No
momento em que o último corpo caiu aos meus pés, o frenesi acabou.
Congelei
quando senti o cheiro de sangue espalhado por todos os lugares da casa onde me
encontrava. Cinco corpos estavam em volta da mesa: duas garotinhas, duas
criadas e o pai, acima de todos. O último corpo, aos meus pés, era o da mãe.
Todos mortos, com os olhos opacos que pareciam absorver toda luz.
Saí
pela porta da frente, cambaleando. Um silêncio mortal recaía sobre toda Cianne.
O cheiro de sangue estava em todos os lugares, inclusive em mim, me distraindo,
mexendo com todos os meus sentidos, fervendo minha cabeça, deixando minha
língua dormente. Gritei tentando me focar para me lembrar do que eu tinha
feito, mas cada respiração trazia o cheiro de sangue que me distraía.
Com
outro grito comecei a arrancar minhas roupas e quando vi que o sangue estava
preso na minha pele comecei a arranhar meu braço.
-
Sangue maldito! – Gritei ainda mais alto, arranhando meus braços.
Em
lágrimas, me sentei e encostei a cabeça no chão. Permiti que o cheiro de terra
invadisse meu nariz, mas mesmo ela estava impregnada de sangue.
Aos
poucos, lembrei de tudo. Meu velório. A procissão. Os gritos quando me
levantei. As primeiras gotas de sangue que desencadearam todo resto da noite.
Lentamente me dei conta de que tinha matado todas aquelas pessoas.
Cada
habitante de Cianne.
As
lágrimas caiam pelo meu rosto, pingando na terra seca e criando lama. Em alguns
minutos começou a chover, como se eu tivesse invocado a tormenta.
Comecei
a me lembrar de antes, antes dos assassinatos, antes da procissão. Lembrei de
outras noites chuvosas. De conversas antigas. De visitas de amigos, uma amiga
em especial. Me lembrei da febre, da dor, do incomodo intenso, de permanecer
constantemente no limbo entre consciência e inconsciência. Um buraco então,
como uma memória tirada de mim. E então tudo outra vez.
Eu
havia morrido.
Mas
também conquistara minha vingança.
Aquilo
era o inferno?
Um
som abrupto me colocou de pé. Pequenos passos vinham em minha direção,
despreocupados. Não consegui ver quem era até ela parar em minha frente.
Olhos
verdes e brilhantes se fixaram nos meus. Mesmo antes que abrisse a boca eu a
reconheci, reconheceria em qualquer lugar.
-
Não se preocupe, Kaylee. Vai ficar tudo bem.
Kat.
As Crônicas de Kat:
Bem-vindas ao século XX
Oceano Pacífico
1900
Entrada sem data no diário de Kat
-
Qual o número?
A
luz laranja do fim de tarde escorria pela janela minúscula do porão, anunciando
o fim do dia.
Nós
sete estávamos escondidas entre as bagagens de um navio que partia para os
Estados Unidos. Ellie dormia sentada, a cabeça reclinada sobre uma caixa de
madeira e as pernas dobradas ao lado do corpo. Sophie brincava com pingente do
colar, os olhos sem foco enquanto pensava em Deus Sabe o quê. Anika era a única
que não aparentava estar exausta, com os olhos atentos em Naomi, nossa nova
máquina de perguntas, enquanto Valentina e Miranda cochilavam com a cabeça
descansando em meus joelhos e ombro.
-
Cinco. – Anika respondeu, os olhos brilhando com orgulho.
-
Jura? – Naomi parecia pouco crente.
-
Sim. E me lembro de cada um dos assassinatos.
Isso
despertou seu interesse:
-
Detalhe-os para mim.
Antes
de começar, Anika lançou um olhar preocupado para Sophie, mas ela continuava
distraída, agora enrolando a corrente nos dedos. Dando-se por satisfeita,
começou a narrar suas histórias lentamente, descrevendo as mortes como um
artista descreveria suas pinturas.
Annie
havia sido ensinada como contar histórias desde pequena. Provavelmente
entreteve a arquiduquesa da Áustria por anos com aquele mesmo ritmo de voz,
palavras e sotaque. Fui relaxando conforme ouvia sobre as mortes. Havia estado
presente em duas das cinco, que aconteceram enquanto viajávamos para o Japão.
Ela contava de trás para frente, da última para as primeiras, as de Miranda e
Valentina. Quando começou essas, as gêmeas já estavam em sono pesado.
-
Miranda escolheu morrer por último porque tinha nascido por último. A irmã
havia visto seu nascimento, ela veria sua morte. Eu vi justiça nisso. Tomei
Valentina para mim e os olhos de Miranda se encheram de lágrimas. Quando a respiração de Valentina parou,
as órbitas cor de areia de Miranda imploravam para se juntar a sua irmã. Não
esperei muito tempo para realizar seu desejo.
Um
tom de melancolia se instalou no barco quando a dramática história terminou de
ser contada. Eu sabia muito bem que não havia sido assim. As meninas só pediram
ajuda para fugir e provavelmente já estavam mortas antes que pudessem se dar
conta. Anika bocejou e olhou para Naomi, mas os olhos de minha prima já estavam
em minha direção, então Annie deu de ombros e se acomodou aos pés da garota
cujo assassinato tinha acabado de descrever.
-
Você sempre tem esse ar misterioso? – Naomi perguntou, apontando para mim com o
dedinho.
- É
uma das minhas marcas registradas, assim como os olhos verdes e o rostinho
angelical.
Naomi
sorriu.
-
Mas não existem segredos em um grupo de vampiras.
Pigarreei,
surpresa.
-
Você conversou com Ellie.
- Eu
sou nova aqui. – Disse, dando de ombros. – Tudo que sei é que ser vampira é
perigoso. Preciso saber do máximo possível, logo preciso conversar com todas e
escolher as alianças que vou firmar.
Naomi
me surpreendeu ao acordar no cemitério. Nunca pensei que fosse se sentir tão
bem como vampira e tão animada para uma nova vida. Levantou todas as minhas
suspeitas. Ela continuava me surpreendendo a cada momento que passava conosco.
Eu ainda estava na defensiva quando ela começou com todas as perguntas, que
continuaram quando decidíamos pegar o primeiro barco para fora do Japão.
- A
primeira coisa que você deve saber é: Não ouça nada que as mais velhas tenham a
dizer.
Uma
sobrancelha foi erguida.
- As
mais velhas?
-
Ellie e Sophie. São as mais velhas em idade e as primeiras a ser transformadas.
São também as mais mortais, mais intensas e mais egoístas vampiras do grupo.
Tudo que elas fazem, fazem com segundas intenções secretas. Não as escute.
Naomi
piscou os olhos idênticos aos meus. Pela primeira vez, parecia preocupada,
mesmo tentando parecer indiferente.
-
Mesmo?
Sophie,
que então era a única acordada, finalmente saiu do transe e sorriu para mim.
-
Sim, mas tem outra coisa que você deve saber: Eu sou ainda mais velha, mais
egoísta e mais perigosas do que as duas.
Algum lugar da costa oeste Estados Unidos
07 de janeiro de 1901
As
perguntas de Naomi continuaram enquanto viajávamos e depois que chegamos: “Por
que nós nos chamamos de Exército?” “Quem era Deyah?” “Quem era Pierre?” “Então
vampiros têm alma?” “Então vampiros são ladrões de alma?”. Em algum ponto,
Ellie abriu a mala de couro que tinha todas nossas coisas importantes e tirou
meu diário lá de dentro, dizendo a Naomi que ele tinha todas as respostas.
O
silêncio durou pouco tempo: Dois dias depois, ela me procurou com perguntas
novas “Sophie sabia que Ellie dormiu com o noivo dela?”, “Qual foi a sensação
de matar sua mãe?”, “Como Deyah morreu?”, “Qual era o plano dela?” “Você se
pergunta onde está Pierre, já que é impossível que ele esteja no Inferno
propriamente dito?”.
Diante
desta última eu congelei.
- O
que você quer dizer?
Estávamos
em uma estrada, indo em direção à cidade mais próxima, mas ao quinto dia de
viagem Ellie sentiu o cheiro de um acampamento e disse que precisava caçar.
Saiu como as outras cinco, me deixando escondida com Naomi entre as árvores,
cuidando de nossas coisas. Naomi começou a gesticular:
- É
impossível para um ser que é físico ir para o inferno, isso foi algo que ficou
claro para mim há algum tempo. Seres humanos são espirituais e físicos, mas só
temos acessos a outros planos quando se tornam plenamente espirituais. Mesmo
Pierre sendo meio demônio, ele precisaria abandonar seu corpo por definitivo
para ir diretamente ao inferno e como ele é um portal, que consegue se
comunicar diretamente com os demônios e com seres físicos, não acredito que ele
seria burro de fazer isso.
Fui
pega de surpresa pela lógica dela, mas antes mesmo que pudesse dizer qualquer
coisa, senti o frio que os olhos de Ellie passavam sem sequer vê-la ou ouvi-la
se aproximar.
-
Não nos importamos com o que quer que Pierre esteja fazendo, desde que ele não
nos incomode. – Disse, baixo, mas ferozmente, atirando a lenha que roubara do
acampamento no chão.
Naomi
não se abalou.
-
Ele tem uma ligação eterna a esse grupo, Ellie. Ele é do seu sangue e foi
criado por você, Kat e Sophie. Ele não foi embora para nunca mais voltar, nem sabemos
o motivo pelo qual ele foi. Em algum ponto ele vai aparecer e sabe Deus o que
ele vai fazer quando voltar. Vocês têm que ter alguma curiosidade, nem que seja
apenas por autoproteção.
Seria
necessário muito mais sol para poder derreter aquela pedra de gelo em especial.
-
Temos coisas mais importantes com o que nos preocupar. – Disse Ellie, abaixando
para acender o fogo.
-
Ellie...
Se
Naomi ainda era muito nova no grupo para conseguir entender como Ellie se torna
perigosa quando é desafiada, no momento em que ela a encarou, incitando a
terminar a frase, ela entendeu o risco que corria e se calou.
-
Levou muito tempo para que livrássemos Kat da maldição - Ellie disse,
esfregando a lenha com cuidado - E agora precisamos cuidar de outra de nós.
O
uso de plural estava me incomodando.
- Eu
tenho palavra, Ellie. – Eu disse, me levantando - Vamos encontrar Charlottie.
Ellie
finalmente conseguiu produzir fogo.
-
Não é disso que estou falando.
- Do
que é então?
-
Sophie vem passado por coisas estranhas depois do encontro com a Morte.
Coloquei-me
de pé em um salto.
-
Que tipo de coisas?
-
Sonhos com memórias que ela tinha suprimido, alucinações quando ela passa
muitos dias sem sangue.
-
Por que ela não me disse isso?
-
Ela não ia contar para ninguém. Quer que a busca por Charlottie seja a
prioridade geral do grupo no momento. Percebi que ela estava aérea e quando
perguntei o que havia de errado ela me contou, mas não sem algumas ameaças.
Esfreguei
a têmpora antes de responder. Sophie está tendo alucinações por dois meses e
escondeu isso do grupo inteiro. Quer dizer, todas nós percebemos seu silêncio
em contraste com a personalidade amistosa e animada dela, mas depois do que
aconteceu é óbvio que ela seria afetada. Só que eu sempre pensei que se Sophie
enfrentasse algo como alucinações, ela contaria para todos. Somos um clã. Sem
segredos.
De
repente me dei conta de que de todas ali, Sophie era de quem se sabia menos.
Ela nunca contou sobre a infância, sobre sua mãe abusiva, sobre o assassinato
que cometeu quando ainda podia sentir remorso por isso e nem sobre Charlottie
ou seu relacionamento com ela. Também nunca se abriu sobre o fato de não poder
transformar vampiras. Sophie era a mais social e a mais tagarela e ao mesmo
tempo a mais fechada do grupo. Sua lealdade é inegável, mas não entendo como
ela pode esconder tanto de nós. Todas temos marcas escuras no passado, e no
presente também, é o que faz de nós um clã.
Tudo
que eu sabia era que precisava de uma longa conversa com ela.
A caminho de Chicago, Estados Unidos
11 de fevereiro
É a
primeira vez que eu estou em um trem e acabo de ouvir que ele vai em direção a
Chicago. Somos uma família de sete irmãs alojadas em uma cabine que só cabe
seis pessoas sentadas, em uma viagem
de 3 dias. Precisamos de muita hipnose para explicar nosso aparecimento
repentino no trem e fazer nossa história parecer convincente e mais ainda para
disfarçar o desaparecimento de alguns funcionários que precisaram ser mortos
desde que chegamos. Para os vestidos ensanguentados, foram necessários diversos
roubos e as gêmeas acabaram vestidas de menino.
- Só
me diga que vamos achar Charlottie. – Sophie pediu apertando minhas mãos com
força.
-
Nós vamos. - Foi Ellie quem respondeu - Talvez não tão rápido, mas vamos.
O
humor no vagão era histérico. Mesmo despois de algumas horas, continuamos muito
assustadas com o que aconteceu na estrada. Havíamos descoberto a primeira pista
sobre o paradeiro de Charlottie... e em seguida, enfrentamos a pior luta de
toda minha pós-vida.
Decidimos,
em uma espécie de assembleia, procurar uma bruxa para falar sobre as
alucinações de Sophie e para nos ajudar a encontrar Charlottie. Não interessa
em que parte do mundo você esteja, uma bruxa, especialmente de uma família
antiga é sempre a melhor fonte de informação. O problema é que até eu duvidava
muito que qualquer bruxa nos Estados Unidos soubesse qualquer coisa sobre isso,
então eu tomei essa decisão apenas como uma forma de acalmar os ânimos no
Exército até que descobríssemos um jeito de voltar para a Europa.
Tecnicamente – e eu sublinho esta palavra - Sophie é fruto de um incesto, e seu
corpo é completamente fechado para qualquer ataque de forças externas, a menos
que ela o permita. Se ela tivesse permito, a Morte poderia ter alterado a
proteção, mas sem isso, nem a própria Morte conseguiria amaldiçoar Sophie.
O
que seria isso tudo então? Sophie se recusa a falar sobre o que vê ou o que
sonha, a menos que seja com alguém que possa dar um jeito nisso. Ela diz que
está bem e quase arrancou a cabeça de Anika por ela sugerir a conversa com uma
bruxa sobre o assunto antes de partir atrás de Charlottie. A discussão só foi
resolvida depois que eu expliquei que a bruxa também poderia nos ajudar a achar
Charlottie.
Começamos
uma busca cidade por cidade, vilarejo por vilarejo por dias sem encontrar uma
bruxa sequer. Mesmo nos lugares onde havia boatos a respeito de bruxas, as
supostas casas delas encontravam-se abandonadas. Quando chegamos em um
território que chamam de Texas que tivemos nosso encontro perigoso. Pela
segunda vez desde que virei vampira, eu fui emboscada por um clã de vampiros.
Eis
o grande problema: nenhuma das minhas vampiras havia passado por isso antes.
-
Kat, was...? – Anika começou em alemão, quando vários vampiros apareceram
parados em uma estrada, em uma formação estranha, claramente esperando por nós.
Bem
que eu estranhei ver uma cidade e não sentir cheiro de humanos.
-
Vocês não têm permissão para estar aqui. – Disse um dos homens do clã. Ele era
alto, moreno e cheio de músculos. E tinha os dentes a mostra.
A
reação de Ellie foi rosnar de volta, o que fez com que o clã se movesse se
mexesse.
-
Ellie, quieta. – Eu disse, com a mente rodando.
Mais
de 20 vampiros adultos atacando 7 vampiras adolescentes é igual a 7 vampiras
adolescentes mortas. Eu precisava fazer algo que nenhum vampiro fez - ou pelo
menos registrou ter feito - na história do mundo: ser diplomática.
-
Nós não sabíamos. Estamos em um grupo pequeno procurando por bruxas. – Eu disse
sinceramente.
Um
burburinho começou, enquanto eles examinavam minhas palavras.
-
Boa tentativa. – Disse o mesmo moreno, que era porta voz ou líder do grupo -
Não é permitindo a bruxas falar com vampiros.
- O
que? – Anika soltou antes que eu pudesse controlá-la.
-
Não é permitido. É magia negra. Faz com que elas voltem como vampiras e nenhuma
bruxa iria querer isso. – Ele fez uma pausa - Vocês não são daqui. Aquela ali
tem sotaque.
-
Temos nacionalidades distintas. Estamos só de passagem.
-
Então já podem ir. E sugiro procurem aquela garotinha loura antes que cheguem a
Cianne.
-
Garotinha loura? – Sophie quase gritou demonstrando que estava ali.
-
Sophie! – Exclamei tentando tirar os flashbacks da outra emboscada da cabeça.
Mas
o moreno respondeu.
- É,
tinha sotaque. Nós não a atacamos porque ela correu antes que pudesse e de
qualquer forma ela foi em direção à Cianne, a cidade mais perigosa para
vampiros. Se chegar lá, ela estará empalada ou queimada em três dias.
Os
olhos de Sophie dobraram de tamanho.
-
Essa garotinha, o sotaque dela parecia com o meu ou com o de Anika?
- É
tudo a mesma coisa.
Sophie
começou a dar passos violentos em direção ao homem.
-
Não, não é! Me diga! Se lembre!
-
Sophie! – Gritei outra vez tentando puxá-la pelo vestido.
Mas
ela é mais forte que eu.
-
Você precisa se lembrar, precisa!
Os
rosnados na formação se intensificaram alertando perigo da proximidade.
- O
que você quer, garota?
- Eu
quero que você me diga como era essa garotinha.
-
Não a vimos, ela era loura e tinha sotaque. Ela berrava algo como “não a
queime, não a queime!” e dizia que precisava chegar a Cianne. É tudo que
sabemos.
Sophie
congelou então, os olhos completamente vidrados, deixando o nome da irmã
escapar dos lábios. Eu, que estava bem atrás dela, acabei deixando a pergunta
escapar.
-
Onde fica Cianne?
- Ao
leste daqui. É uma cidade aparentemente católica, mas todas as freiras que
mandam lá são bruxas. Se você sonhar em entrar na cidade, elas matam você. Não
existe lugar para um vampiro lá. Aquela garotinha já era.
E
foi aí que o caos começou. Com um grito Sophie se jogou em cima do homem,
arranhando e mordendo. Depois de um momento de choque, o clã dele atacou o
nosso, começando uma pequena batalha.
Não
existe a mínima possibilidade de sete garotas com idades entre 10 e 18 anos –
mesmo que elas sejam vampiras – ganharem uma briga com 20 homens enormes que se
preparam para momentos como esses. Mas meu exército lutou com tanta garra que
eu podia ouvir tantos gritos deles quanto os delas. O homem que Sophie atacara
jazia sem cabeça agora e enquanto ela se recuperava do frenesi e percebia o que
estava acontecendo, eu entrava em um corpo a corpo com um louro mal-encarado,
com um sorriso que me lembrava Pierre. Eu sentia meus ossos se quebrarem, mas a
adrenalina me impedia de sentir a dor imediatamente. Eu precisava quebrar uns
ossos, precisava causar dor nele... Foi quando eu ouvi o som do trem.
O
berro ensurdecedor do apito fez o mais insano plano de fuga aparecer na minha
cabeça. Situações desesperadas pedem medidas drásticas e foi por isso que com
um chute certeiro eu me livrei do meu atacante a tempo suficiente para gritar:
-
Ellie, Sophie, O TREM!
No
mesmo instante o primeiro vagão surgiu na linha de visão das duas, que
arregalaram os olhos no meio das suas lutas e entenderam o plano. Naomi, Anika,
Valentina e Miranda também olharam para mim, mas esperaram por receber
instruções das duas mais velhas com quem eu conseguia me comunicar apenas com
olhares. Entre as brigas e os sinais, mais ossos eram quebrados e eu podia ver
a bacia de Miranda completamente deslocada, enquanto um osso brilhava embaixo
do joelho de Anika.
-
Precisamos tentar, agora. Chutem e corram.
No
meio da batalha os homens não prestaram atenção no que eu dizia e o choque de
ver suas presas tentando escapar ao invés de lutar os deixou atônitos por tempo
o suficiente para que nós pulássemos para dentro do vagão.
De
repente, eu estava dentro do trem que corria desesperado em direção a uma
montanha e com as dores dos machucados começando a surgir. Só conseguir soltar
um suspiro de alívio quando contei seis vampiras comigo.
A caminho de Chicago
12 de fevereiro
-
Ela é sua irmã mais velha? – Naomi perguntou, sozinha na cabine com Sophie que
olhava pela janela do trem.
Eu
estava parada na porta, observando a conversa. As outras quatro estavam
espalhadas pelo trem conversando e animando os outros passageiros. Não parecia
certo que Sophie não estivesse com elas.
-
Sim. – Sophie respondeu, simplesmente.
-
Mas ela foi transformada quando era mais nova do que quando você foi.
-
Isso.
Naomi
parou por um momento e enquanto observava a calma de Sophie, corou. Ela tinha
mais uma pergunta, mas estava constrangida. Respirou fundo e tentou começar
algumas vezes, mas sempre parava. Então soltou tudo de uma vez só.
-
Você odiava vampiros antes que Kat transformasse você... Foi por causa de algo
que Charlottie fez, não foi? Você a detestava pelo que se tornou e detestava
sua mãe por tê-la feito se tornar aquilo. O que ela fez?
Eu
esperei por uma explosão e pela linguagem corporal de Naomi ela estava pronta
para sair correndo a qualquer minuto, mas Sophie simplesmente suspirou.
-
Perguntas demais e suposições demais, Naomi. – Disse dobrando os braços sobre o
peitoril da janela e descansando a cabeça nos braços. - Sou uma vampira agora,
não importa o que aconteceu antes disso.
-
Mas...
-
Naomi. – Interrompi. Não queria mais uma a favor da morte de Naomi – Você pode
me deixar a sós com Sophie por um momento... – A frase saiu assim, mais uma
ordem que um pedido.
Ergui
a sobrancelha para deixar claro para os olhos Petry insolentes que me
encararam, que o que eu ia fazer era importante. Então ela saiu, bufando.
Sentei
ao lado de Sophie, que não havia se movido. Depois de esperar qualquer reação
por alguns minutos, eu peguei uma mecha dourada de cabelo e deixei escorrer
pelos dedos.
-
Você sempre foi a que ofereceu mais e pediu menos.
Ela
suspirou. Não deu para notar se de tédio ou angústia.
- E
o que isso trouxe para mim?
-
Lealdade.
- É,
até parece, aposto que todas me odeiam agora.
-
Primeiro, vampiras não podem odiar. E segundo, por que elas fariam isso?
-
Porque ainda ontem eu expus todas elas a um perigo mortal.
-
Sophie, você é a única entre nós que teve a chance de ter tudo que você sempre
quis e abandonou pelo bem do Exército. Todas aqui matariam – apesar de essa
parte ser mais fácil - e morreriam por você.
