demoníaco do que humano meio demônio e por isso não queria me encontrar
com nenhuma de vocês. Mas eu sabia que vocês estavam presas em Cianne então
isso não seria um problema.
“Quando a primeira guerra
explodiu, lutar foi uma espécie de instinto básico. Me alistei e lutei pela
Alemanha. Ao fim da guerra fiquei sabendo que minha linhagem perdera seu
título, o que era um fim menos pior do que o que acontecera com a coroa russa.
Voltei ao país natal de minha Alenka, mas fiquei sabendo que ela havia morrido
de uma doença sexual qualquer e que seus diversos filhos haviam se perdido.
Frustrado, passei mais alguns anos na mesma rotina que tivera antes da grande
guerra. Esperei receber alguma mensagem do Inferno. Depois desisti e tentei
contata-los. Sem resposta. Mais alguns anos à deriva. Segunda guerra. Uma
bomba. E o resto é história.”
Um silêncio quase macabro
recaiu sobre a sala quando a história acabou. Nos entreolhamos, conversando com
olhares.
- Satisfeitas? – Pierre
perguntou, cansado. Poderia matar qualquer uma com o olhar que lançou. – Pois
é, Ellie, a essa altura você já deve ser tataravó.
A frase dele fez uma luz
acender em minha cabeça, como uma ideia que acabara de brotar.
- Por enquanto, está tudo
certo. – Tomei a dianteira, pensando em explicar minha ideia depois. – Mas
depois que você comer e tomar outro banho, eu preciso de mais detalhes sobre
essa tal condessa Katerina.
1º de março
Diário de Kat
- Você não vai fazer o que
eu acho que você quer fazer, Katerina. – Ellie reclamou aquela noite quando
fomos dormir.
As gêmeas ainda não haviam
ido para a cama, estavam animadas demais discutindo noite a dentro a história
que Pierre contara. O dito cujo dormia trancado no quarto ao nosso lado. Eu revirei os olhos. É claro que Ellie foi a
única a entender.
- Pensei que fosse ficar
feliz em ter mais alguém que fosse sangue do seu sangue no Exército.
- O meu sangue é o de
menos. É o sangue de demônio que me preocupa. Todas nós sabemos que da última
vez que confiamos em alguém assim acabou dando tudo extremamente errado.
- Acho que já podemos
parar com os eufemismos para falar sobre Pierre, Ellie. Ele está aqui e não
pretendo mandar embora por um bom tempo.
Ela suspirou, como se não
fosse dizer mais nada. Peguei as mãos dela entre as minhas e apertei com
carinho. Ellie sempre se perguntou por que eu a matinha no Exército. Eu sempre
quis saber por que ela continuava leal a mim.
- Me conte seus temores e
eu juro que os levarei em consideração, sempre.
Ela olhou em meus olhos e
foi como se a janela do quarto fosse aberta.
- Eu não tenho medo de coisa alguma. Só não quero
Pierre de volta. Por um certo tempo eu confiei àquele garoto todas as coisas
que eu mais prezava nesse mundo. Ele me deixou em agonia por exatos nove dias e
depois me levou a uma morte terrível. Eu tinha todos os motivos para
desprezá-lo e faria isso, não fosse o que você disse sobre ele não ter culpa de
sua origem. Ele realmente não tinha, mas que diferença fez? Ele acabou nos
traindo do mesmo jeito, aceitando um pai que ele nem conhecera ao invés de
ficar do lado das pessoas que haviam se dedicado a dar uma criação mais do que
excelente a ele. Eu realmente achava que ele faria alguma diferença na missão
de Deyah, mesmo sendo homem. Que ele seria a diferença que eu faria. E não ache
que eu comprei aquela história de que mandaram que ele me matasse e ele disse
não, não acho que ele hesitaria em me matar se assim fosse ordenado... Mas,
bem, minhas conclusões sobre ele geralmente não estão certas, então o que eu
sei?