- Eu
não sou tão altruísta quanto você faz parecer, Kat.
-
Não estou falando de altruísmo, Soph. Estou falando de lealdade. Ninguém aqui
tem nenhuma razão para duvidar de você ou de seus motivos, quer você fale sobre
eles, quer não.
Sophie
fechou os olhos e esfregou a testa com força antes de dizer.
-
Aposto que você está cheia de perguntas.
- E
você cheia de confissões a fazer.
Eu
vi um sorriso surgir, ainda tímido.
-
Pergunte.
Suspirei,
me dando tempo para pensar. Ela tinha aberto uma brecha em sua armadura, mas eu
ia mostrar que ela podia confiar em mim, evitando o assunto “vida humana”.
-
Como você descobriu que não podia transformar pessoas em vampiros? – Perguntei
achando que havia começado bem.
Ela
sorriu outra vez, dessa vez com crueldade.
-
Vamos apenas dizer que eu sou responsável por uma das mortes mais misteriosas
da história do seu país natal.
Não
entendi por um momento, mas depois me lembrei da primeira pessoa que ela quis
transformar.
-
Você matou o príncipe Rudolf? – Era mais uma acusação do que uma pergunta.
- Na
verdade, eu matei a amante dele primeiro. O maldito mulherengo parecia ter
esquecido completamente de mim, mas não levou muito tempo para que eu o fizesse
se lembrar. Então eu descobri que não podia transformar vampiros. É como antes
do Inferno mexer em sua maldição, meu sangue simplesmente não tem efeito
nenhum. Eu fiquei encarando o corpo frio e sem vida dele por horas, sem saber o
que estava acontecendo. Só depois lembrei do meu maldito corpo fechado. Fiz
parecer suicídio, como Ellie me ensinou, e fui embora.
Eu
estava chocada.
-
Sophie... Por que você não...?
-
Vocês nem sabiam que eu tinha ido para Viena naquela semana. Já havia se passado
9 anos e ninguém imaginou que eu fosse querer ver o Príncipe àquela altura.
- E
se desse certo? Você sabe que um homem nunca poderia entrar no Exército. Foi
uma das principais regras de Deyah.
Ela
se afastou do peitoril da janela e ao olhar para mim, lançou um fogo turquesa
na minha direção.
-
Você sabe a resposta.
E eu
realmente sabia.
-
Foi assim que a Morte ficou sabendo de suas intenções.
Ela
deu de ombros.
-
Provavelmente.
Eu
não sabia o que dizer, então nada disse. Sophie continuou me encarando,
esperando por algo, mas nem me movi. Por fim, suspirou.
- Eu
realmente sou leal a você, Kat. E às garotas. – Completou, revirando os olhos -
Mas às vezes eu me sinto como me sentia quando era humana e a minha humanidade
é a última coisa da qual eu quero me lembrar. Charlottie é a única coisa
preciosa que eu perdi e que quero de volta.
Mantive
a calma, mesmo me sentindo confusa.
- Eu
disse que não temos motivo para duvidar das suas intenções. – Confirmei.
Sophie
voltou a olhar pela janela.
-
Até quando a Anika souber que eu matei o irmão da melhor amiga dela?
-
Ela vai sobreviver a isso.
Chicago
15 de fevereiro
-
Como o termo “a cidade mais perigosa para vampiros” pode ser atraente?
- E
quanto à regra nº 1? “Não mexa com bruxas”.
-
Uma coisa é enfrentar 20 vampiros, outra coisa completamente diferente é
enfrentar uma cidade inteira de bruxas sanguinárias que acham que até conversar
com vampiros é magia negra. Elas nem vão nos ouvir antes de colocar fogo na
gente.
-
Chicago é uma cidade tão linda, por que não podemos ficar?
Eram
cinco contra dois. Teoricamente, porque Ellie não expressava opinião nenhuma
sobre ir para Cianne e já que ela não ajudava, eu só podia pensar que não
queria ir já que ela é a única que podia controlar as três mais novas.
- É
a única pista que temos de Charlottie! – Sophie insistia.
- Se
ela chegou mesmo a Cianne, nós não vamos a encontrar. – Miranda dizia, batendo
o pé.
-
Mas precisamos procurar.
-
Precisamos, mas não em Cianne. – Anika completou.
- É
a única pista que nós temos. – Eu disse, tentando me envolver.
- E
que vai nos levar direto para a morte! Kat, nós não vamos desafiar uma cidade
inteira de bruxas.
- A
Morte nos quer! – Sophie já ficava vermelha do esforço. - A força terrena mais
poderosa faria de tudo para nos destruir! E vocês estão com medo de bruxas?
- É,
bem lembrado. – Miranda continuava, com um tom de desprezo na voz – A Morte
está nos procurando então vamos atrás de algumas servas dela para que elas
façam o serviço.
-
BRUXAS NÃO TRABALHAM PARA A MORTE! – Gritamos em uníssono eu, Sophie e até
mesmo Anika, exasperadas.
Um
silêncio constrangedor se seguiu a isso, como se todas finalmente percebêssemos
que estávamos brigando.
-
Será que vocês não entendem? – Ellie começou, finalmente se pronunciando -
Somos o clã mais procurado do mundo. Terra e Inferno querem qualquer uma de nós
sete, custe o que custar. Vocês vão mesmo brigar? Se dividir? Todas nós estamos
indo para Cianne porque Sophie precisa e Sophie é uma de nós. Somos parte de um
todo e somos juntas o motivo pelo qual cada uma de nós está viva hoje. Anika,
Miranda, Valentina e Naomi vocês não estão autorizadas
a sentir medo. Vocês são vampiras agora e a pós-vida é muito mais do que ir de
cidade em cidade roubando coisas e tendo sangue a vontade. Nós fomos criadas
para sermos grandes e temos um propósito importante a cumprir. E é por isso que
você, Kat, não vai entrar na “cidade mais perigosa para vampiros” de qualquer
jeito. Você é uma líder, existem coisas importantes a serem consideradas.
E
assim ficou decidido nosso destino.
Cianne, Estados Unidos
19 de julho de 1907
Diário de Kaylee
Desde
que papai soube sobre as garotas me aborrecendo na escola, resolveu que eu
devia ser mais honesta com ele sobre o que acontece na minha vida. Depois
percebeu que seria quase impossível já que ele nunca está em casa e também não
me deixa passar as tardes na igreja, então, me comprou este diário e pediu que
eu anotasse tudo que acontecia, assim não me sinto sozinha.
Mesmo
não levando muito disso a sério, quero fazer tudo direito então acho primeiro
eu deveria me apresentar. Meu nome é Kaylee Jones e eu tenho 7 anos. Nasci e
moro em Cianne, uma cidade minúscula no interior da Virgínia. É a cidade mais
católica dos Estados Unidos e eu consegui dar o azar de ser filha única de um
reverendo protestante que tem o ódio de algumas das mulheres que
coincidentemente são mães das garotas que me atormentam na escola. Mas nada
disso é importante de verdade.
O
importante é que hoje aconteceu uma das coisas mais estranhas e ao mesmo tempo
mais mágicas de toda a minha vida.
Estava
dormindo quando senti alguém brincando com meus cabelos. Fiquei em um estado
sonolento, por alguns instantes, sentindo os fios serem enrolados, manuseados,
dedilhados e jogados sobre o travesseiro com delicadeza. De repente senti uma
pressão, como se meus cabelos estivessem sendo puxados, mas sem dor. Abri os
olhos e me dei com uma garota, sentada em minha cama sem a menor cerimônia.
-
Olá, dorminhoca. – Ela disse, os olhos incrivelmente verdes brilhando mesmo no
quarto escuro.
-
Quem é você? – Perguntei esfregando os olhos, com sono demais até para sentir
medo.
-
Uma nova amiga. Katerina. E você?
-
Kaylee. – Respondi antes de poder me impedir.
Cobri
então a boca, me dando conta da situação toda. Minha primeira reação foi gritar
papai que dormia no quarto ao lado, mas então pensei “qual a pior coisa que uma
garota do meu tamanho poderia fazer comigo?” e me permiti relaxar.
- O
que faz aqui, Katerina? Hmm, posso te chamar de Kat?
Ela
abriu um sorriso de gato que me fez soltar uma risada.
-
Claro. Eu só quero me divertir com você.
-
Como?
-
Nós podemos brincar!
-
Mas está tão tarde! – Exclamei começando um bocejo.
-
Nunca é muito tarde, Kaylee. A noite é uma criança.
Mas
eu estava cansada demais e mesmo com ela me puxando pelo braço, eu voltei a me
acomodar na cama e dormir. Acordei com a sensação de que alguém ainda estava
comigo e uma marca na cama que mostrava que não havia sido apenas um sonho.
6 anos antes
Como
Kat foi presa sem o diário, essa parte da história nunca foi documentada.
-
Como bruxas conseguem identificar vampiros? – Sophie perguntou meio ofegante da
caminhada.
O
rosto dela estava mais corado e mais tranquilo do que havia estado durante
meses. O fato de enfrentar bruxas malucas não dava medo, isso era tudo que ela
havia feito por anos. Tudo que ela queria era saber o que acontecera com
Charlottie e agora se sentia mais próxima disso.
-
Você está 28 anos atrasada para essa pergunta. – Kat respondeu com uma risada.
-
Muito engraçado, Katerina. É sério, como?
Ela
deu de ombros.
-
Existem várias formas, mas nesse caso acredito que um feitiço protege Cianne.
Se ele está ligado às bruxas elas conseguem sentir invasores.
-
Então nós estamos indo direto para o covil de um bando de bruxas preparadas
para arrancar nossas cabeças antes que tenhamos tempo de fazer perguntas?
-
Basicamente.
A
essa altura elas avistaram o portal de Cianne e se viraram para chamar as
outras cinco que andavam mais devagar. O frio cortava, mas elas andavam havia
tanto tempo que seus corpos estavam suficientemente aquecidos.
Alguns
dias foram necessários para se prepararem para ir a Cianne. Os complicados
vestidos haviam sido trocados por modelos mais simples, as antigas bolsas de
couro em que levavam as coisas importantes haviam sido substituídas por
mochilas resistentes de lona e todas usavam sapatos confortáveis para longas
caminhadas. A mudança de século era óbvia para qualquer um que olhasse.
Paradas
em frente ao portal, então, as sete respiravam em uníssono. Podiam ver toda a
cidade através dele. Cianne era cortada por uma estrada que subia morro acima
até uma enorme igreja. Em volta da estrada uma infinidade de casinhas de
madeira descansava à sombra da igreja, que era claramente o principal ponto da
cidade, sua posição demonstrando que estava acima e protegia todos os
habitantes de Cianne.
Kat
sentiu um arrepio enquanto tentava entender como o feitiço funcionava. Não ia
tentar entrar; aquele território pertencia
às bruxas e as leis das bruxas podiam ser muito cruéis. O único jeito de
conseguir alguma coisa seria se alguém saísse.
-
Vamos montar um acampamento. – Kat disse, finalmente olhando para os olhos que
a observavam, esperando por instruções.
Elas
se entreolharam.
- Se
for uma bruxa a sair, ela vai sentir nossa presença e atacar. – Foi Anika quem
disse, demonstrando a preocupação geral.
- Se
isso acontecer, nós precisamos estar em guarda. Elas não virão em grade grupo
para não deixar a cidade desprotegida. Precisamos descansar para estarmos
prontas para o que quer que aconteça.
Tendo
dito isso, Kat se virou e foi para baixo de uma árvore na estrada, perto do
portal, mas não o suficiente para oferecer perigo. Com um suspiro, as outras
seis se juntaram a ela.
-
Tem certeza de que aqui é seguro? – Ellie perguntou quando Kat se sentou.
-
Essa árvore é muito antiga para oferecer proteção. A guarda delas é fornecida
pelas pedras no portal. – Disse fazendo um gesto distraído, em direção às
pedras preciosas diversas encravadas no portal de pedra.
Com
isso, todas relaxam um pouco, mas continuaram hesitantes. Sentaram em um
círculo e permitiram que o cansaço da viagem tomasse seus corpos.
Vampiros
também se cansam, é claro. Seus corpos físicos continuavam funcionando
normalmente depois de terem sua alma roubada. Só tinham seus sentidos e corpos
aprimorados pelo mesmo motivo de que quando alguém perde um sentido, os outros
se intensificam: ao perder seu lado espiritual, todo lado físico se aprimorava.
Mas em algum lugar, a alma presa continuava clamando pelo corpo perdido e o
corpo ouvia seus lamentos. Sem poder fazer nada para alcançar sua própria fonte
de vida era necessário um pouco da vida alheia para sobreviver. Sangue.
Aquelas
pobres criaturas desalmadas descansaram à sobra da árvore em silêncio por
horas. Já começavam a precisar de sangue quando alguém finalmente colocou os
pés fora de Cianne. Era claramente um caçador, que partia para desmontar
armadilhas e levar a caça para a família. Ele franziu os olhos ao ver as
criaturas que o esperavam além do portal.
As
vampiras se entreolharam, indecisas sobre o que fazer. Até que Sophie suspirou,
se levantou e matou o homem, jogando-o sobre o portal. As vampiras então se
colocaram em guarda, em uma formação que partia de Sophie, e em silêncio. As
portas da igreja se abriram quase imediatamente e uma formação triangular saiu
de lá. O grupo quietinho no portal então não demonstrava a mínima sombra da
inquietude que as havia impedido de querer ir para lá nas semanas anteriores.
Elas eram vampiras afinal, eram feitas para momentos como aquele.
Logo
as bruxas estavam em frente ao portal, observando aquelas sete, em um silêncio
sepulcral. Kat franziu a sobrancelha, estava esperando – quase pedindo - por um
ataque imediato. Surpresa por este ataque não vir, resolveu falar antes que
Sophie tomasse a dianteira outra vez.
- Em
primeiro lugar, falar com vampiros não é magia negra. Acredite, é necessário
muito mais que isso para se sujar. E de qualquer forma, não há com o que se
preocupar. Só viemos descobrir uma coisa, ninguém precisa morrer. – De repente
pareceu se lembrar do corpo do homem atirado sobre o portal – Bem, ninguém mais.
Elas
continuaram em silêncio. As faces de pedra de cada uma das freiras nem se mexia
ao respirar.
-
Sophie... – Kat incitou, esperando que fosse respondida.
- Há
alguns dias uma garotinha estava tentando chegar até aqui, uma vampira. Ela
chegou? E se chegou, ela está viva?
As
vampiras que não estavam envolvidas na conversa perceberam o fato de que não
havia ninguém nas ruas, nenhum curioso para observar aquela cena no mínimo
bizarra. Não parecia acaso.
Um
longo período de tempo se passou, sem nenhuma resposta. Sophie tentou repetir a
pergunta, mas Kat a impediu, com um sinal com as mãos. Em silêncio, ela olhava
a formação, tentando entender o que estavam fazendo, porque não atacavam.
Observou os olhos focados nas vampiras e os pés recolhidos atrás do portal.
Seis bruxas estavam ali. Um número pequeno, menor que o clã de Kat e sequer era
um número que significasse alguma coisa como sete ou treze.
Sophie
se controlava para não explodir e atacar aquelas bruxas, mas – principalmente
por causa do que havia acontecido da última vez - confiava em Kat o suficiente
para deixar que ela decidisse o que fazer. Kat apenas olhava, decidida a tentar
entender a cabeça daquelas mulheres, esperando por um movimento. Ela sabia que
não havia movimento algum, mas ao mesmo tempo sentia alguma coisa, como se
espirais de vento dançassem do outro lado do portal. Ela encarou os pés das
bruxas. Parados exatamente onde deviam.
-
Solo sagrado. – Sussurrou.
Elas
não podiam sair. A magia naquele solo estava ligada às seis. Na verdade,
deveriam existir sete delas e por algum motivo, talvez segurança, uma delas não
estava ali. Enquanto as bruxas permanecessem na cidade aquele solo era sagrado
e protegido, mas caso uma delas deixasse Cianne ou morresse sem deixar
substituta, a cidade estava desprotegida.
No
momento em que Kat se deu conta, o grupo se moveu, se abriu, mudando a formação
incompleta. Uma das bruxas que estava atrás na formação, foi à frente,
segurando uma bolsinha negra nas mãos. Olhou diretamente para Sophie e então
virou a bolsinha no chão, deixando uma quantidade maior do que a esperada de
cinzas de espalharem pelo ar.
As
bruxas começaram a cantar uma canção sibilante e hipnótica e, mesmo sem querer,
as vampiras se aproximaram, enquanto os sons as envolviam. As cinzas no ar se
fecharam, se uniram e começaram a formar imagens. O canto distraía Kat, que
tentava entender a letra, mas as outras vampiras observavam as cinzas que
dançavam no ar.
Logo
as cinzas formaram a imagem de uma pessoa, uma garotinha, que parecia jovem
demais de qualquer ponto de vista. Ela gritava, se contorcendo aparentemente
sem motivo, até que as cinzas começaram a tomar forma de chamas, consumindo a
imagem da garotinha aos poucos até que tudo fosse fogo. A bruxa a frente parou
de cantar e abriu um sorriso embranquecido e foi isso que fez com que Kat
percebesse a imagem sob suas mãos.
O
canto parou de repente e foi substituído pelo longo grito de Sophie. Ela estava
tendo outra alucinação, uma extremamente intensa. As bruxas esperaram, em
silêncio e as vampiras não romperam sua própria formação, já acostumadas com as
crises.
Conforme
o silencio de Sophie chegava lentamente, Kat ergueu os olhos para as bruxas.
-
Ela está morta, não está? – A pergunta de Ellie era vazia e não foi respondida
porque a resposta já tinha sido mostrada com as imagens das cinzas.
Kat,
no entanto, não entendia. Bruxas que haviam feito um feitiço de santificação do
solo para proteger sua própria cidade, viam vampiras se aproximando e
respondiam sua pergunta. Não atacavam, porém, permaneciam ali, paradas como se
protegendo o solo sagrado no qual de qualquer forma um vampiro não poderia
entrar. Algo estava errado ali... Algo estava muito errado ali.
-
Charlottie. – Sophie gemeu entre dentes.
Então
ergueu os olhos e encarou as bruxas à sua frente. Com passos determinados se
dirigiu até elas. Todas as vampiras prenderam as respirações, exceto por Kat
que simplesmente esperou para ver. O solo era sagrado, logo Sophie – uma
criatura do Inferno, mesmo que tecnicamente liberta (mas só tecnicamente, sua
alma ainda ardia lá) - não conseguiria entrar... A menos que...
Quando
Sophie chegou à beirada do portal, todas as bruxas deram um passo para trás,
fazendo com que a vampira caísse no chão com a força que colocara em seus
passos. Caísse no chão dentro da cidade.
As
bruxas fizeram menção de finalmente atacar, mas as vampiras que ainda esperaram
correram à frente. Mais um passo para trás e seis vampiras estavam dentro de
Cianne. Confusas elas observaram os rostos de mármore das bruxas e olharam para
Kat. A compreensão atingiu unicamente o rosto de Anika que se xingou em alemão.
Kat suspirou e andou devagarzinho até a frente do portal. Encarou as bruxas com
os olhos petulantes, como se dissesse “Ok, elas são suas. Mas não vão sozinhas.
Jamais.”.
Elas
se afastaram mais um passo dando espaço a garota corajosa. Nenhuma palavra foi
dita, mas o que bastava era a intenção. Tudo que foi preciso era que elas
fossem convidadas a entrar. E agora estavam presas no território delas.
Essa
é a grande magia do território sagrado, vampiras não podem entrar. Mas quando
entram, não podem sair.
Cianne
20 de julho de 1907
Diário de Kat
Finalmente
peguei essa porcaria de volta. E a pior parte é que ele jazia intocado, atirado
ao porão junto com todas as outras coisas importante que trouxemos. Elas sequer
leram meus registros. E eu achando que elas eram inteligentes. Que droga.
Vou
pegar o caminho curto e dizer que nós, o Exército de Kat, o clã mais procurado
do mundo, aquele ao qual foi confiado uma tarefa que mudará o mundo conhecido e
desconhecido, pelo qual a Morte e o Inferno estão em luta constante graças a um
segredo que nem nós mesmas conhecemos, somos prisioneiras de seis freiras há
seis anos.
Elas
nos atraíram para solo sagrado e então com um feitiço tão antigo que nem mesmo
Anika conhecia, nos apagaram e nos prenderam na torre da igreja. Acordamos vestidas
com hábitos, sem nossas roupas ou pertences. Havíamos sido jogadas no chão de
uma sala de pedra, circular e vazia com uma janela gradeada que deixava a luz
entrar, mas era alta demais para ser alcançada por qualquer uma de nós –
principalmente eu.
Felizmente,
estávamos todas ali, o que era o mais importante para mim. A questão é: por quê? O que aquelas bruxas psicóticas
com rosto de mármore queriam de nós? Por que elas não atacavam? Esperamos a
resposta por dias, semanas, meses. No início imaginávamos que elas estavam
esperando o momento certo para queimar-nos em praça pública. Mas quando os três
primeiros meses passaram, começamos a deixar essa ideia de lado.
Ali
dentro, vimos primavera e verão passarem e o inverno se aproximar aos poucos.
Não tínhamos muito para fazer ou energia a gastar, por isso a sede veio aos
poucos, mas quando veio, veio de forma poderosa. Percebi quando o ano novo
chegou. A cidade teve festivais de fogos por sete dias seguidos entre o Natal e
primeiro de janeiro. Os dias eram entediantes e eternos. A incerteza do que
aconteceria conosco fazia com que eles parecessem cada vez mais longos, uma
infinidade nasceres e pores de sol picotados por sonos inquietos.
Evitávamos
nos movimentar para não ficarmos fracas muito rápido. Àquela altura a sede já
era insuportável e nos distraíamos imaginando como mataríamos cada uma das
bruxas. O cheiro de sangue não alcançava a sala onde estávamos com tanta
facilidade, mas era normal que nós nos pegássemos lembrando a sensação de ter
uma veia pulsante sob os nossos dedos.
Já havia mais de um ano que estávamos ali. A
cada dia eu me perguntava como suportava aquilo, como ainda estava viva.
Tentava lembrar quanto tempo vampiros sobrevivam sem sangue, até me dar conta
de que eu realmente não sabia a resposta.
Costumávamos
conversar para nos distrair, mas quando o segundo verão ali começou mal se
ouviam sussurros. Na maior parte do tempo tudo era silêncio. Mas o desejo por
sangue parecia gritar em minha cabeça.
Um
dia Naomi acordou determinada: Deveria haver algo que a gente pudesse fazer.
Mas o quê? Já havíamos tentado abrir a porta de pedra da sala e ela não se
movera um milímetro. A janela era inalcançável a menos que uma de nós voasse.
- E
eu acho que voa. – A voz sussurrante e claramente cheia de dor de Sophie ecoou
pela sala. Todas franziram a testa. - Ellie? Ela pode se transformar em
morcego.
A
compreensão caiu como uma tempestade.
-
Não é assim tão fácil. – Eu disse quebrando um silêncio que mantinha haviam
dias. – Ela precisa de algumas condições específicas.
Os
olhos de Ellie estavam fundos e mais escuros. O gelo natural havia sido
substituído por um tom de céu antes de uma tempestade de neve. Mas, mesmo que
seus olhos demonstrassem sua exaustão, a aparência de Ellie continuava
completamente impecável. A mesma roupa preta que ressaltava o pálido de nossas
peles e fazia com que parecêssemos fantasmas, fazia com que sua pele assumisse
um tom perolado maravilhoso.
-
Não sei se estou forte o suficiente para isso. – Ela disse e eu notei um tom de
frustração em sua voz. - Além do mais o que eu poderia fazer? Não dá para
carregar um corpo até aqui.
-
Mas, talvez, você pudesse trazer alguma coisa que facilitasse a nossa saída. –
Miranda disse, parecendo um pouco mais animada.
- Ou
quem sabe... – Valentina continuou, mais cética – Kat pudesse ensinar
transmutação a todas nós.
-
Não há espaço o suficiente aqui. – Eu disse, cansada. – E como eu já disse, não
temos as condições necessárias para o feitiço.
-
Feitiço? – Naomi disse apertando os olhos - É um feitiço? Desde quando vampiras
podem fazer feitiços?
Eu
ia explicar, mas Ellie me interrompeu.
- É
um encantamento. São necessárias palavras e concentração, mas não envolve a
natureza, envolve apenas o Inferno. Então não é bem um feitiço.
Finalmente
todas pareceram compreender a situação e as perguntas acabaram. Então as três
se deitaram e a sala voltou ao silêncio.
Mais
dois dias se passaram sem que nada acontecesse. Eu me focava nas sombras que o
sol e a lua faziam pelas as grades da janela para tentar ignorar a sensação que
tomava meu corpo aos poucos. Era pior do que fome, pior do que aquela frieza
antes de morrer. Era uma queimação na ponta da barriga e que subia e tomava meu
corpo inteiro. Dava vontade de matar tudo e todos que eu encontrasse na frente
e ao mesmo tempo deixava meu corpo enfraquecido, impedindo que eu me movesse...
Era como se minha alma estivesse sendo puxada para o inferno...
-
ELLIE! – Gritei com a realização do que ia acontecer se não conseguíssemos
sangue LOGO – Você precisa ir lá fora. Agora.
- Eu
não consigo. – Ela gemeu, se virando para o outro lado.
Ela
estava encolhida como uma bola no chão frio. Todas as outras – exceto Naomi que
dormia profundamente - já haviam se sentado e estavam olhando para mim, com um
brilho curioso por trás do olhar cansado.
Eu
me levantei, tirando forças das profundidades do Inferno e me sentei à frente
de Ellie.
-
Não, Ellie, você não entende. Você precisa ir, nós estamos muito próximas de um
fim horrível. Precisamos tentar o máximo que pudermos.
Ela
não disse nada, mas apertou os olhos como se tentando se proteger das minhas
palavras.
-
Ellie, por favor. Por favor. Você é a
única que pode fazer alguma coisa para sair daqui.
-
Katerina. Eu. Não. Posso. – Ela parecia ter algo embolado e preso na garganta.
As palavras saíam com esforço, tão desanimadas que me atingiram como um soco.
Ellie sempre foi a mais agressiva do grupo, a mais motivada, a mais sanguinária. Era minha arma, meu
triunfo, minha obra-prima, minha primeira vampira. E agora não passava de um
sopro de pessoa, como os corpos reanimados da Danse Macabre.
-
Eleanor. – Disse objetivamente. Senti um clima tenso se instalando na sala e se
fechando em volta de mim. Ninguém chama Ellie de Eleanor, a menos que algo
realmente sério esteja acontecendo. - Eleanor Pleurer. Olhe para mim. Olhe para
mim agora.
Os
olhos apertados levaram alguns segundos para abrir. A falta de brilho naquele
azul gelo quase me tirou o fôlego.
-
Quando você sair haverá uma cidade inteira só para você. Quanto sangue você
quiser. Todo sangue que você precisa e mais. Tudo que você precisa fazer é se
concentrar e pensar nas palavras. Faça isso enquanto ainda há sangue pulsando
nas suas veias, mesmo que de forma fraca. Se transforme em morcego e saia
daqui. A única coisa que eu peço a você é que volte. Traga alguma coisa que
possa me ajudar a sair daqui como gata. Eu vou dar um jeito e todas teremos
sangue logo, logo. Você só precisa sair, ficar forte e trazer algo para me
ajudar a sair. Só isso. Eu peço em nome da sua fidelidade por mim. Por favor,
Ellie. Por favor.
Ellie
fechou os olhos por um momento e seu rosto pareceu relaxar.
- E
se elas sentirem que eu saí?
-
Elas sabem que há vampiras na cidade, não vão se dar conta de sua localização
exata.
-
Kat, eu não sei...
-
Qual a diferença, Ellie? – Anika interrompeu, claramente frustrada. - Vamos
morrer de qualquer jeito.
-
Precisamos pelo menos tentar. – Miranda completou, com a voz embargada.
Ellie
se sentou, o hábito deslizando pelo chão. Lançou um olhar para mim como se
precisasse de um último incentivo. Eu balancei a cabeça.
Então
ela se pôs de pé. Andou devagar até a luz que entrava pela janela gradeada e
depois de encarar a lua por alguns segundos, fechou os olhos. 30 segundos
depois um morcego saiu voando através das grades enquanto o manto negro ia ao
chão.
21 de julho
Diário de Kaylee
Acordei
tão lânguida esta manhã que acabei levando palmatória na escola em todas as
aulas. Eu simplesmente não conseguia me concentrar.
O
fantasminha que surgiu há duas noites não voltou a aparecer, mas deixou marcas
em minha mente que eu acredito que nunca irão embora. Durante horas dos dias
seguintes tudo que eu pude fazer foi tentar lembrar aqueles momentos em que ela
apareceu. Não foi nada e foi tudo ao mesmo tempo.
Eu sei que
ela é real. Não sei explicar como, mas sei.
E eu espero que ela volte mais do que desejo qualquer outra coisa.
Continuação da entrada do dia 20 de julho de 1907 no diário de Kat
Fazia
horas que o silêncio reinava e a agonia da sede de sangue agora era encoberta
pela ansiedade. Estávamos sentadas em um círculo e meus olhos corriam pelos
diferentes tons de olhos na sala.
O
castanho de Anika. O areia de Miranda e Valentina. O violeta de Sophie. O verde
de Naomi. Castanho. Areia. Areia. Violeta. Verde. Castanho. Areia. Areia.
Violeta. Verde.
O
barulho que Ellie fez ao chegar sobressaltou todas ao mesmo tempo. As barras de
metal da janela caíram no chão fazendo um som estridente e Ellie entrou rolando
pela janela, caindo em pé no chão.
-
Hey. – Disse sorrindo e alcançando o hábito no chão enfiando-a pela cabeça.
Estávamos
chocadas e nervosas demais para ter qualquer reação. Ellie alcançou as barras
de ferro no chão e começou a enfiar nos buracos da parede de pedra.
-
Uma ajudinha aqui. – Disse, depois de um tempo, e eu me levantei para ajudar.
-
Hmm... Ellie, você escalou torre? – Perguntei enquanto trabalhávamos naquilo.
-
Uhum. - Ela grunhiu em resposta.
-
Completamente nua?
-
Bem, eu não tinha muita opção, certo? As pedras estão bem irregulares, Kat. Da
para escalar na saída e na entrada.
-
Quão alto é?
- É muito alto, mas nem dá para sentir. E
além do mais um vampiro não morre de fraturas, certo? E quanto mais baixo mais
perto do sangue. – Ela disse isso lambendo os lábios, com um brilho intenso nos
olhos.
De
repente, me senti mais motivada. Ajudei a enfiar as barras de ferro enquanto as
outras vampiras totalmente absortas observavam. No fim, escalei. Quando cheguei
ao buraco da janela e olhei lá para baixo, senti vertigem. Só que eu não tinha
mais tempo para pensar, tinha sangue lá embaixo.
Deslizei
o corpo sobre o peitoril com cuidado e prendi o pé em uma pedra. Comecei a
descer o que pareceu a torre mais alta do mundo para mim. Eu estava firme o
suficiente para descer sem deslizar em nenhum momento. Era bom me concentrar em
outra coisa além da agonia que estava sentindo. Uma coisa de cada vez.
Quando
pisei no chão, minhas unhas estavam em frangalhos e minha mão completamente
arranhada. Mas assim que respirei fundo e o cheiro do sangue de toda uma cidade
chegou até mim, nada mais importava. Com uma força surgida de não sei onde,
corri como um raio. Invadi a primeira casa que vi pela frente e começando pela
criadagem (que ficava no andar inferior), matei cada que alma que vivia na
casa. Entendi o olhar febril de Ellie. Nenhuma palavra, de nenhuma língua, pode
descrever a sensação de ter sangue humano correndo em minhas veias outra vez.
Era
como viver outra vez.
Só
que melhor.
Uma
parte de mim sabia que eu deveria estar sendo mais discreta, mas convenhamos,
eu não sabia o que era sangue havia mais de um ano. Se beber tudo que eu
precisava fosse a última coisa que eu fizesse, eu morreria feliz.
Voltei
à torre depois de colocar fogo na casa vazia e nas duas do lado. Subi sem medo,
inebriada pela sensação incrível. Por algum motivo o fato de ter escapado por
algumas horas e ter aquela leve liberdade para ir e vir, fez com que a sala
escura mais parecesse um dos meus lares temporários do que uma prisão. Afinal,
se um vampiro tem sangue a gosto e um lugar para dormir, ele não é um
prisioneiro de verdade.
Só
Ellie estava lá dentro quando cheguei. Ela tinha convencido todas as outras a
descer e elas estavam na sua pequena festinha sanguinária lá embaixo. Meu lado
racional, agora de volta, pensava nos riscos que isso podia trazer, mas eu me
permiti confiar nelas.
Ellie
estava deitada no chão com os olhos bem abertos encarando o teto. O brilho
febril de mais cedo havia sumido, dando espaço aquela frieza que eu adorava. Me
deitei ao seu lado.
- Às
vezes eu me pergunto se existe uma razão. - Ela disse, quando fiz isso.
-
Para que?
-
Para eu estar aqui, continuar com vocês. Quero dizer, além do Exército e de
você precisar de treze vampiras.
- Do
que você está falando?
- Eu
não queria ajudar hoje, Kat. Eu sabia que poderia me transformar em morcego e
sair, mas mesmo a ideia de sangue não me motivava. Eu queria morrer. E não fui como Sophie, não resolvi abrir mão do
que eu queria por vocês. O único motivo pelo qual eu saí foi para morrer
tranquila, mas aí o cheiro de sangue acabou com todo o meu desejo de morte.
Eu
me virei de bruços, apoiando o cotovelo no chão para levantar o rosto e olhar
nos olhos dela. Gostava de fazer aquilo, admirar minha melhor criação em toda
sua glória.
- E
daí? Você é uma vampira, Ellie. Leal como você for, você é egoísta e sempre vai
preferir o que for melhor para você.
Você não sabe, mas Sophie queria sair do Exército e montar o próprio clã dela
começando pelo herdeiro do trono austríaco, até descobrir que não podia
transformar vampiros. Egoísmo Ellie, porque ela não tinha o que queria no
grupo. Dane-se o bem maior ou a missão que nos foi imposta. E não ache que
qualquer uma das mais novas, inclusive a sua Anika, hesitaria a receber algo
que a fizesse mais feliz. Somos seres dominados por almas em agonia implorando
por algum tipo de alívio. É impossível ser mais egoísta que um vampiro.
Ellie
não moveu um músculo. Simplesmente continuava parada, encarando o teto.
-
Por que eu, Kat? – Ela perguntou depois de um tempo com uma voz suave e fria ao
mesmo tempo - Sophie te encantou por não ser atingida por Pierre. Anika era
descendente de Deyah. Naomi foi um efeito colateral da sua libertação da
maldição. As três foram bruxas. As três representam alguma coisa para o time.
Até mesmo para o plano de Deyah, seja ele qual for. E eu? Eu li seu diário,
você queria me transformar e me deixar em Paris, até que Pierre surgiu. Você
precisava de mim para criar Pierre, certo. Isso eu entendi. Mas e depois que
ele foi embora? Depois que o garoto se mostrou um belo inútil, para que eu
servi?
-
Você está se esquecendo de que a Morte queria você. Ela disse que precisava
daquela de quem eu mais sentiria falta. Sabia que abrir mão de você seria um
sacrifício real. E o Inferno também
queria você, Pierre deixou isso claro. Você tem algo Ellie, algo que faz todos
te desejarem e quererem manter você por perto, não interessa o que aconteça.
Provavelmente é um segredo que nem você mesma conhece, mas existe. Não interessa
se você não foi bruxa, se eu não tive um excelente motivo para transformar
você. E eu não mantive você por perto só por causa de Pierre, mantive porque eu
quis. Eu mataria qualquer uma aqui para manter você viva. E eu não deixaria
você morrer esta noite. Não porque você é uma arma de exterminação que o
Inferno precisa e sim porque, em toda minha vida, seja humana, seja vampira,
você foi a única pessoa que me fez chegar perto de sentir alguma coisa.
Ela
piscou e finalmente olhou para mim.
-
Isso não é um bom motivo. – Disse, fria como uma estátua de gelo esculpida em
um inverno no ártico.
- O
bom motivo é a Morte e o Inferno quererem você. O motivo ruim é eu ser egoísta
e não querer me livrar de você de forma alguma.
25 de julho
Diário de Kaylee
Ela
apareceu outra vez! Ainda nem acredito que estava certa, ela é mesmo real!
Depois
de algumas noites eu resolvi que não dormiria, para que se ela voltasse eu
estivesse plenamente consciente. Me sentia cada vez mais cansada, mas não iria
dormir até vê-la outra vez, mesmo que não dormisse nunca mais. Na noite
passada, ela apareceu.
Eu
estava sentada sobre o tapete, lendo um livro com dificuldade à luz da vela que
estava quase apagada. Senti sua presença atrás de mim antes de me virar. O
vento que veio da janela denunciou que ela estava ali. Como ela nada dizia, me
virei e fui recebida por um sorriso brincalhão.
Agora
podia vê-la com mais clareza. Ela era, na verdade, alguns centímetros mais alta
que eu. Devia estar começando a adolescência. Tinha longos e volumosos cabelos
escuros e olhos ainda mais verdes do que eu me lembrava.
-
Estava me esperando? – Perguntou após alguns momentos de silêncio.
-
Talvez. – Respondi entrando no jogo.
-
Por quê?
Respirei
fundo.
-
Quero saber quem é você, porque veio e porque sumiu por tanto tempo.
O
sorriso desapareceu e ela andou até a minha cama, pensativa. Acompanhei seus
passos, mas não disse mais nada.
- E
se eu disser que só posso responder uma pergunta?
-
Qual?
Mais
algum tempo de silêncio. Ela não olhava para mim.
-
Você decide. Escolha a mais importante das três.
Resolvi
pensar. Talvez eu pudesse perguntar uma coisa a cada visita, mas talvez aquela
fosse a última vez que eu iria vê-la. Isso seria desolador.
-
Por que sumiu por tanto tempo?
Kat
voltou a olhar para mim e abriu o sorriso outra vez.
-
Sentiu minha falta?
-
Sim. – Respondi, diretamente. – Mas principalmente queria saber porque veio.
Ela
franziu a sobrancelha.
-
Não foi isso que você perguntou.
-
Porque não quero que vá outra vez. E você não respondeu.
- Eu
tenho coisas para fazer. – Ela disse, respondendo à pergunta. – Mas eu
voltarei, Kaylee. Sempre. Você ainda vai entender a complexidade do que eu sou,
mas, enquanto isso, peço que confie em mim.
- Eu
não conheço você. – Respondi, magoada, sem saber o porquê.
-
Mas confia. Porque confia em sua intuição e ela diz que está tudo bem.
Ela
estava certa, chacoalhei a cabeça e deixei as perguntas de lado. Kat se
levantou e veio até mim, segurando minhas mãos entre as dela.
-
Agora você precisa dormir, sei que não tem dormido há dias e isso não faz bem a
você.
Ia
discordar, mas um bocejo me impediu.
-
Pelo menos fique até que eu durma. – Pedi, sonolenta.
Ela
concordou com a cabeça e me conduziu até a cama. Deitei ainda de mãos dadas com
ela e peguei no sono com rapidez. Quando acordei, a marca estava lá outra vez.
Continuação da entrada do dia 20 de julho de 1907 no diário de Kat
As
meninas voltaram algumas horas depois. A cidade estava cheia de focos de
incêndio e um caos completo se instalou enquanto tentavam apagá-los. Dava para
ouvir os gritos e chegava a ser relaxante tê-los como trilhas de fundo.
Quando
o sol nasceu e a cidade voltou a sua paz habitual, eu comecei a me perguntar se
as bruxas sabiam que nós éramos a causa daqueles incêndios e mortes. Agora que
havíamos começado um ataque, será que elas finalmente fariam alguma coisa?
Resolvemos
esperar outros três meses antes de voltarmos a sair. Com o baquete de sangue
que tivemos e a expectativa de que a qualquer momento acontecesse alguma coisa
fez com que nós ficássemos mais animadas por estar ali dentro. Mas ainda
continuávamos precavidas: era possível que as bruxas fizessem algo para nos
impedir de caçar novamente.
Sophie
continuava tendo alucinações. Quanto mais fraca ela estava, com mais força elas
vinham, deixando-a em frangalhos. Ver a morte de Charlottie por aquelas cinzas
a deixou ainda pior. A única coisa que continuava a dar forças para ela era a
ideia de uma vingança lenta e dolorosa contra as bruxas.
Quando
o terceiro mês se passou e a lua cheia nos avisou que o verão já estava
acabando, resolvemos que deveríamos ter um plano mais confiável. Uma só deveria
sair e garantir que era seguro para as outras. Em vez de queimar as casas, cada
uma deveria matar duas pessoas no máximo e sumir com o corpo logo em seguida.
Eu
resolvi ir primeiro porque conseguiria me esconder com mais facilidade. Sophie
iria em seguida e teve carta branca para conseguir quanto sangue quisesse.
Todas nós concordávamos que ela precisava de força. As gêmeas iriam em seguida.
Naomi e logo depois Anika. Ellie iria por último, pois havia sido a primeira da
outra vez.
Com
os detalhes resolvidos eu comecei a escalar a parede. Dessa vez fiz tudo com
mais facilidade. Era um pouco antes da meia-noite e eu ainda podia ver algumas
luzes de velas tremeluzindo na janela das casas. Mas foi uma das casas com as
luzes apagadas que eu invadi. Era mais fácil arrancar alguém da cama e fazer
com que ela desaparecesse do que tirá-la do meio do jantar. Acabei com dois
irmãos pequenos que dormiam em camas vizinhas.
Saí
com os corpos pendurados nos ombros e os atirei em uma vala próxima. Quando
voltei para a igreja, percebi que uma luz de vela brilhava de uma das janelas
da torre. A parede de fora tinha pedras soltas o suficiente para facilitar o
acesso. Hesitei por um momento, mas decidi tentar ver o que estava acontecendo.
Poderia ser uma chance única. Se qualquer coisa acontecesse eu agradeceria por
nosso plano ter mantido as outras seis em segurança.
Escalei
com cuidado e ao chegar perto da janela prendi meus pés e mãos de uma forma
segura. Me estiquei para tentar ver, mas as cortinas me impediram, então
desisti da ideia e me concentrei em apenas ouvir. Duas freiras/bruxas
conversavam, baixo, mas não o suficiente:
-
...Pelo menos até ela saber sobre as vampiras na torre. – Dizia uma voz fria,
quase masculina.
-
Não há como ela saber. – A segunda voz parecia mais jovem. – A Madre não tem
mais forças para subir até lá. E como nenhuma de nós sobe há mais de um ano,
ela nem desconfia que tenhamos as guardado lá.
- E
quanto ao incêndio de alguns meses? Ela sabe que aquilo não foi um acidente e
desconfia que nós não tenhamos percebido as más intenções dos responsáveis.
-
Não era isso que nós queríamos? Que elas se banqueteassem do sangue dos
habitantes e assim ficassem cada vez mais presas a Cianne? A Madre não vai
viver por muito mais tempo. Quando ela morrer e precisarmos de uma nova líder,
as vampiras vão deixar de ser um problema e se tornar a solução. Agora vamos
dormir e parar de falar besteiras.
O
sangue pesou em minhas veias enquanto eu fazia o caminho de subida. Quando
cheguei à sala de pedra, contei o que havia ouvido às meninas. Ao contrário do
que eu esperava, nenhuma briga foi iniciada. Elas mantiveram-se caladas, como
se dizer qualquer coisa pudesse piorar ainda mais a situação. Como sempre,
Ellie foi a primeira a mostrar a lógica da situação:
- Se
nós não podemos sair daqui, não há porque ficarmos fracas enquanto esperamos
que as bruxas mostrem para que precisam de nós. Nós precisamos de sangue e se
ninguém vai nos impedir de pegá-lo, ficar paradas aqui é suicídio. Temos tempo
de sobra para pensarmos no que vamos fazer. Enquanto isso é melhor manter a
força.
A
concordância foi geral, então foi a vez de Sophie de descer e se alimentar.
30 de julho
Diário de Kaylee
Papai
me perguntou porque estou tão estranha. Diz que pareço muito estranha, sem o
ânimo que sempre tive e mais calada. Não me sinto tão diferente assim. Só acho
que as minhas forças foram redirecionadas para outras coisas. Quando não estou
estudando, estou escrevendo no diário. Perdi a vontade de sair de casa por medo
de que Kat apareça quando não estou, mas tenho sempre mantido meu quarto
arrumado e ajudado nas tarefas de casa, que é o suficiente para que qualquer
pai fique satifeito e até mesmo se anime.
Mas
meu pai é diferente. Ele era um simples missionário, que depois de fazer
faculdade fora e se converter começou a tentar também converter os moradores de
sua cidade natal, a mais católica dos Estados Unidos (sei que já disse isso
antes). Sua congregação só tem três membros (além de mim, e de Milli, nossa
empregada, mais um camponês que trabalha com ele), costumava ser maior, até ele
começar a brigar com as freiras que mandam em Cianne.
Começou
quando elas acusaram mamãe - que também nascera aqui e havia se convertido só
para casar-se com ele - de bruxaria – o que já levou dezenas de membros a
abandonarem a igreja - e a submeteram a morte por afogamento (mesmo já sendo o
século XX, Cianne mantêm-se presa a uma época distante). Eu era muito pequena
quando isso aconteceu e não me lembro de mamãe, mas eu apoiava a luta de meu
pai com todo ardor porque era o único assunto que me aproximava dele.