As mãos de Ellie estavam
geladas nas minhas. Ellie parecia feita de gelo. Não que isso fosse ruim.
Esfreguei suas mãos com cuidado, olhando para elas ao invés de olhar em seus
olhos, levando um tempo extra para responder.
- Eu queria saber qual
segredo Bianka mostrou a você só para poder atirá-lo em sua cara agora, Ellie.
Pare de se subestimar ou de subestimar sua capacidade de julgamento.
- Mais cedo ou mais tarde
você vai acabar sabendo. Mas isso não tem nada a ver com o que está acontecendo
agora.
- Não mesmo? Não mesmo,
doce Lenore? – Eu só a chamava assim quando queria alguma coisa dela. Não que
funcionasse com frequência, ou que ela se negasse a fazer algo para mim com
frequência. – Que eu saiba Bianka disse com todas as letras que “Quando você
estava grávida, cada sangramento a carregava para o Inferno”.
Ellie fechou a cara.
- E que eu saiba Sophie
viu Pierre da última vez que vislumbrou o Inferno e ele ainda não foi indagado
sobre o assunto. Aliás, esse clã visita o Inferno com frequência demais.
- “Sua alma conseguia ver
além da tortura, além da dor.” – Continuei citando Bianka – “Você sabe de algo,
Ellie, algo que nem mesmo sabe que é importante, mas que você tem guardado
todos esses anos.”
- Sabe qual minha frase
preferida em Lenore, Kat? Deixe os mortos em paz.
Ela parecia tão séria que
eu desisti da brincadeira. Eu não ia arrancar aquele segredo dela a força.
- Certo, certo. Já que
você quer tanto arrancar todas as informações de Pierre antes de decidir se
vamos ou não transformar sua tataraneta, eu vou fazer isso.
- Chame essa garota de
minha tataraneta outra vez e a resposta será negativa eternamente. E eu sei
como conduzir minha maioria a dizer concordar comigo.
Com um calafrio me dei
conta de que Ellie tinha razão. Ela tem controle sobre três de vampiras do
Exército, uma amizade intensa com Kaylee e um voto tendencioso de Sophie que
carregaria sua irmã consigo independente do que escolhesse. Só me restava Naomi
que raramente parecia ter uma opinião forte em relação a qualquer coisa. Em
resumo: eu estava sozinha naquele jogo e tinha nada além de lealdade para me
apoiar.
São Petersburgo, Rússia
15 de junho de 1953
Diário de Kat
Se existe uma coisa que é
fácil de encontrar é um detetive particular na Rússia. Eles estão em todos os
lugares, nesses dias incertos onde ninguém sabe em quem pode confiar, prontos
para pesquisar antecedentes de todas as pessoas, inclusive de crianças.
Contratei um e pedi para que encontrasse a herdeira de Alenka Matrikov
oferecendo muito dinheiro caso ela fosse encontrada e deixando claro que se não
fosse ela, eu saberia. A verdade é que quando isso tudo estiver acabado, eu
pretendo matá-lo.
Enquanto espero, acredito
que eu deva escrever sobre o que aconteceu nos últimos anos. Pierre voltou a
ser uma parte do grupo: Só que agora como prisioneiro. Não que faça muita
diferença para ele. Nos atazanar se tornou seu objetivo de vida, ele que então
não tinha nada para o que viver. A pessoa que ele mais tira do sério, é claro,
é Ellie. Eu tive que deixá-la a cargo dos cuidados de Pierre, que nos últimos
dez anos tem comido uma vez a cada três dias.
É claro que ele tentou
encantar algumas das vampiras mais novas. Anika, que nutria um desprezo por
Pierre desde que era humana e que tinha os sentimentos retribuídos pelo
demônio, convenceu as gêmeas a não se aproximarem. Kaylee teria sido uma das
maiores partidárias do bem-estar de Pierre, se Ellie não tivesse o envenenado
para a amiga. Naomi tinha certo temor em ir contra os desejos de Ellie.