Agora
essa luta tem sido cansativa demais para mim. Ver papai sempre com raiva, as
brincadeiras estúpidas das garotas da escola, saber que Milli foi espancada por
seu pai por continuar frequentando a igreja de papai - tudo isso me deixa em
dúvida sobre o que é realmente certo.
Continuação da entrada do dia 20 de julho de 1907 no diário de Kat
Esquematizamos
nossas caçadas para uma vez a cada três meses. A cada mudança de estação, na
primeira lua cheia, saíamos. A forma como caçávamos continuava seguindo o plano
que montáramos antes: uma de cada vez, sendo a primeira da última vez sempre a
última da vez seguinte.
Quando
o inverno de 1902 chegou, porém, não pudemos fazer isso. Mal escureceu quando
ouvimos os gritos. Conseguíamos ver também luzes de tochas refletindo nas
paredes de pedra da sala. Todas nos colocamos em alerta, preocupadas de que
aquela fosse a hora em que nós seríamos queimadas.
Até
que o som dos gritos mudou de direção e percebemos que era uma hora ruim para
outra pessoa. Precisávamos descobrir o que estava acontecendo, mas não podíamos
todas nos escorar na janela e ver o que acontecia. Resolvemos que eu e Anika
subiríamos, para que eu registrasse tudo depois e Anika contasse o que
aconteceu do seu jeito.
Assim
que subimos, encontramos uma cena surpreendente: um palanque montado em frente
à igreja, em um lugar próximo o suficiente para que víssemos tudo com clareza.
Lá estava um enorme balde, provavelmente cheio até o topo, uma mulher parada ao
lado com as mãos amarradas nas costas, cercada pelas seis bruxas que
conhecíamos bem demais. Tive medo de que alguém nos visse, mas a multidão
estava focada demais na cena a sua frente. Gritavam exigindo morte à bruxa e
exigindo que ela queimasse no fogo do inferno. Ao lado da formação de seis que
nos capturou, a sétima freira de preto dos pés à cabeça estava observando a
multidão com um ar aprovador. Eu nasci em 1834, algumas décadas depois de a
Inquisição ser proibida na Europa. Nunca havia visto uma cena daquelas, mas
sabia pelos livros e diários que havia lido que aquela mulher estava prestes a
morrer de forma violenta.
Ao
meu lado, Anika narrava a cena às meninas que aguardavam ansiosas dentro na
sala, mas eu mal a ouvia. Estava tão absorta quanto a multidão lá embaixo, mas
não pelos mesmos motivos. Não havia como não pensar na ironia da situação: uma
mulher sendo morta por bruxaria em uma cidade comandada por bruxas. Só entendi
o que estava acontecendo quando a sétima freira, provavelmente a Madre
Superiora que ouvi as duas bruxas citarem, silenciou a multidão com um gesto e
pediu a palavra.
-
Venho, por meio dessa cerimônia, aprovada por toda população de Cianne...
-
NÃO POR TODA! – Gritou um homem que segurava uma criança.
Ele
tombou para trás, como se o grito tivesse tirado suas forças, protegendo a
criança. Eu sabia que aquilo havia sido um feitiço qualquer para impedir que o
homem interrompesse a cerimônia.
-
Cale-se. – Disse a Madre Superiora, com uma voz poderosa. – Você e sua filha
foram poupados de morrer nesse exato minuto, por piedade. Não nos faça nos
arrepender dessa decisão.
Atônito,
o homem se calou. Percebi mesmo a distância, que ele tinha lágrimas nos olhos e
não estava tão animado para que a mulher morresse quanto o resto da cidade.
Era, provavelmente, o marido da mulher que morreria.
-
Como estava dizendo, todos os habitantes de Cianne concordam e afirmam que
viram essa mulher – Apontou para a mulher parada atrás dela. – Olympie Jones,
cometer atos de bruxaria e amaldiçoar essa cidade que tanto amamos. Dessa
forma, nós do conselho da cidade, a condenamos à morte por afogamento, assim
como condenamos sua filha e herdeira, Kaylee Jones ao mesmo destino quando
completar 17 anos, a menos que a mesma decida abrir mão do seu dom maldito e se
juntar ao convento de Santa Beatriz para cuidar dessa cidade junto conosco.
A
multidão gritou em aprovação. Meus olhos se voltaram ao homem que carregava a filha
dos braços. Seu olhar estava cheio de ódio, mas parecia saber que não havia
nada que pudesse fazer. A execução começou e eu senti Anika tensionar os
músculos ao meu lado. Não estava com medo de ver o assassinato, mas ainda não
entendia a situação. Eu iria começar a explicar quando percebi o olhar da
criancinha que estava ali para ver sua mãe ser morta.
Ela
era a única na multidão que olhava diretamente para mim.
3 de agosto
Diário de Kaylee
Hoje
encontrei uma caixa com os pertences de mamãe. Estava arrumando o quarto que
também pertenceu a ela quando a vi. Era
uma caixa de madeira com as iniciais de solteira dela gravadas na tampa. Abri
com facilidade, pois não havia tranca nenhuma ou nada que impedisse o acesso.
De
início encontrei diversos porta-retratos com fotos que eu ainda não tinha visto
de eventos que eu já conhecia. O casamento de meus pais, meus dois primeiros
aniversários, o dia dos batismos de alguns membros da igreja. Retirei os
porta-retratos com cuidado e encontrei diversos objetos estranhos ali dentro.
Alguns ossos, penas e brinquedos estranhos. Não fazia ideia do que era aquilo
tudo.
Embaixo
dessas coisas encontrei um caderno antigo de capa de couro. As folhas estavam
antigas e estragadas e eu não entendia a maior parte das coisas que estavam
escritas. Desenhos bem elaborados e desenhados com leveza acompanhavam as
frases estranhas.
Antes
que eu pudesse ler melhor, ouvi os passos de papai entrando em casa. Coloquei o
caderno dentro do vestido que usava e coloquei todas as coisas de volta na
caixa. Consegui chegar na sala antes que papai me chamasse. Sabia que ele
ficaria bravo se soubesse que peguei algo de mamãe sem que ele permitisse.
Continuação da entrada do dia 20 de julho de 1907 no diário de Kat
Quando
o sol nasceu, já estava tudo mais calmo e dava para ouvir os pássaros cantarem.
Todas nós havíamos passado o resto da noite remoendo o que aconteceu com
Olympie Jones. Eu finalmente consegui juntas as peças e entender como Cianne
funcionava:
- Eu já tinha
ouvido falar de cidades assim. – Comecei, quando conversávamos sobre o assunto
– Só nunca pensei que bruxas fossem fazer parte disso. Famílias proeminentes se
unem e criam uma cidade rica com uma estrutura feita para atrair moradores da
zona rural com facilidade. Quando a cidade se torna grande, as famílias que a
criaram se tornam uma espécie de realeza, cheia de poderes na cidade, que tem a
obrigação de manter a cidade funcionando para sempre.
“Cianne,
provavelmente, foi criada dessa forma: Sete clãs se uniram em um mesmo
território. Cada um dos sete separou uma de suas filhas, as bruxas herdeiras, e
fez um feitiço importante que ligou a vida e o sangue da família ao espaço da
cidade. Essas herdeiras e suas filhas são protetoras da cidade porque
inevitavelmente sabem o que está acontecendo na cidade. Elas foram abrigadas
nesse prédio, sob o disfarce de uma ordem da Igreja Católica, que é uma das
organizações mais respeitadas do mundo. A bruxa líder da família que investiu
mais, provavelmente mãe de uma das herdeiras, se tornou a Madre Superiora para
manter as adolescentes sobre controle.
“Mas, é mais do
que óbvio que nenhuma delas é realmente celibatária. Bruxas não são imortais
então elas sempre precisam de sete bruxas novas, o que me faz acreditar que há
um período da vida em que cada uma das bruxas tem uma filha e quando as novas
herdeiras se tornam 7 uma nova Madre Superiora dentre as seis protetoras é
escolhida.
“Sobre a morte de
Olympie, para mim só há uma explicação lógica. Ela era herdeira de uma das
famílias, mas, possivelmente por amor, deixou o convento publicamente e se
casou, estabelecendo família. Ela ainda nutria o poder, porque continuava na
cidade, mas Kaylee, sua filha, não estava sendo criada da forma certa, para ser
uma protetora da cidade. Então agora que a Madre Superiora está velha e em
breve elas precisarão eleger uma nova, é a hora da filha de cada uma das sete
se tornar detentora do poder. Por isso mataram Olympie e deixaram um aviso bem
claro: Se a história se repetir, Kaylee é a próxima a morrer.”
A história pairou
no ar por alguns minutos antes de alguém demonstrar reação. Foi Naomi quem o
fez primeiro:
- Vocês sabem o
que isso significa, certo?
- Nós precisamos
matar Kaylee Jones. E dessagrar Cianne. – Anika respondeu, concordando.
Todas olharam para
mim esperando por aprovação. Senti uma dor nas têmporas quando lembrei dos
olhos escuros da menininha diretamente focados em mim, mas me impedi de
esfregá-las. Precisava soar confiante.
- Sim. Mas da
forma certa.
4 de agosto
Diário de Kaylee
- Você sabe o que
é um grimório? – Kat me perguntou quando veio me visitar noite passada.
Havia acabado de
mostrar a ela o caderno que encontrara nas coisas de mamãe. Ela tinha aparecido
e me acordado no meio da noite, com a promessa de que passaríamos horas juntas
desde que eu não fizesse nenhuma pergunta sobre ela. Resolvi então contar sobre
minhas descobertas.
- Já ouvi essa
palavra, mas não sei o que quer dizer. – Respondi honestamente, olhando o
caderno que repousava sobre o meu colo.
- É um diário
feito por bruxas, onde elas anotam seus mais recentes feitiços e descobertas
para que suas descendentes consigam se guiar a partir disso. Posso dar uma
olhada nesse?
Entreguei o
caderno de capa de couro para ela e me mantive calada. A palavra “bruxas” fez
minha cabeça girar. Mamãe havia sido assassinada por bruxaria, mas papai me
disse que milhares de mulheres inocentes foram condenadas da mesma forma na
Europa.
Nunca pensei que
ela pudesse ser uma bruxa de verdade.
Kat folheou as
páginas com cuidado. Estávamos sentadas no mesmo tapete em que me encontrava há
alguns dias. Kat usava um vestido claro, longo e delicado, bordado com cuidado
e feito sob medida. Eu estava apenas de camisola e sentia um pouco de frio.
- Sua mãe era uma
bruxa poderosa. – Ela disse, ainda lendo o grimório. – Você tem uma herança poderosa.
- Eu... – Tentei
começar a dizer. A voz saiu rouca, então pigarreei – Eu sou uma bruxa?
- Claro! – Kat
respondeu, me olhando pela primeira vez desde que pusera as mãos no caderno –
Você é uma bruxa herdeira. Não sabia?
- Sequer sabia que
minha mãe era uma bruxa de verdade. Achava que era invenção das freiras para
atingir meu pai.
Ela fechou o
caderno e me olhou com mais profundidade.
- Por que para
atingir o seu pai?
- Papai é um
missionário protestante. Nasceu aqui, mas se formou em outro país, se converteu
lá e voltou para converter as pessoas daqui. O que tem desafiado as bruxas
desde então.
- A morte da sua
mãe deve ter sido um golpe duro para ele. – Kat disse, alisando a capa do
diário.
- E foi. Mas não o
fez desistir de lutar. Só fez com que ele perdesse diversos aliados.
Kat ficou em
silêncio por alguns minutos, encarando seus sapatos enquanto continuava a
acariciar a capa do caderno, distraída. Depois de um tempo voltou seu olhar
para mim.
- Bem, - Disse, se
levantando – Eu preciso ir. Mas estarei de volta amanhã, eu prometo.
Continuação da entrada do dia 20 de julho de 1907 no diário de Kat
- Arranjem agulhas
e linhas! – Ellie bradou em um dia da primavera de 1903. – Arranjem agulhas e
linhas antes que eu tenha um ataque!
Era um dia
especialmente entediante. Havíamos decidido que precisávamos de mais
informações antes de tomar qualquer decisão que pudesse ajudar ainda mais os
planos das bruxas em relação a nós, por isso continuávamos só saindo da sala da
torre a cada primeira noite de lua cheia de cada estação.
Aquele foi o
primeiro dia em que ficamos do lado de fora em plena luz do dia.
Quando Ellie
colocou que se tivesse agulhas e linhas diversas poderia refazer os hábitos
ridículos que usávamos em vestidos mais práticos e que combinassem conosco - se
conseguíssemos tecidos ela até faria vestidos novos e coloridos - todas
concordamos que era uma ideia excelente que ajudaria muito na luta contra o
tédio. Mas a única forma de conseguir roubar o que precisávamos era se
saíssemos de dia e sair de dia era extremamente perigoso principalmente porque
a parede que escalávamos era à vista de toda a cidade. Alguém, então, teve a
ideia de sair à noite e permanecer lá embaixo por todo o dia. Isso fez com que
decidíssemos ir além de roubar linhas e agulha. Iríamos conseguir mochilas de
lona, e roubar várias coisas que nos ajudassem a sair do tédio. Talvez até
alguns bebês para matar a sede. O que faltava decidir era quem iria.
Sophie foi votada
por algumas, mas a própria declinou a sugestão. Era inseguro demais levar para
uma missão perigosa alguém que a qualquer momento podia ter uma alucinação e
fazer uma maluquice qualquer em público. Ellie também disse que não estava
disposta a sair outra vez antes do verão. Logo em seguida disseram que minha
liderança era necessária. Pensei em recusar por pura educação, mas eu realmente
queria sair um pouco. Não fui feita para ficar presa por muito tempo.
Mas eu não poderia
ir sozinha, mesmo que eu aguente muito peso e seja pequena o suficiente para
ser discreta, seria necessário mais de uma pessoa para conseguir fazer tudo que
queríamos. Levar as outras quatro comigo também estava fora de cogitação, o que
iniciou um longo debate sobre quem era mais indicada a me acompanhar em nossa
missão. Naomi estava mais do que disposta a sair, mas nenhuma de nós tinha
certeza se era uma boa ideia dar à novata uma tarefa que poderia custar a vida
das sete. Eu não fazia ideia de como Miranda ou Valentina funcionariam sem a
gêmea ao lado e levar as duas não seria uma boa ideia, elas chamariam muita
atenção. Anika era rápida, pequena e sabia cumprir ordens, mas nunca foi
discreta e eu duvida que pudesse ser, mesmo com a vida em risco.
Quando chegamos a
um consenso sobre a questão, o sol já tinha se posto. Resolvemos que era melhor
que Naomi fosse. Ela precisava ter a lealdade testada, deveria ser treinada
entrando em ação como as outras foram. E por ser novata não seria uma perda tão
significativa quanto as outras. Essa última parte a fez estremecer. Não muito
para perder a expressão de confiança, mas o suficiente para que eu considerasse
confiar a Naomi essa tarefa a decisão mais estúpida que o Exército já tomou.
Graças a Deus, eu
estava errada.
Saímos quando a
lua chegou ao ponto mais alto. As garotas nos desejaram sorte e nos pediram
cuidado, mesmo que as gêmeas e Anika ainda estivessem frustradas por não
poderem ir. Fui à frente para garantir que tudo estivesse seguro. Como sempre,
Cianne estava silenciosa e escura. Era como se a cidade precisasse da noite
para recarregar as baterias e voltar ao movimento louco que tinha de dia.
Chegamos lá
embaixo com facilidade, mas aí não tínhamos mais nada para fazer até o sol
nascer. Podíamos nos esconder em uma árvore e dormir um pouco, mas a verdade é
que tínhamos tempo demais para dormir quando estávamos na torre. Precisávamos
otimizar o tempo que passaríamos ali. Foi Naomi quem teve uma ideia maluca e
inesperada, mas corajosa o suficiente para que eu a admirasse:
- Podíamos entrar
na igreja e tentar descobrir alguma coisa. – Ela sugeriu meio hesitante, como
se soubesse que eu iria discordar.
- Você não acha
isso perigoso demais?
- Bem, a ideia era
sair do tédio. Nós sabemos como aproveitar sombras e somos silenciosas. Além
disso, elas não nos querem vivas? O pior que podem fazer se notarem a nossa
presença é nos mandar de volta para a cela ou substituir aquela por outra e nós
vamos conseguir uma forma de sair outra vez. Algo me diz que realmente precisam
de sete de nós para os fins que pretendem, logo estamos seguras.
A lógica dela era
notável e indiscutível. Não consegui pensar em nada de melhor para fazer com
nosso tempo.
- Certo.
Entraremos, mas você precisa seguir minhas ordens.
Ela revirou os
olhos.
- Como você
quiser.
Andamos até a
entrada da igreja e fiquei admirando-a em toda sua majestosa forma. A estrutura
era formada por dois prédios. A igreja em si e o convento - cuja entrada só era
acessível por dentro da igreja. A torre em que estávamos presas ficava aos
fundos do prédio principal, onde deveriam ficar os sinos que não haviam soado
um único dia desde que estávamos presas.
Entramos pela
porta da frente. Ela não estava fechada e pelo que eu sabia não fecharia até a
meia-noite. Imagino que as bruxas tenham sentido quando novas pessoas entraram
no lar delas, mas ao se darem conta de que eram vampiras imaginaram que éramos
nós saindo e entrado da sala.
Estremeci de leve
ao olhar em volta. Os vitrais feitos com cuidado, a cruz de ouro no altar, os
bancos antigos - tudo me lembrava da última vez em que estivera em uma igreja.
Quando encarreguei Pierre de seduzir a arquiduquesa da Áustria. Enquanto andava
pelas sombras com Naomi bem atrás de mim, decidindo qual o melhor caminho para
chegar até o convento sem ser vista, não pude deixar de pensar na pergunta que
minha prima fizera alguns anos antes: O que será que Pierre andava fazendo?
Com muito tempo
livre, não era a primeira vez que eu pensava naquilo. Pierre havia sido
importante para mim por muito tempo, mas eu sempre soube que ele era poderoso
demais para continuar sob minhas asas eternamente. Sabia que assim que
crescesse ele me deixaria, mas em um ato de esperança sem juízo resolvi testar
sua lealdade. Sabia também que ele tinha contato com os amigos do pai no
Inferno e que havia matado Deyah, quando ela disse que para jurar lealdade a
Morte eu deveria me livrar de todas as “coisas” do Inferno que nosso grupo
mantinha. Pierre não me surpreendeu ao ir embora. Só gostaria de saber se o
motivo de ter ido foi mesmo só porque se considerava um ser superior.
- Onde será que
elas estão? – Naomi sussurrou quando entramos no prédio do convento.
- Shhhhh... – Fiz,
fazendo sinal com os dedos.
Eu conseguia ouvir
vozes vindas de um longo corredor. Seguimos por ele e aos poucos conseguimos
ver as luzes de velas que iluminavam um salão enorme. Colocamos a cabeça na
porta e, graças aos céus, nenhuma das presentes estava olhando para a entrada,
mas nos deparamos com uma cena no mínimo incomum de ser vista em um convento. O
salão era uma grande sala comum. Mesas de jogos, poltronas para costura e sofás
estavam dispostos pelo lugar, a maioria ocupada pelas seis bruxas. No centro,
seis garotinhas, todas de camisola e com os cabelos soltos que alcançavam os
joelhos, corriam, rindo e cantando canções desconhecidas.
Foi esquisito ver
as expressões de mármore das bruxas suavizadas pelo momento de lazer. Elas não
estavam usando hábitos, mas sim vestidos leves e cabelos soltos. Pareceram
estranhamente velhas para mim, com idades entre 30 e 40 anos, provavelmente
porque a bruxa mais velha que já conheci foi a minha mãe, que permaneceu com 28
anos até o fim da vida. Do outro lado da entrada, Naomi me encarava como se
tivesse visto um truque de um engolidor de fogo em um espetáculo de circo
qualquer.
- Você estava
certa. – Disse, quase sem fazer nenhum som.
- É claro que
estava! – Respondi, revirando os olhos sem falsa modéstia. – Agora faça o favor
e tente ouvir o que elas estão falando.
Três estavam
observando as brincadeiras das crianças sem dizer nada, outra estava tricotando
e as últimas duas conversavam animadamente durante um jogo de cartas.
- Eu poderia
apostar que Kaylee seguirá o destino da mãe. – Disse uma delas atraindo minha
atenção completamente. – Sendo criada por aquele pai dela, não há outro futuro.
- Não entendo
porque não matamos aquele homem e assumimos a tutela da criança. – Completou a
segunda enquanto escolhia uma carta e a pousava sobre a mesa.
- De acordo com a
Madre Superiora, nem todos os ex-congregantes daquele casebre que ele chama de
igreja se desprenderam totalmente da lealdade a ele. Matá-lo e deixar a criança
órfã poderia causar represálias.
- E falando em
pessoas que já deveriam estar mortas.
A primeira bruxa
olhou em volta, mas ninguém prestava atenção além de mim e Naomi, que não
podíamos ser vistas com clareza.
- Não se exalte,
Claudia. Não podemos perder uma aliada por puro capricho. Não antes de resolver
a crise dos clãs.
- Maldita seja
Olympie. – Disse Claudia, terminando o jogo.
Ambas começaram a
organizar as cartas para começar um novo jogo.
- Malditas sejam
nossas famílias, querida. Se não fosse o feitiço de proteção da cidade, nenhuma
de nós sete precisaríamos nos preocupar em ficar presas nesse lugar para sempre
e só termos contatos físicos com alguém durante uma época de reprodução, como
éguas de pedigree. Não culpo Olympie por se apaixonar, só por ter abandonado o
barco antes de encontrarmos a solução para isso tudo.
Claudia pareceu ponderar.
- Cá entre nós,
Margaret: Você acredita mesmo que aquelas garotas
lá em cima são a solução de nossos problemas?
- Sim, elas são. –
Disse Margaret, assentindo - Elas podem nos livrar e livrar nossas filhas desse
futuro insosso e ainda destruir Cianne e a si próprias enquanto observamos tudo
de camarote. Só precisamos de Kaylee ou uma descendente dela, do feitiço certo
e da morte da Madre Superiora.
Olhei para Naomi
com um nó na garganta e seu olhar de volta mostrava que entendera os planos das
bruxas assim como eu. Elas pretendiam ligar nossa força vital a Cianne.
Precisaríamos permanecer em Cianne para continuar a viver. Mas também
precisaríamos de sangue dos habitantes de Cianne para viver. Cianne só
existiria enquanto houvessem habitantes. Logo, quanto mais matássemos, mais
perto estaríamos de nos matar levando assim tudo que aquelas bruxas odiavam a
um fim inevitável.
11 de agosto
Diário de Kaylee
Kat apareceu três
vezes na última semana. Uma foi para pedir o grimório emprestado. A segunda
para trazê-lo de volta. E a terceira para explicar quem era. Essa última visita
foi perturbadora. Ela chegou tão silenciosamente que se eu não estivesse
esperando não teria percebido sua presença. Parecia distraída, aérea, como se
tivesse ido parar ali sem querer.
- Hoje posso
responder suas perguntas, Kaylee. – Disse sentando em minha cama, mas sem olhar
para mim - Mas então, não vou poder voltar outra vez.
- Não preciso que
responda minhas perguntas, Kat. Apenas que continue a me visitar.
Ela soltou uma
risada cruel.
- Você é tão
solitária assim? A ponto de permitir que alguém ou algo de quem você não sabe nada continue te visitando toda noite
sem conhecer as reais intenções desse ser?
Controlei a
vontade de chorar que aquelas palavras me trouxeram. Eu não sou mais uma
criancinha.
- Você me pediu
para confiar em minha intuição. E minha intuição disse que eu estaria segura
com você.
- Eu sou uma
vampira, Kaylee! QUE PARTE DE SER UMA VAMPIRA PODE TRAZER SEGURANÇA?
- TALVEZ VOCÊ
DEVESSE ME TRANSFORMAR EM VAMPIRA TAMBÉM.
A essa altura eu
já estava chorando.
- Você não sabe o
que diz. – Ela cuspiu, dura.
- Sim, eu sei! –
Disse, frustrada – Eu consegui ler o grimório. Sei o que são vampiras, sabia o
que você era antes de dizer.
Ela bufou,
zombeteira. Minha irritação se transformou em uma raiva infantil, sem sentido.
- O que você quer
de mim afinal? – Perguntei.
- Nada! Eu só
queria ser sua amiga. Mas agora que você sabe quem sou, não posso mais.
- Kat, por favor,
fique!
Percebi que a
porta de meu quarto estava aberta tarde demais. Quando um vento frio a
atravessou e me alcançou, eu me virei e dei de cara com papai, que tinha os
olhos arregalados e um medo perturbador nos olhos.
- Kaylee, que
diabos você está fazendo? – Ele perguntou, aterrorizado.
Olhei para Kat,
mas ela havia sumido, o que não foi surpreendente. Quando voltei a olhar para
papai, ele estava fazendo algo que eu nunca imaginei que o veria fazer: O sinal
da cruz.
Parte final da entrada do dia 20 de julho de 1907 no diário de Kat
Eu e Naomi
resolvemos sair do convento antes que uma das bruxas resolvesse deixar o salão
comum e ir dormir. Encontramos a porta da igreja fechada, sem saber por quem já
que ouvimos que a Madre estava doente demais para isso e nenhuma das bruxas
havia saído da sala. Isso deixou Naomi nervosa, mas voltamos e saímos por uma
janela em uma sala qualquer. Já lá fora, nos sentamos sob uma árvore para
esperar o sol nascer.
- Qual cidade é
mais perturbadora, Cianne ou Verdant? – Naomi me perguntou depois de um tempo.
Eu ainda não havia
feito uma comparação.
- Cianne ganha de
lavada. Eu achava que o sangue de mil bruxas derramado sobre a terra era
perigoso, até ver o que o sangue de sete clãs preso à terra pode causar.
- Falando em
sangue, posso perguntar uma coisa?
- Desde quando eu
posso impedir você?
Ela sorriu.
- Por que, em
todos os anos nos quais seu sangue estava amaldiçoado, você nunca transformou
alguém por assombração?
A pergunta era
excelente.
- De verdade, eu
não sei. A transformação por assombração é lenta, perigosa e era considerada
errada pelos clãs anteriores aos quais eu pertenci. Você precisa não só deixar
a pessoa obcecada por você a ponto de procurar por magia negra, quanto tem que
garantir que outras pessoas saibam sobre suas visitas.
- Certo. Mas a
forma como você foi transformada também é considerada errada e com seu sangue
comprometido a assombração era uma ótima opção.
Uma ideia surgiu
em minha cabeça e pareceu iluminar a noite inteira.
- Na verdade,
ainda é.
21
de julho
Diário
de Kat
Caí no sono ontem
enquanto escrevia.
Acho que não
preciso dizer que minha missão com Naomi foi muito bem sucedida. Conseguimos
roubar mochilas, arranjamos linha e agulha, jornais de diversas datas e livros
novos que eu ainda não conhecia. Quando o sol se pôs, nos alimentamos antes de
subir. Voltamos então para nossa prisão e enquanto distribuíamos nossas novas distrações
contamos para o Exército sobre nossas mais recentes descobertas. Todas ficaram
em choque com o plano meticuloso das bruxas, mas antes que se desesperassem eu
expliquei meu plano a respeito de Kaylee.
- Matar Kaylee
diretamente seria perigoso. Não sabemos a dimensão do feitiço que protege
Cianne. Mas nós podemos envenená-la a ponto de que, inconscientemente, ela
quebre esse feitiço antes que ele seja passado para nós.
“Transformá-la por
assombração é perfeito. É demorado e perigoso, mas poderíamos fazer isso sem
que elas sequer notem o que destruiu sem precioso feitiço. Além disso, nos
infiltrar no clã dissidente, seria uma ótima forma de descobrir detalhes sobre
o feitiço em questão.”
- Certo.
Suponhamos que você vá assombrá-la. – Ellie disse, parecendo nada feliz com a
ideia. – Ela não é jovem demais?
- Bem, não precisa
ser agora.
Resmungos encheram
a sala.
- Quantos anos
precisaremos esperar, Kat? – Valentina perguntou, nervosa. Eu sabia que ela e
Miranda, em especial, não estavam nada felizes em ficar presa ali por mais
alguns anos.
Fiz alguns
cálculos.
- Mais quatro
anos. Quando ela tiver sete, terá consciência suficiente para ser assombrada.
Os resmungos se
repetiram dessa vez com mais intensidade. Ninguém parecia disposta a ficar mais
do que o dobro do tempo que já estávamos ali dentro. Exceto por Sophie.
- Do que vocês
tanto reclamam? – Perguntou, tirando os olhos do livro que havia começado a
folhear a alguns minutos. – Passamos quinze anos em Graz decidindo se Kat
mataria Ellie ou não. Kat e Ellie passaram oito anos rodando pela França
fazendo nada além de matar pessoas e criar um bebê demônio mimado. Já sabemos
como sair daqui e vigiar as bruxas lá embaixo. Temos sangue a disposição e já
temos como roubar coisas para nos distrair. A única coisa preocupante agora é o
fato de que qualquer momento bruxas malignas podem nos enfeitiçar de forma a
ficarmos presas nesse fim de mundo para sempre, mas até esse desafio faz desse
lugar mais interessante do que aquele buraco onde Kat nasceu.
Uma discussão de
proporções nunca antes vistas no Exército começou depois desse discurso. Metade
das meninas pediam ações imediatas (Valentina e Miranda) para nossa fuga dali,
enquanto a outra metade (Ellie e Anika) concordava que era melhor precaução e
cuidado. Só eu e Naomi olhávamos para Sophie, que agora estava calada e com o
olhar desfocado outra vez. Eu entendia os motivos dela. Sophie estava tendo
alucinações frequentemente e nunca estaria livre de vez até se acabar com elas.
Enquanto estivesse em Cianne, ao menos, estava segura e disposta a fazer
qualquer coisa e esperar qualquer tempo para se vingar das assassinas de sua
irmã.
Bati palmas de
forma a chamar a atenção das briguentas.
- Já chega! Viemos
até Cianne por Sophie e é pela própria que devemos ficar. Mesmo que
conseguíssemos sair daqui em segurança, qual o sentido de deixar de pé a cidade
que destruiu uma das nossas? Precisamos de vingança e não importa o tempo que
leve, vamos conseguir. Parem de drama, pelo amor de Deus, qual o sentido de ser
imortal e se preocupar tanto com a passagem do tempo?
Com minhas
palavras, todas olharam para Sophie. A mera visão dela tendo outra alucinação
acabou com toda e qualquer discussão.
Hoje, quatro anos
depois, a sala de pedra está longe de parecer uma prisão.
Aumentamos o
número de vezes em que saíamos da igreja. Organizamos missões para fazer com
que todas saíssem pelo menos dez vezes por ano, ao invés das quatro anteriores.
Foi nessa época também em que voltamos a celebrar aniversários, tradição que
abandonáramos desde que fomos presas, já que não sabíamos os dias, apenas as
estações. Acompanhávamos as datas pelos jornais que roubávamos e a cada data
importante todas nós saíamos em uma celebração excepcional.
Conseguimos
diversos itens pessoais novos e decoramos a sala como se fosse nossa própria
casa. Ellie costurou vários vestidos para nós e depois ensinou as gêmeas e
Anika a costurar para que mais fossem feitos. Voltamos a usar as cores que
amávamos. Eu com meus vestidos claros, as gêmeas de rosa e azul, Anika de diversos
tons de lilás, Ellie e Sophie cada uma com seu tom de azul e Naomi de verde
claro. Os vestidos que Ellie fez com os hábitos agora estão guardados. Todos
têm cortes despojados dando uma sensação de seriedade e confiança. Só voltarão
a ser usados quando nossa vingança chegar e, finalmente, pudermos matar aquelas
bruxas e destruir Cianne de uma vez por todas.
Ontem eu
finalmente comecei a assombrar Kaylee. Havia acompanhado todo o seu crescimento
até seu aniversário de sete anos há duas semanas. Ela é uma criança feliz e
amigável, mas ao mesmo tempo calada especialmente porque todas as crianças
católicas adoram a atormentar.
Todos parecem
saber que sua morte está marcada, menos ela. Por isso eu considero adiantar a
tal e ainda dar uma chance de imortalidade, um ato de piedade. Mesmo que isso
me pareça o mesmo discurso que me fizeram quando eu estava viva.
4 de
agosto
Foi quase
delicioso ver a obsessão de Kaylee crescer aos poucos. Ela já mal conseguia
dormir quando voltei a aparecer para ela e noite passada me contou os detalhes
sobre o grimório de sua mãe. Observar aquilo fez com que cada momento dos
últimos 7 anos valham a pena, mesmo aqueles que me deixaram muito perto da
morte.
5 de
agosto
As meninas pediram
para que eu pegasse o grimório. Eu já havia pensado nisso, mas queria mais
tempo para não assustar Kaylee. De forma nada surpreendente, Kaylee me entregou
o livro sem mais perguntas. Enquanto eu voltava para a igreja, eu pensava em
como era a primeira vez que eu transformava alguém sem esforço e como se fosse
uma arte, desde que Sophie entrara no grupo.
Quando transformei
Ellie, estava disposta a fazer de minha primeira transformação algo artístico.
Sophie representava um desafio para mim. Kaylee é uma maneira de testar coisas
novas e ainda me livrar do plano que bruxas tem para nós.
Me perguntei que diabos – sem duplo sentido
proposital - iria me impedir de criar mais vampiras daqui para frente, porque
sempre parece que algo entra em meu caminho. Não estou reclamando da vida. Só
me perguntando quem eu seria em circunstâncias diferentes.
6 de
agosto
Sophie dedicou
horas e horas à leitura do grimório. Ela monopolizou o livro porque se sentia
inútil na luta contra as bruxas e acreditava que aquilo era algo que ela podia
fazer sozinha. Eu me distraí observando sua expressão mudar enquanto tentava
entender os feitiços. Algumas vezes eu via seus olhos perderem o foco e em
silêncio admirava sua força em superar a alucinação e continuar aprendendo os
feitiços.
O grimório de
Olympie é completamente diferente de qualquer coisa que eu já tenha visto. Isso
foi um erro nos ensinamentos de minha mãe: ela esqueceu de me falar sobre
bruxas nativoamericanas. Pelo que eu entendi o clã de Kaylee não é mais antigo
que o meu, mas data quase da mesma época. Seus feitiços estão tão envolvidos
com ciclos lunares e elementos da terra quanto os nossos, mas os mesmos possuem
um uso diferente dos das bruxas da Europa.
- ACHEI! – Sophie
gritou, sobressaltando as outras meninas que conversavam sem olhar para ela.
- O que
exatamente? – Perguntei, me aproximando.
- O feitiço que
prendeu a vida das bruxas a Cianne.
De repente, eu e
Anika estávamos de frente a Sophie, que com os olhos vidrados nos entregou o
grimório.
- Isso aqui é a
lua? – Anika perguntou, encarando os desenhos com indecisão. Ela também seria
uma bruxa maravilhosa tendo outras oportunidades.
- Sim. – Sophie
respondeu, sem olhar para nós duas. Mas seus olhos não estavam sem foco,
estavam apenas deslumbrados com o momento.
Levei menos tempo
que Anika para entender o feitiço. Era bem simples na verdade. Ele havia sido
feito a partir do sangue das herdeiras de cada um dos sete clãs – como eu
imaginava - precisava ser renovado a cada 17 anos, quando a proteção se
dividiria entre mães e filhas por isso todas as herdeiras deveriam ter filhas
aos 17 anos. As bruxas eram proibidas de deixar os conventos e se unirem a
homens além da época reservada para a reprodução. Se uma morresse após a morte
da mãe, sem deixar herdeira, as outras também morreriam.
Pensei o que havia
dado tão errado a ponto de os clãs estarem tão longe do que deveriam ser.
Aquelas bruxas têm muito mais do que os vinte e poucos anos que deveriam ter e
suas filhas têm menos de 17 anos o que significa que o feitiço não foi renovado
quando deveria e a proteção se concentra apenas nas freiras. O que isso pode
significar?
Abaixo do feitiço
estavam desenhadas as condições nas quais ele seria rompido e as consequências
disso para Cianne. Caso um dos clãs acabasse ou todas as herdeiras morressem
sem deixar descendentes, o feitiço se desfaria naturalmente e Cianne
continuaria existindo, só que sem proteção. Mas se alguma das bruxas se
envolvesse com magia negra, o feitiço destruiria a cidade de dentro para fora
antes de se desfazer.
- Por isso elas
querem prender a cidade a nós. – Sussurrei, deixando o livro somente com Anika.
Os olhos de Sophie
se voltaram para os meus e ela assentiu.
- Um golpe
esperto.
Dei de ombros.
- Elas tiveram
muito tempo para pensar.
Ao meu lado Anika
fechou o grimório.
- Alguma ideia? –
Perguntou, parecendo seriamente preocupada.
Na verdade, eu
tinha.
- Começar a
degradação do feitiço antes delas.
Quando Kat voltou
da casa de Kaylee, pediu às meninas que organizassem tudo que tinham e
escondessem seus itens mais precisos em suas roupas. Ela sabia o que estava
para acontecer no momento em que viu o pai de Kaylee fazer o sinal da cruz em
sua frente e não foi decepcionada.
Na manhã do dia 13
de agosto, pela primeira vez em seis anos, a porta de pedra se abriu. As seis
bruxas entraram na sala sem cerimônia. Algumas das vampiras ainda estavam
dormindo e se sobressaltaram com sua entrada. Aqueles rostos estavam
marmorizados novamente, sem expressão.
Kat tomou a
dianteira sabendo que elas iriam atacar a qualquer momento. Sophie rosnou. As
outras cinco se colocaram atrás, em formação. As bruxas teriam sorrido, se continuar sem expressão não
fizesse parte da formação delas.
Com um estalar
de dedos metafórico, elas acabaram com a consciência das sete vampiras.
Acordei com os
gritos de Kaylee.
Não sei como sabia
que eram os gritos de Kaylee, mas foi essa compreensão o que me trouxe de volta
a consciência e foi o que também pareceu trazer as meninas de volta. Todas
pareciam estar acordando de um sonho.
- Tirem esse
maldito sangue de mim! – O grito de Kaylee ecoava em todos os cantos na cidade
silenciosa.
Eu sabia que se a
cidade estivesse cheia já a haveriam prendido e feito com que ela se calasse.
Isso só podia significar uma coisa.
- Ela destruiu
Cianne. – Sussurrei, atraindo a atenção de todas para mim.
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Sentei no sofá e descansei os pés na mesa
de centro. Abri o jornal que roubara de uma banca mais cedo. A primeira
manchete já era o que eu queria.
“Enquanto a guerra continua, mal podemos
acreditar nos horrores que encontramos. Corpos de dezenas de crianças foram
enterrados em diversas áreas da cidade por pais desesperados, com medo da cena
de apocalipse que foi pregada. Diversos homens foram presos, acusados de tirar
dinheiro de famílias desesperadas, em troca de uma proteção que nunca foi lhes
dada. A décima casa vazia foi arrombada e novamente corpos foram encontrados
empilhados uns sobre os outros.”
Sorri antes de continuar a ler. Aquela
guerra havia sido a primeira que eu presenciara e a melhor coisa que poderia
ter acontecido comigo. Foram quatro anos de fartura e banhos de sangue sempre
que eu queria.
“O povo antes enriquecendo em um país que
crescia velozmente agora se vê em meio a uma miséria que lembra traumas antigos
e seu desespero os leva a fazer coisas que cinco anos atrás consideraria
impensável. Todos os dias, corpos frescos são encontrados em becos escuros, sem
nenhum dos bens que em vida carregavam. Todos os dias, acompanhamos chocados
crianças levando surras no meio da rua por roubarem comida. E todos os dias,
nos escondemos, com medo de lutar por um mundo melhor, pois nos dias negros de
hoje, qualquer briga pode tirar nossas vidas, pode agravar a guerra que vivemos
por dentro e por fora.”
Não sei quando caí no sono, mas acordei com
batidas insistentes na porta. O jornal provavelmente havia me ninado até o
sono. Imaginar cenas de massacre me faz dormir melhor.
Não fazia ideia de quem poderia estar à
porta àquela altura. Já havia passado do horário em que vendedores batiam à
porta e que a patrulha da cidade passava de casa em casa checando quais ainda
eram habitadas ou habitáveis.
Achei que provavelmente eram conhecidos dos
antigos donos da casa – que já tinham morrido há de 3 meses – e ignorei as
batidas. Elas continuaram por vários minutos. Mesmo que quem fosse que
estivesse lá fora soubesse que a casa não estava vazia, estavam muito enganados
se achavam que eu ia abrir a porta para qualquer pessoa.
As batidas então se transformaram em
agressão a porta. Cansada, encarei as janelas, pensando em qual era melhor para
ver o visitante sem que ele me visse. Resolvi que a janela da cozinha servia.
Me levantei e andei até a cozinha, mas antes que alcançasse a janela,
congelei... A voz de choro, vinda da porta me congelou.
- Lottie, ouvrir, maman vient.
Eu não ouvia francês há muito tempo, mas
reconheceria aquela voz em qualquer lugar... Só que, não era possível.
- Lottie, ouvrir. – As batidas aumentaram
de intensidade e frequência. – CHARLOTTIE!
Sophie, meu coração cantou. Era Sophie. Eu
tinha certeza. Mas faziam mais de 60 anos! Só se ela tivesse se transformado.
Quem transformaria um fruto de incesto?
- Charlottie, eu juro por tudo que há de
mais sagrado e de mais maldito... – Sua voz, falando então em alemão, soava
angustiada, machucada. Nada como a voz de uma vampira. – Que se você não abrir
essa porta, eu mesma abro! E você não sai daí de dentro viva!
Sorri com a ameaça, reconhecendo a minha
forte irmã mais nova naquela voz cansada. Corri para a porta, abrindo-a antes
que as batidas se repetissem.
As Crônicas de Kat:
Esqueletos no Armário
Cidade fantasma de Cianne,
Estados Unidos
18 de junho de 1917
Diário de Kat
Me choquei ao reconhecer Kaylee nos olhos
da mulher - sim, uma mulher - que gritava em meio a Cianne. Sentia-me
desorientada, mas me preocupei em tentar acalmar a nova vampira antes de
qualquer coisa. Ela só se acalmou quando expliquei como havia a transformado.
- Elas me disseram que se isso acontecesse
todos que eu amava morreriam. – Disse, choramingando com os olhos lacrimosos.
- Elas?
- As freiras. Elas me pediram para escolher
um lado. Disseram que se me unisse a elas, salvaria Cianne. Se eu escolhesse
salvar você, Cianne acabaria. E depois me mostraram todas as coisas que você
tinha feito, mas eu não podia confiar nelas. Não podia.
Nem metade daquilo fazia sentido para mim.
Fucei a memória tentando encontrar qualquer lembrança reprimida, mas não
encontrei nada. Minha última memória era das bruxas entrando na sala de pedra e
então, nada.
Segurei as mãos de Kaylee entre as minhas e
apertei com força.
- Kaylee, preciso que se acalme e responda
uma pergunta. – Disse, a observando com cuidado. Ela fungou e olhou nos meus
olhos. – Quantos anos se passaram desde a última vez que visitei seu quarto?
- Você... não se lembra? – Seus olhos
escuros perderam a expressão de tristeza e se transformaram em pura curiosidade
obsessiva. Finalmente via uma vampira minha naquele caos que havia encontrado.
- Eu acho que elas me apagaram por muito
tempo.
- Dez anos. Faz dez anos.
As palavras soaram como um sino de bronze
em uma sala vazia.
- Dez anos? Que tipo de feitiço apaga sete
vampiras por dez anos? – Eu não deveria ter dito isso em voz alta, mas saiu
antes que eu pudesse me controlar.
- Sete
vampiras?
Suspirei quando ouvi os passos do meu
Exército se aproximando. Eu sabia que elas estavam ouvindo e nunca perderiam
uma deixa daquelas. Os olhos de Kaylee ficaram do tamanho de pires enquanto
elas se aproximavam.
- Kaylee, - Disse, quando elas chegaram
perto o suficiente para serem distinguidas. - Conheça Ellie, Sophie, Anika,
Miranda, Valentina e Naomi. O meu clã.
- Clã?
- Vampiras que compartilham ligações de
sangue comigo e que optaram por seguir comigo e aceitaram uma missão que me foi
entregue há muito tempo.
Seus olhos se tornaram cuidadosos.
- Posso participar?
Olhem para as meninas como se a decisão
fosse delas. Sophie tomou a dianteira.
- Foi você quem destruiu Cianne?
Ela pareceu pensar por um instante, como se
decidisse se deveria dizer a verdade ou não. Por fim, pareceu adivinhar que
seria mais aceita por um clã de vampiras se assumisse responsabilidade por
aniquilar uma cidade inteira.
- Sim.
- E as bruxas foram destruídas no processo?
Dessa vez ela fechou os olhos, se
concentrando para ter certeza. Pelo visto, a aniquilação tinha sido feita de
forma inconsciente, como parte do encantamento que protegera a cidade por tanto
tempo.
- Não. – Ela respondeu, finalmente.
A sensação de água gelada escorrendo por
minhas costas, mesma que eu sinto sempre que Ellie me encara, paralisou meu
corpo por um momento.
- E onde elas estão? – Sophie perguntou,
ainda concentrada.
- Elas... – Kaylee fechou os olhos
novamente, apertando-os como se tentasse enxergar as estrelas em uma noite
nublada. – Elas morreram ontem... – Abriu um sorriso ao se lembrar de algo -
Quando eu morri.