Charlottie não tinha interesse algum em se aproximar.
Quando arrancamos tudo que
podíamos de Pierre e organizamos como a prisão dele funcionaria, discuti com as
meninas a ideia de transformar a descendente dele. Todas concordaram que era
uma boa ideia, mesmo que tenham hesitado com a contrariedade de Ellie. Levei
semanas para convencê-la das vantagens de ter a garota no nosso grupo e
precisei da ajuda das vampiras dela. Pierre apenas suspirou quando ouviu o
plano que tínhamos para transformar sua bisneta. Eu acreditava que não estivesse
exatamente feliz em testar o Inferno outra vez, ajudando a destruir a linhagem
que ele mesmo criara.
Resolvemos esperar o fim
da guerra para organizar a viagem à Rússia. Isso durou dois anos e como se
sabe, quando isso aconteceu, as viagens entre países da Europa se tornaram um
pouco mais difíceis do que eram quando eu nasci. Pela primeira vez, nós
realmente precisamos de dinheiro. Dinheiro de verdade, em notas. Foi-se a época
em que o poder estava em títulos ou em concessões. Agora sem dinheiro não se
faz mais nada.
Nossos pequenos golpes
tomaram algum tempo. Hipnose ajudou é claro, mas queríamos fazer aquilo sem
deixar muitos rastros. Roubamos como especialistas nos primeiros anos e usamos
todo o dinheiro como investimento para conseguimos documentos de diversos
países, com diversas datas de nascimento. Nesse período de fim de guerra, é
fácil encontrar formas de falsificar diversos documentos com tudo que
precisávamos para criar uma vida para nós.
Abrimos três contas em bancos suíços que estavam mais do que satisfeitos
em receber nosso dinheiro: uma no nome de Ellie, uma no nome de Sophie e uma no
nome de Kaylee – as três de nós que podíamos passar por adultas. Ninguém faz
perguntas quando você mostra muito dinheiro em dólares. E se fizerem, para tudo
se dá um jeito.
Conseguimos uma pequena
fortuna nos cinco anos que tiramos para isso. Aquilo era excitante como
pouquíssimas coisas para nós. Agir como pequenas empresárias descobrindo o
mistério do dinheiro deixava tudo tão emocionante que quase nos esquecemos que
ainda precisamos de quatro vampiras para completar o Exército e cumprir uma
missão.
Foi nessa época que
criamos uma nova forma de nos distinguir como grupo. Resolvemos usar pedras
preciosas em correntes de ouro no pescoço: eu escolhi uma esmeralda, Ellie uma
safira azul, Sophie lápis-lazúli que foi copiada em tamanho menor no pescoço de
Charlottie, as gêmeas escolheram cada uma um diamante, um rosa e outro azul,
Anika uma ametista, Kaylee um rubi e Naomi um topázio amarelo.
Quando nós estávamos com
dinheiro suficiente para comprar um pequeno país e as aplicações fantasmas
começaram a se tornar entediantes, planejamos nossa viagem para a Rússia. Isso
foi complicado. Não era uma boa ideia ir para a Rússia aparentando ser rica.
Passamos um bom tempo pensamos em como entraríamos no país sem chamar mais
atenção que o necessário. O trem era a melhor opção. Pegaríamos um até
Budapeste e dois dias depois, outro até São Petersburgo. A família da esposa de
Pierre era de lá e a cidade também era menos óbvia que Moscou. Ellie nos
liderou nesse processo. Contávamos com o russo dela, que treinou comigo por
semanas, para responder a qualquer pergunta que precisássemos responder. Os
documentos que portávamos não pareciam nada falsos, pelo contrário, eram mais realistas
que o esperado.