Sophie engasgou.
- Kaylee, não tome minhas palavras de forma
errada, mas de que diabos você morreu?
Dessa vez ela não precisou de tanto esforço
para se lembrar.
- Tifo.
Encarei as meninas e todas nós explodimos
numa risada. Presas por 17 anos, por bruxas que foram vencidas por uma doença
ridícula. Kaylee estava confusa. Respirei fundo para prender o riso, mas Ellie
conseguiu falar antes que eu pudesse.
- Venha, querida. Temos muito que lhe explicar.
Voltamos para a igreja com Kaylee ao nosso
encalce enquanto as garotas contavam tudo que havíamos descoberto. Deixei que
as meninas interagissem com Kaylee para que ela se sentisse dentro do clã.
Mesmo que meu sangue não tivesse chegado nem perto dela, ela havia se envolvido
com a destruição da sua própria cidade por mim. Kaylee havia merecido um lugar
no Exército. Só não sei se isso ainda significa muita coisa.
Nos acomodamos no salão comum do convento e
acendi a lareira enquanto Kaylee conversava com Anika. Levou um bom tempo para
que ela entendesse como sabíamos mais sobre os mistérios de Cianne do que ela,
mas conforme explicávamos sobre nós, ela parecia entender mais sobre si mesma.
Quando finalmente conseguimos explicar tudo que sabíamos e toda nossa história
– com a promessa de que ela poderá ler todo este diário em breve – Kaylee
contou o que sabia:
- Quando Kat desapareceu, eu tentei
explicar para meu pai o que estava acontecendo, mas ele se recusou a falar
comigo outra vez. Era como se fosse feito de pedra. Ele trancou a porta do meu
quarto e me deixou ali, gritando e chorando até amanhecer. De manhã, ele me
trouxe até o convento. As freiras estavam em choque por me ver sendo depositada
aos pés delas por seu maior inimigo, mas eu duvidava que meu pai tivesse
qualquer vontade de lutar contra o catolicismo dali para frente. E estava
certa.
“Antes de arrancar de meu pai tudo que ele
sabia sobre as visitas de Kat, cinco das freiras me levaram até um quarto onde
algumas meninas um pouco mais velhas que eu brincavam. Pediram para que eu
ficasse calma e esperasse, porque em breve me falariam sobre meu futuro. Eu não
conhecia nenhuma daquelas garotas, o que por si só era estranho já que Cianne
passa longe de ser uma cidade grande e eu estudava com todas as garotas que
tinham minha idade. Mas também não estava disposta a conhecê-las.
“Passei horas naquela sala, tão ansiosa que
sentia que vomitaria a qualquer momento. Quando resolvi que ansiedade só me
levaria a exaustão, comecei a observar as brincadeiras das meninas. Pareciam
tão infantis e bobas que me cansei logo em seguida. Um pouco depois, as freiras
vieram me buscar. Disseram que eu precisava tomar um banho, comer e descansar
antes de conversarem comigo. Também disseram que meu pai pediu que as
obedecesse sem questionar nada.
“Me recusei a fazer qualquer coisa que elas
pedissem. Eu não esquecia o ódio que havia sinto incutido em mim durante toda a
minha criação. Elas haviam matado minha mãe. Me privado de ter uma família
completa. Destruído a vida de meu pai e tudo que ele havia conquistado. Como
ele podia ter esquecido aquilo e me deixado sob a guarda daqueles monstros?
“Foi quando eu comecei a me perguntar o
tamanho do que eu havia feito. Gritado que queria ser uma vampira, admitido que
uma vampira me visitava. Parecia horrendo, mas eu não tinha medo e desejava
aquilo com muita vontade. Eu estava mesmo disposta a me tornar uma vampira para
me livrar da vida maluca que tinha. Um pai obsessivo que não dava a mínima para
mim. A vida solitária em uma cidade que todos me odiavam. Viver uma eternidade
matando pessoas parecia um preço pequeno a pagar se significava me livrar
daquilo. Quando contei isso as freiras, após elas desistirem de me alimentar e
me ajudar a me acomodar na minha nova moradia, elas ficaram horrorizadas. Agora
eu vejo certo exagero e drama em minhas palavras e desejos, mas eu estava tão
deprimida e obcecada que considerava aquilo completamente normal. ”
- Faz parte da assombração. – Interrompi,
para dar a Kaylee tempo de respirar. – Algumas hipnoses, e seu cérebro segue
uma linha de pensamentos que só se foca em mim e no que eu significo.
Todas as vampiras pareceram maravilhadas.
Elas sabiam muito pouco sobre a transformação por assombração, mas eu sentia
como se soubesse demais. Kaylee balançou a cabeça e pensou um pouco antes de
continuar.
- De qualquer forma, após verem que eu
estava convencida de que ser vampira era a melhor coisa que poderia acontecer
comigo, as freiras resolveram que tentar me tratar com carinho não daria muito
certo. Me trancaram em um quarto ainda sem comer nada e deixaram uma pessoa de
guarda em minha porta. Eu me deitei na cama e fiquei encarando o teto, sem
conseguir pensar em nada lógico. Não sei quanto tempo passei ali. Algumas vezes
alguém entrava e deixava comida sobre uma mesa, mas eu me recusava a tocar. Era
movida por duas coisas: ódio e vontade de me tornar vampira e me vingar de
todas aquelas pessoas.
“Em uma manhã, eu ouvi o sino da igreja
tocar pela primeira vez em minha vida. Eu sabia que ele só soava quando alguém
amado pela cidade morria. Quando as freiras entraram no quarto onde eu estava e
me mandaram me vestir, eu estava fraca demais para sequer me mover. Elas
conseguiram, sem muito esforço, na verdade, me dar banho e me vestir de um
hábito preto. Acompanhei a cerimônia fúnebre da Madre Superiora automaticamente
e sem me mover. Antes de enterrarem a mulher, fizeram outra cerimônia:
apresentaram a nova Madre Superiora, uma mulher entre as seis freiras que eu
conhecia e logo em seguida apresentaram-me junto com as seis meninas que eu
vira antes como noviças, futuras freiras do convento de Santa Beatriz. Eu mal
processei o que elas faziam, de tão exausta que estava.
“Quando a cerimônia acabou e a marcha
fúnebre seguiu até o cemitério, que fica em outra cidade, uma das freiras ficou
para trás e me levou de volta para o convento. Ela me explicou que eu precisava
comer porque agora minha vida era importante para toda a cidade. Eu estava
exaurida demais para ser tão teimosa, por isso comi e fui dormir.
“Acordar foi surpreendente. Eu estava em
uma sala escura, sendo observada por quatorze olhos famintos. Eu vi as freiras
atrás de tais figuras, com os rostos como se de mármore, sem expressão. Foi
então que começaram dias cruéis. Eu fui atacada. Mordida e sugada a ponto de
quase perder todo o sangue. Acredito agora que aquelas figuras eram vocês, mas
na época eu não tinha como saber, só sentia dor e exaustão, seguidos por breves
momentos de inconsciência.
“Quando aquilo acabou, me lembro de estar
deitada em uma cama sendo tratada por duas freiras agora de olhos gentis. Elas
não estavam de hábito, usavam vestidos coloridos e os cabelos soltos, mas não
eram bonitas. Eu nunca soube distinguir quem era quem e, pensando bem, nem
sabia quais eram seus nomes. Elas esperavam que eu estivesse cansada e
suscetível a qualquer coisa que dissessem, mas não poderiam estar mais erradas.
Eu estava descansada e de volta a razão. Tudo que havia acabado de viver podia
ter tirado muitas das minhas certezas, mas eu não esquecia que as odiava e isso
foi o que me manteve sã e me lembrou de quem eu era. Quando me chamaram de
volta para conversar, eu havia voltado à minha habitual teimosia.
“Nos anos seguintes, elas me expuseram a
diversos traumas. Muitos deles foram causados por vocês, mas sei que elas a
hipnotizaram e a forçaram a me machucar. E mesmo que tivessem me machucado de
propósito, eu não me importaria mais. Eu cresci para me tornar uma jovem
perturbada, consumida pelo ódio. Quando fiz 14 anos resolvi que não lutaria
mais contra elas. Deixaria que elas achassem que eu estava controlada e a mercê
delas para fazer o que quisessem, enquanto planejava a minha vingança com
cuidado.
“Quando elas achavam que tinham ganhado
minha confiança, me revelaram a verdade. Em um jantar que reuniu eu e as outras
noviças, quando eu fiz 15 anos, elas assumiram que eram bruxas e contaram a
história dos clãs. Disseram que minha avó havia bagunçado o feitiço principal
ao insistir que criaria sua filha fora do convento e que depois, quando minha
mãe, já investida noviça, deixou o convento e resolveu se casar, ela quase
levou a cidade ao colapso total. Contaram que minha mãe precisou ser morta para
que eu pudesse me juntar a elas e reunir os clãs a sua antiga glória.
“Ao ouvir aquilo, o ódio voltou a queimar
dentro de mim. Elas haviam matado minha mãe acusando-a de bruxaria quando elas
mesmas eram bruxas. Haviam destroçado a minha família simplesmente por causa de
um feitiço estúpido que tirou o livre arbítrio de todas as gerações seguintes.
E quanto a meu pai, será que ele sabia de tudo isso? Ao me lembrar dele, que
agora era uma sombra obscura que desaparecera uma metade de vida antes, e tudo
que ele havia feito, eu planejei me vingar dele também, mesmo sem saber se ele
ainda vivia.
“Por fora, eu sorria e concordava com os
rituais aos quais elas planejavam nos submeter, mas por dentro eu me obcecava
cada vez mais em relação àquela vingança. Não entendo como eu vivi tão obcecada
por algo por tanto tempo. Eu provavelmente acabaria me matando se conseguisse
cumprir aquela vingança antes da hora, do tanto que a minha vida vivia em
função de acabar com o que aquelas bruxas haviam construído. Acho que devo
agradecer a Kat por ter um motivo para continuar, mesmo depois de ter concluído
meus planos.”
Abri um pequeno sorriso, quase
imperceptível. Eu estava com toda a minha atenção na história, e não era a
única. Até o fogo parecia querer ouvir a história de Kaylee nos mínimos
detalhes.
- Depois de um tempo e de alguns rituais,
eu resolvi pedir à Madre Superiora que me deixasse visitar a minha casa. Como
eu disse, eu não sabia nem o nome dela, mas sabia ser bem persuasiva quando
queria. Ela aceitou, mas só depois de repetir toda a história sobre o quanto
era importante a minha presença no convento. Eu disse para ela que apenas
queria pegar alguns itens pessoais, pois não acreditava que nenhuma marca minha
deveria permanecer naquela casa, que simbolizava a destruição dos clãs. Ela
sorriu e ficou ainda mais satisfeita com meu avanço.
“Mal sabia ela dos motivos verdadeiros por
trás daquilo tudo. Havia apenas um item pessoal que eu queria recuperar. A
caixa com as coisas de minha mãe. Eu escondera meu diário ali, junto com as
fotos, os itens enfeitiçados e o grimório. Eu queria todos. Aprenderia a
entender aquele grimório e treinaria feitiços, o que, por enquanto, e até meus
dezesseis anos, me eram proibidos. Olharia aquelas fotos e me lembraria do
porque queria vingança. Releria o diário, que escrevera aos 7 anos e lembraria
de quem você era, Kat, lembraria que você significava liberdade acima de tudo.
“Encontrei minha antiga casa vazia e
destruída. Toquei nas paredes e sem saber como, descobri que as bruxas haviam
exilado meu pai da cidade, que ele havia se casado com nossa empregada, que
fora expulsa de casa e que agora tinha outros filhos com ela. Comecei a chorar.
Não sei porque, mas lágrimas vieram com tudo e não foram embora por um longo
tempo. Talvez eu quisesse que ele fosse tão obcecado quanto eu. Talvez fosse
porque sua saída de Cianne me impedisse de me vingar como eu queria. Acho que
agora eu jamais saberei o motivo, mas eu chorei até que as lágrimas acabassem.
“Quando alcancei meu quarto, estava com os
olhos inchados e dor em todos os músculos. Bufei ao ver que nada que era meu
havia sido mexido. Peguei com cuidado os vestidos recatados que haviam sido
meus aos sete anos e os comparei com os vestidos delicados e decotados que eu
agora usava quando estava dentro das paredes do convento. Observei meus lençóis
de cama, brancos ou beges e os comparei aos novos, floridos. Naquele momento,
odiei meu pai mais do que jamais odiara qualquer um, mesmo as freiras. Ele
havia tirado de mim todo direito de felicidade, para depois me jogar em um
convento, onde me torturam e traumatizaram por anos até me transformar em
joguete delas. Peguei a caixa de minha mãe com a sede de vingança renovada e
voltei para o convento quando todas já estavam dormindo.
“Passei os anos seguintes trabalhando no
grimório. Levei muito tempo para dominar o feitiço certo. Foi só há duas
semanas que consegui completamente, quando fiz 17 anos e um festival aconteceu
na cidade, para que o encantamento finalmente fosse dividido entre as noviças –
e mais tarde fosse passado para vocês, como nós fomos informadas naquela
noite.”
Kaylee olhou para mim, suavizando o olhar.
- Saber que você estava ali, presa naquela
torre durante todo esse tempo, foi o que deu a coragem de terminar o feitiço.
Liguei a vida de todos os clãs criadores de Cianne à minha. Isso não
significava ligar a vida de toda cidade a minha, porque elas não sabiam, mas eu
sim, o feitiço estava se destruindo desde que Kat me assombrara. Eu pretendia
destruir minha vida a qualquer minuto, pois já imaginava que voltaria como
vampira, mas não foi necessário. Naquela noite, eu peguei tifo. E o resto é a
história do fim de Cianne.”
A caminho de Nova Iorque, Estados Unidos
27 de julho
Diário de Kat
Eu achava que todas nós iriamos querer ir
embora de Cianne o mais rápido possível, mas acabamos dormindo no salão comum
do convento naquela noite. Só na manhã seguinte decidimos o que fazer.
- Precisamos voltar para a Europa. – Ellie
disse, travando a mandíbula. – Simplesmente não suporto mais esse lugar.
- Bem, isso é certo. – Concordei. – A
questão é como iremos voltar.
- De barco, é claro. – Naomi respondeu,
mostrando a obviedade. – Você sabe onde há um porto, Kay?
Kaylee discordou com a cabeça.
- Certo, então precisamos encontrar um
porto próximo daqui e embarcar no primeiro navio que estiver indo para a
Europa.
- E quando chegarmos lá? – Anika perguntou,
parecendo a única que queria propósitos.
Eu pensei.
- Ainda resta algo a ser feito antes de completarmos
o Exército: Acabar com as alucinações de Sophie.
Todas se viraram para Sophie que, com os
olhos cansados, concordou.
- Primeiro precisamos saber por que e como
elas existem e de onde vieram. – Ela disse, sábia - Depois, acabamos com elas.
- E para isso precisaremos de uma bruxa
poderosa. – Miranda completou, como se não fosse óbvio.
- A questão é: Qual? – Ellie perguntou -
Não temos mais nenhuma bruxa de confiança viva e sabemos melhor que ninguém que
bruxas podem ser perigosas quando pressionadas.
O burburinho tomou conta da sala, mas Anika
o silenciou com um erguer de mãos.
- Tecnicamente, nós temos sim.
Todas nós a encaramos.
- Minha família continuou depois que eu
morri. – Anika disse, baixinho, se sentindo intimidada pelos olhares. - Eu
tinha irmãs mais novas. E se minhas contas estão certas, provavelmente tenho
algumas sobrinhas fazendo bruxarias por aí.
Nunca vi Ellie tão satisfeita. Nem resto do
Exército.
- Certo. – Eu disse, pensando - Então
encontraremos uma cidade com um porto e vamos para a Europa. Seguindo lá,
daremos um jeito de rastrear a família de Anika e pediremos que elas nos ajudem
com as alucinações de Soph. Provavelmente iremos precisar dar algo em troca.
- Ei, minha família não é assim! – Anika
protestou.
Sophie abriu um sorriso.
- Sua geração talvez não fosse, mas vocês
continuam sendo o clã de Deyah.
Ergui o tom de voz.
-...Mas isso nós vemos depois. Tem mais
alguma coisa que precisamos fazer em Cianne?
O silêncio reinou, me fazendo acreditar que
a resposta era negativa, até que Sophie abriu a boca outra vez:
- Bem, eu acho meio errado que saiamos de
Cianne sem levar algo que possa nos ajudar no futuro... Além de Kaylee, claro.
- O que você quer dizer? – Valentina falou,
rouca, e percebi que eram suas primeiras palavras do dia.
- Pensem com cuidado. Sete clãs se uniram
para criar essa cidade e reinaram aqui por séculos. Imaginem só tudo que
mantiveram documentado, toda a riqueza do conhecimento guardado nessa igreja.
Não havia como discutir com aquilo.
- Você sabe se existe uma biblioteca aqui?
– Perguntei voltando meus olhos para Kaylee.
Kaylee piscou.
- Claro. Passei muitas horas lá estudando a
história de Cianne. – Se levantou e apontou o corredor – Venham comigo.
Ela nos levou por alguns corredores antes
de chegar a uma sala com uma grande porta de madeira. Lá dentro, encontramos um
número maior de livros do que eu esperaria. Todos sobre bruxaria ou manuais
para o controle de Cianne. Mesas de leitura também tomavam a sala, confirmando
o que Kaylee dissera sobre a sala ser usada como escola. Organizamo-nos de
forma que cada uma lesse uma sessão da biblioteca e saíssemos dali o mais
rápido possível. Levou cerca de quatro dias para que concluíssemos isso. A
maioria dos livros não tinha nada que nos interessava, mas guardamos alguns
grimórios mais antigos por via das dúvidas.
Os livros que guardavam as finanças,
contagens de população e lista de crimes cometidos por moradores de Cianne eram
enormes e sem informação nenhuma que nos interessasse então os deixamos por
último. A noite fazia com que fosse impossível ler qualquer coisa, então na
terceira delas, resolvemos ir atrás da sala de pedra onde ficávamos presas
procurar por nossas coisas. O caminho até o alto da torre parecia ainda mais
longo por dentro. As mochilas de lona e os vestidos ainda estavam lá,
intocados.
Organizamos todos os nossos pertences
durante aquela noite, incluindo os que deixaríamos para trás, e na manhã
seguinte voltamos para terminar a leitura dos livros da biblioteca. Foi aí que
Sophie achou o que tanto procurava.
- O resumo das prisões de 1900! – Ela
gritou, quase derrubando uma montanha de livros ao se levantar da mesa onde
lia.
Todas paramos o que estávamos fazendo para
olhar para Sophie. É claro que ela queria saber os detalhes da morte de sua
irmã, mas por algum motivo não admitira isso. Seus dedos percorriam as páginas
com rapidez, provavelmente procurando pelo mês em que Charlottie morrera.
Quando parou de folhear, sua expressão se tornou dura. Seus olhos perderam o
foco por um momento, mas ela balançou a cabeça e voltou a encarar a folha como
se a alucinação fosse uma mosca que atrapalhava sua concentração. A expectativa
fez com que a sala parecesse congelada por um momento. Então Sophie voltou a se
sentar com um baque surdo.
- Não era ela. – Ela disse, largando o
livro e escondendo o rosto entre as mãos como se fosse chorar.
- O QUÊ? – O grito era de Ellie, mas bem
que poderia ser meu.
O livro que Sophie segurava foi alcançado
por Anika e passado de mãos em mãos, mas nunca chegou às minhas.
- Não era ela. O livro diz claramente que
os olhos da vampira morta eram azuis. Os de Charlottie eram castanhos.
Por um instante, não entendi porque saber
que sua irmã não foi morta pelas bruxas de Cianne deixava Sophie tão frustrada,
mas logo meu cérebro fez a associação: Ao saber que sua irmã estava morta e
vingada, Sophie podia deixar mais um pedaço da sua vida humana para trás e
seguir em frente. Agora, voltando à ignorância a respeito de Charlottie, Sophie
voltaria a ter aquela parte de si em inquietação até que o problema fosse
solucionado.
- Sophie... – Comecei.
- Não diga nada, Kat. – Ela interrompeu,
tirando as mãos do rosto. Seu rosto estava cheio de lágrimas, mas isso dava a
ela uma expressão feroz e selvagem – Não seja condescendente comigo agora. Só
me garanta que vamos continuar buscando por Charlottie.
A sala estava silenciosa outra vez.
- É claro que vamos! – Eu disse, em partes
ofendida. – Não temos nada a fazer até as coisas estarem ajustadas para você,
Sophie.
- Ótimo. – Ela respondeu, quase rosnando. –
Vamos logo embora daqui.
Sem dizer quase nada, nós oito pegamos
nossas coisas e saímos da igreja. Naturalmente, o fedor da morte já havia
tomado conta de todos os cantos de Cianne. Com uma careta de nojo, Kaylee
declarou o fim de todos os lugares que já conhecera na vida:
- Vou colocar fogo em tudo. Sigam em minha
frente e logo encontro vocês.
Fizemos isso. Saímos pelo portal - o mesmo
que havíamos atravessado ao cair em uma armadilha 17 anos antes. Até a ideia
parecia perturbadora demais para mim. Eu passara 17 anos em cativeiro. Isso é
mais tempo do que eu passei viva. E dez desses anos, foram passados
hipnotizada, sendo usada por bruxas para torturar uma garotinha. Quando
deixamos os limites de Cianne, o fio de tensão que nos mantinha nervosas pareceu
ser partido e eu voltei a ver meu Exército de sempre. Vampiras tão tranquilas e
felizes quanto vampiras conseguem ser. Menos Sophie, que parecia ainda mais
perturbada.
Não ficamos para ver Cianne queimar. Sair
dali e seguir para o vilarejo mais próximo para que nos fortalecêssemos parecia
o mais certo a fazer. Kaylee nos encontrou alguns quilômetros depois.
- Então? – Perguntou, parecendo animada. –
Para onde iremos?
- Qual a cidade grande mais próxima? –
Perguntei, olhando para cima. Aprendi a me localizar por estrelas há tanto
tempo que acho que nunca vou conseguir me acostumar com outra forma.
- Grande de verdade, só Nova Iorque, mas
fica longe. Precisamos fazer uma parada antes se quiserem se alimentar.
- Por que o uso da segunda pessoa? –
Perguntei.
Seu ar feliz pareceu se anuviar, mas não
muito.
- Acho que não precisarei me alimentar por
um bom tempo. – Respondeu.
- Sangue nunca é demais, Kay. – Valentina
disse, com a irmã ao seu encalce, concordando. Pelo visto o apelido novo iria
pegar. As três mais novas sempre parecem achar qualquer nome grande demais.
Kaylee não respondeu e a conversa pareceu
morrer por ali. Não falamos nada enquanto continuávamos nossa viagem. O sol se
pusera e já estava quase nascendo outra vez quando encontramos uma cidade. Ela surgiu
do nada e se não fosse tão grande acabaríamos esbarrando nela sem querer. Era
essa uma das vantagens da industrialização: cidades cada vez maiores, menos
tempo entre uma e outra.
Não me dei ao trabalho de saber o nome
daquela cidade. Não valeria a pena. Nos escondemos em um beco, de forma que
algumas ficassem cuidando de nossos pertences enquanto as outras caçavam.
Kaylee afirmou que poderia cuidar de tudo enquanto todas nós nos alimentávamos,
mas jamais deixaríamos a novata sozinha.
Chamar Kaylee de novata me fez sorrir.
Naomi já estava conosco havia 17 anos - 17 estranhos anos, mas decididamente um
bom período de tempo. Minha prima já provara seu valor de tantas formas que era
considerada parte do grupo sem espaço para dúvidas. Em breve Kaylee estaria tão
dentro do Exército quanto ela e uma nova vampira apoiaria nossos planos. Em
breve seriamos 13. E então o plano de Deyah entraria em ação.
Sophie, as gêmeas e eu fomos as primeiras a
sair para caçar, mas nos separamos assim que alcançamos a luz. Não conseguiria
descrever a sensação de voltar a caçar dentro de uma cidade sabendo que eu
estava livre e que poderia ir para onde quisesse quando terminasse. Faria até a
pior e mais doente caça parecer um manjar dos deuses. Quando voltei para o
beco, Ellie e Kaylee conversavam baixinho enquanto Anika cochilava. Ellie e
interrompeu a conversa e se levantou para ir caçar, então eu me sentei onde ela
estava.
- Sobre o que vocês conversavam? –
Perguntei, olhando nos olhos de Kaylee.
- Nada demais. - Ela deu de ombros - Ellie
estava me contando sua história e então comparamos cicatrizes.
Olhei para os braços de Kaylee quando ela
disse isso. As cicatrizes de mordidas estavam lá e em grande quantidade. Eu
sabia que aquilo era só uma amostra das marcas que ela tem espalhada pelo
corpo. Kaylee passou anos tendo o sangue drenado até quase morrer só para ser
reidratada outra vez por alguns meses e quando estivesse recuperada passar por
tudo de novo.
Com um arrepio me lembrei da noite em que
morri. Fui sustentada por pouquíssimo sangue nas veias por horas e aquilo ardia
como o inferno, por isso não sei se suportaria passar por aquilo outra vez sem
enlouquecer. Passar por aquilo diversas vezes durante dez anos – muito para
quem só viveu 17 – justifica a sede de vingança de Kaylee de uma forma mais do
que lógica. Voltei a olhar para seu rosto, mas ela agora encarava o vazio à sua
frente.
- Sabia que quando sua mãe foi morta você
foi a única de toda Cianne a notar que eu estava observando tudo da janela? -
Comecei, tentando mostrar para ela que a admirava. Ela não olhou para mim. -
Você só tinha 2 anos, mas olhou diretamente para mim. Provavelmente foi por que
a ligação com a cidade passou diretamente para você quando ela morreu e você
sentiu o perigo tão perto. Mas seus olhos não estavam amedrontados ou
ameaçadores, estavam simplesmente curiosos.
- Onde você quer chegar? – Ela perguntou,
direta.
Perceber que os últimos ecos de humanidade
estavam se desfazendo e que ela estava se tornando uma vampira fria como Ellie,
me fez sorrir.
- Aquele olhar me fez ter certeza de que eu
não deveria simplesmente matar você, Kaylee. Você estava destinada a ser muito
mais do que uma garotinha que perdeu a mãe e foi assassinada logo em seguida.
Muito mais do que a garota cuja morte acabou com o encantamento sobre Cianne.
Você merece mais, Kay e você será. Tudo que você passou valerá a pena.
Kaylee ficou calada por um instante.
- Por que você parece tentar me consolar? –
Perguntou apertando os olhos.
- Porque eu conheço minhas vampiras. Sei
que tudo que você precisa é de provas de que tudo que você passou em vida vai
ser compensado depois dela. E eu estou aqui para garantir que será.
Nesse momento, Sophie voltou e acordou
Anika com um chute na canela para que ela fosse caçar. Kaylee soltou o ar pelos
dentes.
- Obrigada, Kat. – Disse, depois de um
tempo. – Por fazer de mim mais que uma herdeira de Cianne.
- Agradeça a você mesma.
Não voltamos a conversar depois disso.
Depois que todas caçamos, resolvemos sair da cidade e montar um acampamento
próximo para descansarmos e na manhã seguinte continuar a viagem até Nova
Iorque.
Nova Iorque
1º de agosto
Diário de Kat
Resolvemos não voltar a caçar antes de
chegarmos a nosso destino final. Não havia porque adiar a viagem se todas nos
sentíamos bem alimentadas e descansadas. Algum bem a prisão havia feito,
aprendemos a controlar a sede de sangue pelo maior espaço de tempo possível.
Nova Iorque é uma cidade surpreendente.
Entrar nela foi descobrir todos os avanços que perdemos nos últimos 17 anos.
Grande parte das casas da cidade tem luz elétrica, um avanço que nem consigo
descrever. Mas a maior e mais importante novidade de todas é uma que nós,
simples vampiras adolescentes, jamais poderíamos imaginar e muito menos prever:
O mundo está em guerra.
- Como assim o mundo inteiro está em
guerra? – Ellie pergunta, da cozinha do pequeno apartamento (ah, agora é comum
que casas sejam construídas uma em cima da outra e não mais lado a lado) que
invadimos quando chegamos à cidade. Resolvemos que algumas semanas na cidade,
aprendendo algumas coisas e descobrindo o novo mundo, não mataria ninguém.
- Bem, não o mundo inteiro. – Eu respondi,
cansada. – Só a parte do mundo que interessa para nós.
Eu não esperava uma guerra humana àquela
altura do campeonato. Principalmente uma que já durava três anos e tinha como
nome “A Grande Guerra”.
- Pelo que eu soube, tudo começou por causa
de um assassinato na casa real austríaca.
Isso chamou a atenção de Anika, que
relaxava preguiçosamente no chão quente.
- Quem?
- Ferdinand, o antigo herdeiro da coroa. –
Respondi, tentando continuar a história.
- Que diabos aconteceu com Rudolph?
Eu nem me lembrava que ela ainda não sabia.
Nós quisemos manter Anika longe das notícias sobre os Habsburgo nos primeiros
anos de sua transformação, por medo de que ela resolvesse aparecer por lá.
Suspirei antes de responder:
- Sophie o matou.
- O QUE?
Sophie caiu na gargalhada e eu retomei.
- Isso não é importante!!! – Disse, com
toda ênfase – O antigo imperador até já morreu, Karl reina lá agora. A questão
é que agora Alemanha, Áustria-Hungria e Itália estão em guerra contra
Inglaterra, França e de certa forma, Estados Unidos (já que a Rússia saiu da
guerra para se concentrar em sua própria guerra civil) por diversos motivos que
na verdade nada tem a ver com quem reina ou deixa de reinar na Áustria.
- A guerra está assolando o território
inteiro? - Naomi perguntou.
Concordei com a cabeça.
- Principalmente o norte da França.
Sophie parou de
rir.
- Verdant...?
- Inclusive. - Concordei.
- Precisamos voltar. – Ela disse, com
veemência.
Todas ficamos entramos em um silêncio
repentino, como acontece sempre antes de começarmos a discutir a plenos
pulmões. Dessa vez, no entanto, o silêncio durou tempo demais, porque nenhuma
de nós sabia o que dizer.
Eu sou mais velha que todas as vampiras do
Exército e nunca havia vivenciado uma guerra, pelo menos não uma séria e,
obviamente, jamais uma daquela dimensão. Claro que a carnificina atrai vampiros
tanto quanto atrai moscas, mas não sabemos as consequências que o envolvimento
com uma guerra poderia trazer.
Não erámos mais demônios sem alma, sem nada
a perder. Não desde Deyah. Especialmente não desde que Pierre foi embora e eu
resolvi que não tinha opção além de aceitar a missão de Deyah. Nós somos seres
com um destino. Precisávamos sobreviver e ainda consertar alguns danos em nosso
Exército antes de qualquer coisa.
No fim, resolvi que Sophie estava certa.
- Sim, precisamos. – Concordei. – E nosso
primeiro destino será Verdant.
Oceano Atlântico
6 de agosto
Diário de Kat
Achar um porto foi fácil e um navio que
seguia para a França, mais fácil ainda. Decidimos quase sem discussão que ir
embora de Nova Iorque era um mal necessário, por mais que tivéssemos adorado a
cidade. Ficamos na cidade mais um dia apenas para comprar roupas novas. É
incrível como a moda muda rápido hoje em dia e chega a ser irritante ter que
comprar roupas novas o tempo todo, mas é um mal necessário. Nossa beleza
infernal impede que não sejamos notadas e usar roupas que estão de acordo com
isso nos ajuda a nos camuflar nas cidades onde entramos.
O
navio que invadimos estava levando mantimentos para uma cidade que ficava a
alguns quilômetros de Verdant. Conseguimos alguns jornais novos e antigos para
estudar as condições da guerra e enquanto decoramos os fatos mais notáveis da
Grande Guerra, Kaylee lia este diário descobrindo alguns detalhes que ainda não
conhecia sobre o Exército.
Ao contrário de Naomi, Kaylee não tinha
perguntas depois de ler tudo. Tudo que descobriu guardou em algum lugar quieto
dentro de si, e, ao terminar a leitura, se juntou a nós na organização dos
fatos da guerra. Foi só quando decidimos nos alimentar outra vez que Kaylee fez
algo que surpreendeu e abalou todo o Exército: Negou-se a caçar outra vez.
- Kaylee, você sabe que pode e deve ser
sincera comigo, não sabe? – Eu disse, depois de enviar as meninas para a caça.
Estávamos sentadas no chão escondidas entre
as cargas. A noite já estava alta e a escuridão reinava dentro do navio. O mar
estava calmo, mas mesmo marolas me assustavam. Havia acabado de ler um jornal
de 1912, sobre o que acontecera com o Titanic.
- Sei, Kat.
- Então me explique: por que diabos você
não quer se alimentar?
Ela não olhou para mim, continuou encarando
as sombras das caixas de madeira.
- Quem disse que eu não quero? Simplesmente
não estou com sede.
- Essa é boa, Kay. Vampiras sentem sede o
tempo todo e você já está sem se alimentar há semanas.
- Certo. Então eu realmente não quero.
- Por isso pergunto outra vez: Por que?
- Porque não há necessidade.
Suspirei.
- Kaylee. Por favor.
Ela ficou em silêncio por um bom tempo, mas
eu podia ouvir sua mente trabalhando enquanto ela procurava as palavras certas.
- Eu... Já destruí toda uma cidade, Kat.
Não sei se quero matar mais pessoas.
A frase me surpreendeu, não posso negar.
Nunca ouvira falar de uma vampira que fosse contra matar pessoas. E nem
imaginava que Kaylee fosse ser a primeira vampira assim. Nas últimas semanas,
Kaylee havia se tornado a amiga mais próxima de Ellie, depois de Sophie e eu,
naturalmente. Mas como Sophie tem estado mais em alucinações do que conosco e
eu tenho muito a resolver, Ellie tem passado mais tempo com Kaylee do que com
qualquer uma de nós. Sendo influenciada por Ellie, o esperado era que Kaylee se
tornasse uma arma de destruição em massa, como Ellie, e não uma... Vampira com
medo de ser vampira?
Balancei a cabeça e olhei para ela.
- Você não precisa matar. Só se alimentar
um pouco e hipnotizar a pessoa para que ela não se lembre disso. Eu já fiz isso
algumas vezes.
Ela concordou com a cabeça.
- Provavelmente farei isso. Mas não ainda.
Vocês suportaram vários meses, certo? Eu também consigo.
Suspirei, pensando que realmente não
haveria como convencê-la por enquanto.
- Certo, você quem sabe.
Acampamento do exército
francês próximo às ruinas de Verdant, França
4 de setembro
Diário de Kat
As alucinações de Sophie dominaram-na
completamente assim que pisou em Verdant - ou no que restou dela. A cidade foi destroçada. Por ficar no extremo
norte da França, perto da fronteira com a Bélgica, o exército tomou a cidade e
encaminhou os antigos moradores para outras cidades. Por semanas a cidade foi
atacada e tudo que restou, até mesmo do imponente castelo dos barões de
Noville, foram destroços queimados.
Aquilo afetou Sophie mais do que qualquer
coisa que aconteceu nos últimos anos. Por horas, ela permaneceu parada, o olhar
fora de foco, soltando rosnados enquanto lutava contra o que quer que estivesse
vendo. Queríamos tirá-la dali, mas sempre que nos aproximávamos ela rosnava,
avisando que só sairia dali quando conseguisse vencer aquilo. Quando conseguiu,
desmaiou e quase foi ao chão, mas os braços de Ellie estavam perto o suficiente
para ampará-la.
- Que diabos foi isso? – Ellie perguntou
quando ela recobrou a consciência, mesmo que ainda meio desorientada.
- Eu... – Ela começou, fraca.
Eu detestava ver Sophie daquele jeito, como
detestaria ver qualquer uma delas naquela situação.
- Shhhhhh. – Eu disse, silenciando todas -
Não, não fale. Você precisa ser alimentada e precisa de uma boa noite de sono.
Você é uma vampira, mas não é indestrutível. Quando encontrarmos a parente de
Anika que possa ajudar, discutimos sobre isso.
Sophie concordou com a cabeça, cansada
demais para dizer qualquer coisa, e a conduzimos até o acampamento do exército
francês mais próximo, destruindo-o com a maior facilidade, enquanto Kaylee
vigiava.
Berlim, Alemanha
14 de janeiro de 1918
Diário de Kat
É aniversário de Ellie, mas há pouco a
comemorar.
Nos últimos meses, a situação de Sophie
apenas piorou. As alucinações dominam seu corpo sempre que ela atinge um
cenário desolado pela guerra. Ver Sophie lutando contra algo que está dentro
dela quase todo dia parece acabar com o espírito do grupo. As meninas esperam
que ela fale sobre as alucinações, mas eu mando que parem de infortuná-la antes
que ela responda. Eu tenho algumas ideias sobre o que podem ser essas
alucinações. Só que se tudo que deduzi a partir do pouco que sei for verdade,
eu não sei o que isso pode significar para nós.
De qualquer forma, depois que colocamos
fogo no acampamento francês, nós seguimos para a Áustria. Foi um caminho
difícil, no qual precisamos de todo cuidado já que a entrada e saída de um país
para o outro estava sendo vigiada de perto. Conseguimos chegar à Áustria dois
meses depois. Anika quase entrou em colapso ao descobrir que a monarquia estava
em crise. O novo Imperador era pouco conhecido dela, mas ela sabia o suficiente
sobre a criadagem de Schönbrunn para descobrir que a família Begleiter deixara
de prestar serviços a casa real de Habsburgo há algumas décadas, mais ou menos
depois de Wenda morrer.
A notícia da morte da mãe nem chegou perto
de afetar Anika tanto quanto a notícia de que a Áustria poderia ser comandada
por presidentes a qualquer nascer do sol. Ela tratou de perguntar sobre as
arquiduquesas e depois sobre as irmãs. Descobriu que a mais velha de suas irmãs
se mudou para Berlim e vivia com a família tranquilamente, pelo menos até a
guerra começar. Por isso viemos parar aqui.
A Alemanha é um país desolado. Desde que
aviões entraram na guerra, o país, principalmente sua capital, tem sido atacado
praticamente todos os dias. Com todos os recursos do governo sendo usados na
guerra, o preço de todas as mercadorias subiu e o mesmo dinheiro que a
população guardava com cuidado perdeu o valor. A fome agora é conhecida do povo
alemão. Não que nada disso me afete, mas afeta Sophie. E assim minha teoria a
respeito do que são essas alucinações – se é que elas são realmente alucinações
– tem se tornado cada vez mais fundamentada.
Kaylee ainda se recusa a se alimentar. Até
quando matamos alguém e entregamos para ela, ela diz que prefere não beber por
enquanto. O motivo real continua sendo um mistério, mas eu decidi não me
preocupar com isso. A escolha é dela e não há nada que possamos fazer.
Ainda não encontramos a família de Anika,
mas agora que nos acomodamos no novo apartamento que conseguimos em Berlim, ela
e as gêmeas têm procurando por Adelina em todos os cantos. Existem diversos
Blegleiter em Berlim e sem saber o nome e sobrenome do homem com quem Adelina
se casou é impossível descobrir onde ela está, se é que ainda se encontra em
Berlim. Mas não vamos desistir até vasculharmos cada canto da cidade.
15 de janeiro
Diário de Kat
Ellie convenceu Kaylee a se alimentar como
parte das celebrações de seu aniversário. Bem, talvez convenceu não seja a
palavra certa. Está mais para ameaçou e provocou até que ela não tivesse opção
além de matar ou morrer. Não acho que nenhuma de nós tenha duvidado de que
Ellie fosse mesmo matar Kaylee se ela recusasse a, nas palavras de Ellie, “ser
uma vampira”.
Claro que isso não fez com que Kaylee
ficasse mais feliz em machucar alguém para se alimentar, o que não faz o mínimo
sentido. Por mais que eu agora saiba que eu ainda tenho uma alma presa em algum
lugar do Inferno (depois do que senti durante a prisão, não poderia duvidar),
eu ainda tenho algumas dúvidas a respeito de sentimentos. Nossa alma está em
desespero, mas sente agonia demais para se importar com qualquer outro
sentimento, por isso ainda acredito que é impossível para nós, sentir. Mas não
parece ser impossível para Kaylee sentir algum tipo de piedade pela comida.
Ontem à noite, quando todas conversavam com
Kay sobre que diabos ela achava que estava fazendo eu fui até o quarto em que
Sophie tem ficado para que pudéssemos conversar em paz. Encontrei-a sentada na
cama que ficava próxima a janela. Ela observava a cidade e suas luzes
discretas. Não tinha o conhecido olhar fora de foco. Parecia simplesmente
distraída, pensando em outras coisas, quase melancólica. Me sentei ao seu lado
e suspirei, permitindo-me compartilhar seu estado de espírito por um instante.
A guerra não me faz bem, por mais que eu lamente dizer isso.
- Está tudo bem? – Sophie perguntou sem
tirar os olhos da janela.
- Digamos que estou quase sentindo falta
dos últimos anos que passamos em Cianne. Os que estávamos conscientes, é claro.
Ela suspirou.
- Preciso te contar algo.
Me endireitei na cama.
- Sim?
- Eu me lembro de algumas coisas dos
últimos dez anos. Estive consciente por alguns momentos, mesmo que vocês não
tenham conseguido. Imaginei que fosse por causa do meu corpo fechado, mas isso
só faria sentido se elas não tivessem conseguido me hipnotizar nem por um instante, então eu acho que o
motivo é outro.
Olhei para Sophie com cuidado e balancei a
cabeça. Aquilo confirmava tudo que eu acreditava sobre aquelas alucinações. Só
faltava uma coisa.
- Posso pedir algo? Não é nada simples,
então entendo se declinar.
Finalmente ela tirou os olhos da paisagem e
me encarou.
- Fale.
- Da próxima vez que uma alucinação vier,
quero que se concentre. Não em se livrar da alucinação, mas em entender o que
está vendo e sentindo. Quero que aceite a alucinação e preste atenção em tudo
que vê para que possa me dizer depois.
Sophie ficou em silêncio pelo que pareceu
uma eternidade. Eu não fazia a mínima ideia do que se passava na cabeça dela.
Por fim, concordou.
- Tudo bem, mas tem certeza de que será
seguro?
- Se eu estiver certa, sim. – Respondi,
cuidadosa – Mas não se preocupe, Anika e as gêmeas tem se dedicado ao máximo na
busca por Adelina.
Ela balançou a cabeça.
- Só me prometa que se algo acontecer
comigo, vocês continuarão buscando por Charlottie. Que se eu morrer, ela será
minha substituta no Exército.
- Vire essa boca para lá, Sophie. – Disse,
nervosa. Nem cogitava perder Sophie. – Mas eu prometo. Entendo o quanto isso é
importante para você.
Ela sorriu e bocejou e eu disse que a
deixaria sozinha para que pudesse dormir um pouco. Quando voltei para a sala,
vi as conversas serem silenciadas por batidas à porta. Eu nem fazia ideia de
quem poderia ser, mas imaginei que não seria perigo abrir a porta para alguém
quando oito vampiras aguardavam do outro lado.
Fui recebida por uma garota que se parecia
muito com Kaylee, exceto pela pele, que era clara como leite. Seus cabelos
escuros e lisos escorriam até a cintura. Seus olhos eram grandes e curiosos e
foram eles que me fizeram reconsiderar a comparação que fizera. Na verdade, ela
se parecia com outras duas pessoas que eu conhecera: Anika...
- Olá. – Ela disse com um sorriso
surpreendentemente brilhante - Fiquei sabendo que vocês estavam atrás de uma
bruxa. Ou mais especificamente, da minha mãe. Meu nome é Bianka Littig.
... E Deyah.
16 de janeiro
Diário de Kat
Na primeira vez que vi Bianka, achei que a
Morte estava na minha cola outra vez, me seguindo através de quem eu procurava
como fizera com Naomi. Mas bastaram alguns minutos de conversa para eu me dar
conta de que a única força que Bianka seguia era a sua própria.
- Sei que é bizarro que a filha da mulher
que vocês têm procurado há meses apareça aqui do nada – Ela disse, sentada em
nossa sala enquanto sete pares de olho as observavam -, mas a verdade é que se
dependesse de minha mãe, vocês esperariam para sempre até conseguir o que
querem. Ela é meio contra a prática de magia.
- Não surpreende. – Anika resmungou
atraindo as atenções para ela.
Bianka, em especial, se divertiu ao
reconhecê-la.
- E você é a irmã mais velha dela, certo?
Minha tia que sumiu em 1880. – Disse, segurando um riso.
Anika não achou a mínima graça.
- Sim, mas nem por isso confio em você.
Explique como nos achou.
Bianka suspirou.
- Duvido que vocês acreditem, mas um
espírito me disse onde estavam.
Eu fui a única a acreditar.
- Quais? – Perguntei.
- Mamãe guarda bonecas que podem convocar
ajudar de algumas de nossas antepassadas, sabe como é. Aquilo não deveria ser
meu até que mamãe morresse, mas como eu duvido que ela vá me entregar qualquer
coisa que seja minha por direito, eu sempre acabo mexendo nas coisas dela e
usando algumas coisas para treinar a magia. Uma das antepassadas mandou que
procurasse vocês e fizesse o que minha mãe provavelmente se negaria.
Antes que eu pudesse fazer a próxima
pergunta, Anika interrompeu.
- Espere, se sua mãe odeia tanto magia.
Como diabos você descobriu que é herdeira?