Mas nenhuma dessas
preparações evitou que nós ficássemos ansiosas para o momento da viagem. O
mundo era um lugar diferente, perigoso. Nós que éramos as caçadoras desde
sempre, agora nos escondíamos da caça, porque sua mente se mostrou mais
perigosa do que qualquer força que pudéssemos ter.
De uma forma ou de outra,
acabamos chegando a São Petersburgo vivas. Certo, vivOs. Pierre veio junto
apesar de Ellie ter sido contra isso com todas as forças. Não tínhamos como
deixar ele para trás e muito menos deixaríamos algumas de nós para trás para
servir de babá de demônio. Além disso, ele teria mais serventia conosco e isso
até Ellie teve de admitir.
Nos alojamos em uma casa
pequena, no meio de uma vila de operários. As meninas detestaram. Não que a
riqueza tenha subido a cabeça, mas somos dez e sempre dá uma confusão danada
dividir dois quartos. Especialmente quando ninguém quer ficar no mesmo quarto
que Pierre, que também não pode ficar na sala, porque representaria perigo. O
passatempo preferido em nosso novo abrigo era imaginar as casas em que
viveríamos quando pudéssemos usufruir de nossa riqueza sem restrições.
A animação pelo “bem
maior” já era passado.
18 de junho
Diário de Kat
- Isso demorou. – Reclamei
quando o vigarista detetive que contratara apareceu ontem de madrugada
com as informações que eu pedira.
- Você não faz ideia de
quanto é difícil encontrar uma ex-família rica na Rússia de hoje? Todas as
famílias espertas estão dando um jeito de aparecer do mapa. Você sabe bem disso
já que está enfurnada em uma casa dessas quando poderia estar em qualquer
lugar.
Cruzei os braços.
Estávamos na soleira da porta. Qualquer um poderia ouvir aquilo, sendo noite
alta ou não.
- Que tal calar a boca e
me dar os documentos?
Ele me entregou o envelope
de papel com cuidado. Abri e vislumbrei uma foto e cópias de alguns documentos
importantes. Dediquei os segundos seguintes a decidir se mataria aquele homem
ou não. Resolvi que estava com sede. Dois minutos depois voltei para dentro da
casa, onde o Exército se amontoava esperando por minhas boas notícias.
- Meu Deus, Kat, tem
sangue escorrendo por seu queixo. – Anika reclamou, brincando com seu pingente.
Esfreguei o rosto.
- Desculpem. Eu tive que
fazer tudo muito rápido. Esse toque de recolher é um grande problema para os
negócios.
- Tá, tá, tanto faz. –
Naomi disse, revirando os olhos. – Ele trouxe o que você queria?
- Ele encontrou uma
garota. – Enfatizei - Aparentemente descendente de Alenka. Mas só saberemos
quando a encontramos, certo?
Uma batida foi ouvida
vinda da porta do quarto de Pierre.
- Eu saberia dizer se pudesse ver isso,
não? Afinal, ela é minha bisneta.
Apertei o envelope contra o peito ao ouvir
a voz dele. O mesmo foi arrancado de minhas mãos sem cerimônia.
- Vamos acabar logo com isso. – Ellie chiou
enquanto retirava os papéis do envelope. Encarou o que via e depois atirou os
papéis no chão com um suspiro. – É ela.
Nos aproximamos do papel com cuidado. É
claro que era ela. Exceto pelos olhos, ela era idêntica a tataravó.
30 de junho
Diário de Kat
- Deixa eu adivinhar, seus pais a mandaram
para cá? – Perguntei, com a voz quase abafada sob o som das máquinas.
Tatiana era uma garota calada. A mais
calada que eu já vira em toda a minha vida. Nos primeiros dias eu achei que ela
sequer sabia falar. “Ah, ótimo, dez anos inteiros de preparação perdidos.” Foi
o que pensei, antes que ela murmurasse um “Olá” envergonhado e voltasse ao
trabalho com cuidado.
Aos poucos e por meio de uma observação
descarada e sem escrúpulos, percebi exatamente como ela era: tímida, mas
curiosa. Feita para observar tudo e todos à distância. Fora criada em um lugar
onde era melhor para a sua segurança que não visse, não ouvisse e
principalmente não falasse. Mas isso não quer dizer que não fosse sagaz. Isso
era óbvio em seus olhos “Extremamente escuros. Do tipo que sugavam a luz de
qualquer sala e atraíam a atenção só para eles.”. Tudo que eu precisava fazer
era quebrar a barreira que ela havia criado ao redor de si, aos poucos.
Os documentos que o detetive conseguira
tinha as seguintes informações: nome: Tatiana Matrikov, data de nascimento:
31/10/1938, local de nascimento: São Petersburgo e nome da mãe: Elizaveta
Matrikov - O nome do pai não constava nos registros. Junto com isso vinha uma ficha
com as informações do trabalho dela: ter só 14 anos não a impediu de ter que
ajudar em uma fábrica de vestimentas (não necessariamente roupas) aqui mesmo,
em São Petersburgo.
Por isso eu dei um jeito de ir parar na
fábrica. Trouxe Anika, as gêmeas e Naomi comigo, como se fossemos irmãs. Sabia
que eu correspondia ao tipo de garota que eles queriam que trabalhasse na
fábrica e bastou que eu dissesse que queria ajudar em casa para que eles
arrumassem trabalho para mim. Dei um jeito de ficar próxima a Tatiana, que
desde o primeiro dia transmitia uma espécie de aura que envolvia o lugar,
chamando atenção mesmo quando tentava não fazer isso.
- Eu vim porque quis. – Ela respondeu,
claramente mentindo. – Assim como você. – Insinuou como uma professora dando
uma bronca.
Revirei os olhos.
- Eu quis dizer que você veio para ajudar
sua casa. Como todas as garotas aqui. Bem, a maioria delas.
Eu vi suas sobrancelhas se franzirem por um
momento, pensando no que eu disse, mas logo depois desistiu do que pensava. Ela
parece ser o tipo de garota que cumpre ordens com convicção e sem
questionamentos – uma qualidade que parece ter aprimorado de Ellie.
- Sim. – Ela respondeu com calma - Vim
ajudar em casa.
- Quantos irmãos você tem?
Ela olhou bem para mim. Eu podia ver as
engrenagens de seu cérebro tentando descobrir porque diabos eu estava fazendo
perguntas. Esse mundo onde responder perguntas era perigoso me deixava cansada.
- Eu só queria conhecer você melhor. –
Disse suspirando e voltando ao trabalho. - Não precisa responder se não quiser.
Por um instante, ela não voltou a usar sua
máquina de costura para terminar o vestido que fazia. Senti o olhar dela em mim
e precisei conter o sorriso que mostrava que eu estava satisfeita por causar
fascinação.
-
Não tenho irmãos. – Ela respondeu, antes de voltar ao trabalho. Notei que dessa
vez ela queria que o som da máquina ocultasse sua voz. – Em casa somos só eu e
a minha mãe.
Balancei a cabeça, mostrando que havia
entendido, mas sem tirar os olhos do trabalho.
Depois disso, ela começou a confiar em mim.
13 de julho
Diário de Kat
Começando do fim de forma a dar um nó na
cabeça de qualquer um: Tatiana é uma vampira agora.
Depois que o gelo quebrou as coisas nunca
mais voltaram a ser as mesmas. Não fiz mais perguntas pessoais para ela e nós
começamos a conversar sobre livros, música, arte e discutir nossos gostos. Ela
me fez uma ou duas perguntas sobre mim, especialmente sobre minha origem, mas
eu não quis responder e ela não insistiu. Depois brincamos de adivinhar as
verdades uma sobre a outra, mas ela não conseguiu acertar nada sobre mim. Aos
poucos, acredito, fui cativando-a, apesar de não ter certeza, já que ela não
mantinha um diário como as outras.
O processo que levou a sua morte começou
aos pouquinhos. Uma vez ela me disse sem querer sua opinião sobre o governo,
mas desconversou assim que eu insisti na história. De outra vez ela me disse
que sua mãe detestava ter que viver naquelas condições, justo ela que poderia
ser uma condessa, não fosse aquela maldita revolução. Fiquei sabendo depois
sobre o gênio de sua mãe e o quanto ela lutaria para conseguir o que queria.
Acordei na manhã de ontem com a notícia de
que a casa de Tatiana havia sido invadida e que todos que moravam ali –
Tatiana, sua mãe e alguns inquilinos, no andar de cima – haviam sido
assassinados. A notícia estava correndo na rua, mesmo que ninguém falasse sobre
abertamente, por medo. Na forma de gato, eu fui correndo até a casa dela,
torcendo para que desse tempo de fazer alguma coisa.
Encontrei seu corpo sozinho na sala. Ela
ainda respirava, mas estava desacordada e perdera tanto sangue que seria uma
questão de tempo até ir embora de uma vez por todas. Me transformei para a
forma normal outra vez e cortando meu pulso, forcei um pouco de sangue entre os
lábios dela. Com um suspiro vi seu corpo aceitando o sangue e me dei conta de
que havia muito tempo que eu não trocava sangue com ninguém.
Saí da casa com cuidado e fui até a minha
me trocar. Depois voltaria para a casa de Tatiana e esperaria que acordasse.
Enquanto esperava, me perguntava como explicaria para as meninas o que tinha
acontecido, e se havia alguma forma de elas aceitarem aquilo. Eu havia jurado
que nunca transformaria alguém que não tivesse escolhido ser vampira, o que não
era o caso de Tatiana. Foi um ato desesperado, porque eu não podia perdê-la,
principalmente não para algo tão sem sentido quanto um governo autoritário. Eu
precisei transformá-la, para salvar uma peça importante do meu Exército.
Quando ouvi os sons na casa de Tatiana,
entrei com cuidado. Encontrei-a de pé, atenta, mas meio atordoada. Expliquei de
forma animada o que ela precisava entender. Falar demais, de jeito nervoso
sempre faz com que o ouvinte relaxe e se torne protetor a meu respeito. Tatiana
não surpreendeu nesse aspecto, tentou me acalmar e quando conseguiu, ouviu e
acatou cada uma das coisas que eu disse. Quando chegamos até a frente de minha
casa, eu estava explicando a ela sobre o Exército. Sophie abriu a porta antes
que eu pudesse fazer isso.
- Você tem muito a explicar. – Ela disse
com os braços cruzados. – Especialmente a Ellie.
- Sophie, Tatiana. Tatiana, Sophie. –
Apresentei as duas com um suspiro, entrando em casa.
Antes de entrar, vi os olhos de Sophie
crescerem e sua voz sussurrando:
- Nossa! Você realmente é parente dos dois.
Lá dentro fui recebida por uma comitiva.
Até Pierre esperava fora de seu quarto, ansioso para receber sua bisneta.
- Ellie, eu... – Comecei, antes que Tatiana
entrasse.
- Calada. – Ela interrompeu. Seus olhos
faiscaram por um momento e eu me perguntei que diabos ela estava pensando. –
Deixe-me vê-la.
Sophie abriu espaço com cuidado e Tatiana
entrou junto com ela. Todos os olhos da sala se viraram dela para Ellie e de
repente, todas nós prendemos a respiração. Com passos suaves Ellie andou até
ela e os olhos de Tatiana reconheceram a antepassada. As duas pareciam estar
frente a um espelho. Ellie então me surpreendeu com um gesto: sorriu.
- Acho que devemos começar com a escolha de
uma pedra preciosa. – Ela disse, para todas nós. Então se virou outra vez para
Tatiana. - Qual sua cor preferida?
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