- Novamente, espíritos.
- Você realmente espera que...
- Ela fala a verdade, Anika. – Interrompi e
todas olharam para mim. – Quando alguém nasce para ser uma grande bruxa, todas
as forças cooperam para que ela seja. Sua família descende de Deyah, e foram
todas feitas para serem grandes bruxas, lutar contra a magia só atrai espíritos
prontos para trazer essas grandes bruxas para o seu lado.
Bianka concordou, observando tudo com um
olhar curioso.
- A questão é uma só – Continuei, olhando
bem os olhos de Bianka. – Qual o truque?
- Truque? – Ela pareceu genuinamente
confusa, mas a última coisa que eu faria era confiar em uma bruxa.
- Você disse que quer nos ajudar. Que os
espíritos mandaram nos ajudar. O que quer em troca?
A inocência naqueles olhos escuros
desapareceu.
- Ah, isso. Depende do que vocês precisam
que eu faça.
Sorri e me sentei em frente a ela. Comecei
a contar tudo que acontecera com Sophie do início ao fim. Eu podia sentir
minhas vampiras tensas e preocupadas com a minha franqueza com Bianka, mas eu
sabia o que estava fazendo. Quando terminei, Bianka sorriu.
- Só isso?
- Como assim só? – Ellie perguntou, com um tom ofendido.
- É bem fácil, na verdade, creio que já li
sobre isso. Só preciso de dois dias. Mas... – Ela deixou a frase no ar.
- Mas o quê, Bianka? – Perguntei, irritada
de certa forma.
Ela entrelaçou os dedos das mãos e me olhou
com objetividade.
- Isso é simples demais. Eu tenho certeza
de que todas vocês querem respostas sobre algumas coisas e eu tenho certeza de
que posso consegui-las. Então eu quero fazer uma proposta. – Quase que
inconscientemente, todas se aproximaram. – Posso curar Sophie, se o que ela tem
for curável. Não quero nada em troca por isso, porque sei que ela é parte de um
plano de Deyah e eu acredito no que minha ancestral acreditava.
“Mas entendam, eu só tenho 16 anos. Há
pouco que eu sei sobre o mundo e muito do que conheço está sendo destruído
nessa guerra. Eu tenho um conhecimento surpreendente sobre magia, só porque
minha família é muito antiga, mas não sei tanto assim sobre o resto... Como
sobre criaturas do Inferno como vocês.
“Por isso, proponho um acordo. Cada uma de
vocês pode ter uma pergunta respondida, um feitiço realizado, algum desejo
antigo garantido. A única coisa que peço em troca é um segredo. Mas não um
segredo qualquer, um segredo que as outras também não saibam. Se quiserem, eu
mesma posso acessar suas lembranças e trazer esse segredo a tona. Mas quero que
as outras conheçam seus segredos ao mesmo tempo que eu. Quero tirar alguns
esqueletos do armário.”
A tensão na sala tornou-se palpável. Era
uma proposta tentadora, mas ao mesmo tempo abrir mão de um segredo poderia ser
perigoso. Com uma sensação desconfortável no estômago pensei em quantas coisas
meu Exército escondida de mim. Eu estava disposta a aceitar o acordo.
- Darei os dois dias a vocês para
escolherem o que fazer. Nem todas precisam aceitar e mesmo se apenas uma
aceitar, será significativo para mim. Enquanto eu estiver fora, não alimentem
Sophie. O sangue na Alemanha, no momento, é tudo, menos seguro. – Ela olhou bem
para mim ao completar: - Alguma outra dúvida?
Eu tinha uma.
- Você disse que leu sobre o que está
acontecendo com Sophie. Onde?
Ela sorriu, como se a resposta fosse óbvia.
E era isso que eu temia.
- No grimório de Deyah.
17 de janeiro
Diário de Kat
Não consigo dormir há duas noites. Não
entrei nos quartos para saber, mas duvido que qualquer uma das outras seis que
ouviram a conversa com Bianka tenha conseguido. Ellie, eu sei, também não
conseguiu.
Bianka me intriga. Eu vejo nela todas as
qualidades que me conquistavam nas garotas que transformei, mas ao mesmo tempo
eu sei que toda aquela energia se perderia se ela deixasse de ser bruxa. Sua
força estava em carregar a herança de sua família. Não era como Anika – ou eu –
uma bruxa sobrepujada, que precisava fugir. Ela havia encontrado um jeito de
ser a bruxa que estava destinada a ser apesar de não quererem que ela o fosse.
Quando Sophie acordou ontem de manhã, eu
estava sentada à mesa da cozinha, escrevendo. Ela se sentou ao meu lado e
contei a ela tudo sobre Bianka. Sophie se surpreendeu ao saber tudo que eu
contara a essa garota, mas ela confiava no meu julgamento sobre as pessoas.
Quando contei a ela sobre o acordo que Bianka propusera, eu vi seus olhos
brilharem pela primeira vez em muito tempo.
- Ela pode me ajudar a encontrar
Charlottie.
Sorri ao ver que aquilo realmente tirara um
peso das suas costas, mas me lembrei do que pensara sobre Sophie ter mais
segredos.
- Sim, mas você precisará revelar algum
segredo seu que nós não sabemos.
Ela revirou os olhos.
- Poderia até pedir para que você
escolhesse um. Não sinto que tenho muito a perder revelando um segredo, Kat. Eu
nunca contei alguns porque não gosto de falar sobre o tempo em que era humana.
Mas se for por Lottie, tanto faz.
Nunca fiquei tão satisfeita ao ouvir
Sophie. Ela estava tão certa na forma como agia. Ela era fria, cruel, egoísta.
Ao contrário de Kaylee. Quando pensei naquilo me dei conta de que Sophie ainda
não sabia sobre o que acontecera no aniversário de Ellie. Sophie arregalou os
olhos ao ouvir tudo, mas antes que pudesse dizer qualquer coisa, eles perderam
o foco.
Por um momento ela lutou
contra, mas com uma respiração funda deixou a alucinação a dominar. Sua
aparência calma fez com que parecesse menos em meio a uma alucinação e mais
como se estivesse tendo uma visão. Parecia estar sentindo dor, mas lidava com
ela.
- Pierre. – Sussurrou.
Então pareceu ter sido arrancada da
alucinação e ofegante olhou nos meus olhos outra vez.
- Você estava certa! – Exclamou, tentando
respirar.
- O que você viu?
- Eu... – Tossiu, cansada - Era...
- Sophie...? – Perguntei, mordendo a parte
de dentro da bochecha.
- Era o Inferno, Kat. Eu estava no Inferno.
18 de janeiro
Diário de Kat
Bianka chegou ontem à noite com uma mochila
cheia nas costas.
- Trouxe o máximo de livros e objetos que
pude. – Ela disse enquanto afastávamos os sofás da sala para nos sentarmos no
chão - Acredita que disse para a minha mãe que ia me encontrar com um garoto e
ela ficou mais tranquila do que se eu tivesse dito que ia usar meus dons para
ajudar algumas vampiras? Pensando bem, eu também ficaria.
Ela riu da própria piada e se sentou no
tapete, abrindo a mochila e separando os livros. Anika, um pouco atônita, foi
ajuda-la.
- Você tem irmãs? – Perguntou com uma
curiosidade infantil.
Não cheguei a ouvir a resposta, Ellie me
puxou para um canto.
- O que você decidiu a respeito da proposta
dela?
- Vou aceitar. – Afirmei olhando em seus
olhos para tentar adivinhar o motivo da pergunta - Nunca tive muitos segredos
com vocês. O que não sabem não as afeta de forma alguma. E quanto a você?
- Ainda não sei. – Ela desviou o olhar –
Até mesmo o que mais quero saber parece intimidante.
- Somos seu clã, Ellie.
Ela fez uma careta.
- Essa palavra pode significar muito para
ex-bruxas, mas não para mim, Kat. Eu nunca tive uma família. Sou leal a vocês
porque me apeguei naturalmente, mas não diria que sou tão ligada ao grupo
quanto você.
Ergui a sobrancelha.
- Isso significa que poderia me trair?
- Isso significa que não tenho certeza se
estou disposta a deixar minha armadura cair em frente a todas.
Suspirei.
- Por que você não decide por último? Tenho
certeza de que eu e Sophie seremos as primeiras a abrir mão de nossos segredos
por nossas respostas.
Ela concordou com a cabeça.
- Tudo bem.
Quando voltei a prestar atenção na cena
principal, todas as vampiras exceto eu, Ellie e Sophie já estavam sentadas no
tapete ouvindo atentas a Bianka, que espalhava os livros com cuidado.
- Certo. – Disse, me aproximando. –
Descobriu o que está acontecendo com Sophie?
Sophie e eu já sabíamos, mas não custava
testá-la.
- Sim. – Ela disse abrindo o livro mais
antigo de todos. O grimório de Deyah.
Aproximei-me sendo atraída por aquelas
páginas como se elas fossem um imã. Aquele grimório era uma das maiores
preciosidades do mundo atual. Bianka parou em uma página e eu já estava sentada
no tapete com Ellie e Sophie ao meu lado. O espaço era pequeno para nove
pessoas, mas não tínhamos opção. Antes de ler, Bianka olhou para a janela atrás
dela e suspirou.
- Será que vocês podem apagar as luzes? É
noite de lua cheia e eu vou me sentir mais poderosa se só a luz dela me guiar.
Eu estava olhando para o grimório tão
obstinadamente que nem percebi quem se levantou para fazê-lo, mas quando a luz
apagou, a luz da lua tomou conta da sala imediatamente, banhando Bianka e seus
livros em especial.
- Vocês me disseram que Sophie esteve em
uma discussão com a Morte e venceu. – Ela começou, lendo o livro - Também
disseram que na mesma conversa, a Morte admitiu, com todas as palavras que
Sophie não tinha medo dela, que não esperava morrer, jamais. Isso aconteceu
durante uma Danse Macabre, certo? Antes da uma da manhã?
Bianka levantou os olhos e vi, com o canto
dos olhos, Sophie concordar com a cabeça.
- Lamento dizer, Sophie, mas você não pode
ser curada. Porque o que você tem não é nenhuma doença, maldição nem nada do
tipo, até porque você não pode ser amaldiçoada. Na verdade, o que está
acontecendo já teria terminado há um bom tempo se você não lutasse tão obstinadamente
contra e se não tivesse o corpo fechado. A única forma de essas visões acabarem
é aceitá-las e logo isso tudo vai passar.
Nada que nós já não soubéssemos, mas Sophie
confirmou que entendia com a cabeça outra vez.
- Isso não explica porcaria nenhuma! –
Miranda disse, um pouco revoltada. – Diga o que está acontecendo!
Bianka sorriu.
- Eu até posso, mas para vocês entenderem
plenamente eu precisaria explicar muitas coisas que não tenho certeza se Kat
quer que saibam.
Eu me sobressaltei com a frase dirigida a
mim, mas assim que me dei conta, apertei os olhos e cruzei os braços. Bianka
dissera que queria tirar alguns esqueletos do armário... Aquele era o maior e
mais incriminador de todos. Mas já estava na hora dele vir à luz.
- Vá em frente.
Ela relaxou os músculos, colocou o livro
sobre o colo e estalou os dedos antes de começar. A luz da lua fazia seus olhos
parecerem mais profundos.
- De todos os grimórios que eu já li, o de
Deyah é o melhor. Ela era a bruxa mais detalhista e registrava mais sobre seus
trabalhos do que qualquer uma. Ela não só desenhava feitiços, ela escrevia a
história deles em detalhes como se desejasse mesmo que seus descendentes
tivessem aquele conhecimento, nos mínimos detalhes, em mãos. O que foi uma
ótima ideia, já que ela é a responsável pela criação dos vampiros.
Ela fez uma pausa, como se esperasse que
nós nos começássemos a discutir depois que entendêssemos a gravidade dessa
notícia. Mas ficou óbvio que metade do Exército não acreditava nela e precisava
mais do que aquilo para se convencer.
Senti o olhar de Ellie em mim e me virei
para olhar para ela. Lembrei do que disse quando ela pediu a história da
criação dos vampiros. “Alguns segredos nunca deveriam ser revelados”. Não deixa
de ser verdade, mas acho que agora é tarde demais.
- Ela nasceu em uma época em que bruxas
tinham que viver quase em isolamento total ou acabavam presas. – Bianka
continuou, olhando para o grimório como se aquela parte da história estivesse
escrita ali - Foi um pouco antes de a Igreja decidir que bruxas representavam
perigo, menos de um século antes da Grande Queimada de Verdant. E foi o medo, a
tensão em relação às bruxas, que a fez pesquisar sobre a Morte.
“Deyah passava horas em cemitérios,
esperando poder se comunicar com os corpos ali dentro, entender seus mistérios.
Aos poucos, entendeu as leis da Morte: Os que estão vivos só se comunicam com
os que estão vivos e os que estão mortos só se comunicam com os que estão
mortos. A Morte tem controle sobre os corpos sem vida e os com vida, porque só
tem poder sobre o que se pode destruir... O que deixa a alma fora de seus
domínios.
“Foi
graças a isso que Deyah teve a ideia que era a mais corajosa e inusitada que
uma bruxa poderia ter: ela criaria corpos indestrutíveis, regidos pela alma,
mas pelo lado de fora, que mantivessem sua consciência, seu livre arbítrio. Que
não pudessem morrer por serem dominados por sua alma imortal, uma força
separada e exclusiva, e não pela Morte. Para isso, ela precisaria mexer com
magia de almas, o que era considerado magia negra, mesmo naquela época.
“Para entender quanto o que Deyah fez era
perigoso, é necessário entender que aquela época tinha clãs tão novos que
grimórios sequer existiam. Elas não tinham nada além do próprio instinto para
seguir. E ainda assim os planos de Deyah deram certo. Ela começou roubando
recém-nascidos porque suas almas ainda eram maleáveis e não estavam totalmente
seguras no corpo de seus hospedeiros. Quando teve seu primeiro sucesso, passou
dias saboreando a vitória, mas precisou destruir todo seu trabalho, pois
percebeu que aquele bebê também jamais envelheceria e de nada tinha serventia
um bebê imortal.
“Ainda não estando pronta para tentar
aquilo em si própria, começou a atrair jovens para a sua casa, para fazer o que
precisava nelas.” Bianka deslizou o dedo pelas palavras no grimório, como se
lesse pelo toque. “Conseguiu sucesso em pelo menos 4 de cada 10 pessoas em quem
tentava algo. Parece pouco, mas aquilo fez de Deyah a bruxa mais poderosa de
todas, até hoje.
“Quando a média de sucesso aumentou, Deyah
recebeu uma visita da Morte, em uma noite de lua cheia. Ela lhe ordenou que
parasse com aquilo ilustrando o quanto seria perigoso que o ser humano fosse
capaz de ter um corpo ser imortal. Com medo - porque ela tinha medo da Morte,
mesmo que jamais admitisse - Deyah deixou seus planos de lado... Por um tempo.”
Bianka suspirou quando chegou a esse ponto.
Parecia estar triste por saber que chegara à parte da história onde sua
antepassada mais adorada cometia uma série de erros e perdia o controle do que
havia criado.
- Cerca de dois anos depois, Deyah se
apaixonou. Casou-se com um homem que morava em uma vila próxima e o convenceu a
morar em isolamento com ela. Ela teve três filhas, que foram criadas de forma a
se tornarem bruxas poderosas, mas só uma, Michaella, chegou a idade adulta.
Quando isso aconteceu, Deyah ordenou que ela deixasse a casa dos pais. Sabia
que suas outras filhas haviam sido levadas pela Morte como forma de vingança
contra a bruxa que se mostrara mais esperta do que deveria e não queria que sua
linhagem se perdesse por definitivo. Disse para a filha que se casasse e
tivesse muitos herdeiros, voltando apenas dentro de 30 anos para buscar o que
lhe era de direito.
“Um pouco depois disso, seu marido adoeceu.
Deyah tinha cerca de 40 anos na época e já se sentia degradando aos poucos.
Morria de medo de morrer, se me permitem o trocadilho, mas foi o medo de ver o
homem que mais amava no mundo sendo tomado pela força que mais odiava que a
levou a loucura de tentar se comunicar com o Inferno. Quando contou por sonho
ao demônio que convocara o que havia feito, ele pediu alguns dias para
deliberar. É claro que o Inferno já sabia daquilo, porque estava sempre de olho
em formas de vencer a Morte, mas não podia fazer nada a respeito até ser convocado.
E foi essa convocação que mudou tudo.
“Ordenaram a Deyah que
destruísse a alma de alguém do condado, pois precisavam de alguém na Terra para
auxiliá-la. A bruxa, em desespero por seu marido, fez o que podia para
conseguir cumprir as ordens. Quando o homem possuído a veio procurar, ela
estava pronta para repetir seus antigos feitos.
“Preciso dar os devidos
créditos ao Inferno: Eles aprimoraram o que minha antepassada criou de formas
que ela não poderia. Mas como uma das maiores forças do universo, eles literalmente
não fizeram mais do que a obrigação. O esquisito é o desespero ter feito tanto
com o estado de espírito de Deyah que ela sequer se perguntou que diabos o
Inferno iria querer de volta.
“Quando tudo estava pronto, Deyah pegou seu
marido moribundo e fez sua alma saltar de seu corpo de forma a manter a ligação
entre os dois. E foi aí que o Inferno fez seu grande truque: roubaram a alma do
homem, tendo assim o controle sobre aquele corpo. Foram eles que fizeram com
que vampiros precisassem de sangue. Com a alma presa no Inferno, em agonia, era
a única forma de continuar consciente: roubando, aos poucos, a vida de outros.
Também criaram novas regras a respeito do salto de almas: se alguém bebesse o
sangue de um vampiro, teria a alma saltada, se se envolvesse com magia negra
também, se fosse assombrado por um corpo sem alma, também.
“Tudo que Deyah queria era dar as pessoas a
chance de ter o livre arbítrio até em relação ao seu tempo na terra, mas a
Morte estava certa naquele ponto: dar o controle de sua própria vida e de sua
própria morte a cada pessoa traria problemas demais.
“Ver a deturpação de sua criação daquele
jeito quase matou Deyah de desgosto. Ver seu amado marido se transformar em
monstro quase partiu seu coração por definitivo, mas por fim, outra coisa a
matou...”
- Ele a atacou... E como ela havia se
envolvido com magia negra de todas as formas possíveis, voltou como vampira. –
Não percebi que estava interrompendo porque, na verdade, apenas queria
completar a lógica de meus pensamentos.
Todas olharam para mim.
- Isso mesmo. – Bianka sussurrou,
completando.
- Kat, você...? – Ellie começou.
Automaticamente me coloquei em defensiva.
Nem a deixei completar a frase.
- Sabia disso? É claro que não, meu Deus!
Todas vocês leram meu diário. Sabiam que eu sabia que Deyah havia sido
transformada pelo primeiro vampiro, mas não sabia que ela havia o criado.
Todas congelaram ao ouvir aquilo.
- Você ao menos sabe qual é a missão que
Deyah nos entregou? – Anika perguntou.
- Como você nos envolve em algo assim sem
saber onde estamos nos metendo? – Perguntou uma das gêmeas, mas eu estava
confusa demais para saber qual.
- Kat... E se nós acabarmos monstros ainda
piores? – Kaylee perguntou.
Bianka soltou um pigarro que silenciou
todas.
- Eu não terminei! – Decretou, voltando a
atenção a ela. – Eu tenho a resposta de todas essas perguntas.
Todas se posicionaram, indicando que ela
prosseguisse. Senti Sophie tremer ao meu lado.
- Depois que seu monstro marido foi embora
deixando uma Deyah com sentidos alterados para trás, a ex-bruxa procurou sua
filha, que ouviu em choque tudo que a mãe havia feito. Deyah ensinou tudo que
sabia para Michaella de forma que ela pudesse fazer alguma coisa para mudar o
que Deyah havia feito, mas sua filha não poderia lutar contra o Inferno. Pelo
menos não sozinha.
“Por isso ela pediu que você formasse um
exército, Kat, no qual estivesse envolvido um número sagrado e um número
maldito, com as vampiras mais talentosas que você conseguisse entre ex-bruxas e
garotas realmente fortes que fossem ligadas a você pelo sangue. Sei que você
escolheu transformar 13 vampiras de 7 nacionalidades diferentes que provassem
seu valor com o passar do tempo.
“A missão é lutar contra o Inferno e
retomar o domínio de suas almas, para que vocês sejam o que Deyah pretendia que
fossem. Isso significa imortalidade, mas nada de sangue. Poderes, sem ninguém
para encher o saco.” Ela fez uma careta “Conhecimento, enquanto quiserem viver.
O ‘como’ ainda não pode ser revelado. Nem eu sei. Vocês precisam voltar a procurar
meu clã quando o Exército estiver completo e quando vocês confiarem umas nas
outras suas vidas e suas almas.”
Aquilo acalmou o ânimo de todas. Valia a
pena lutar por aquilo. Valia muito a pena. Suspirei quando Sophie colocou as
mãos sobre as minhas. O que sabíamos sobre as alucinações dela colocava aquilo
em risco.
- Bem, está bem tarde e minha mãe vai
surtar se eu não voltar para casa logo, então vocês têm mais um dia para
escolher o que querem e que segredo pretendem compartilhar. Se quiserem feitiços
poderosos, acendam velas amanhã antes que o sol se ponha e mantenham as luzes
apagadas. Não movam o sofá. Vou deixar esses livros aqui, porque não acho que
minha mãe sentirá falta deles em casa. Kat, acho que você pode ler o grimório
que tanto deseja por enquanto.
Ela se levantou para sair, mas Ellie
segurou seu braço.
- Você não disse que diabos está
acontecendo com Sophie.
- Ah, é verdade. – Ela olhou para Sophie -
Quando a Morte assumiu que Sophie não tem medo dela, ela se livrou do elo que
mantinha com Sophie. Como ela tem o corpo fechado, o Inferno tem pouco controle
sobre ela e sua alma só está lá porque ela quis assim. Logo, quando a Morte
assumiu sua coragem, assumiu também que Sophie é mais poderosa que ela e por
consequência merece ser imortal sem condições.
“Esse conhecimento libertou a alma de
Sophie do Inferno. Tudo que ela tem sentido nos últimos anos, é apenas sua alma
tentando escapar. Mas, enquanto o corpo não aceitar este retorno, a alma não
terá nenhum controle sobre o corpo e por isso anda vagando no Inferno pelos
últimos anos. Sophie é a primeira vampira que será exatamente o que Deyah
criou, livre. Mas não se preocupem, isso não fará dela menos participante do
Exército que o resto de vocês, pelo contrário, logo ela poderá ser a mais importante
das treze”.
20 de janeiro
Diário de Kat
Quando Bianka foi embora o caos se
instalou. Todas encheram Sophie das mais diversas perguntas, mas ela não
aguentou responder mais do que três e voltou para seu quarto para descansar. As
mais jovens então começaram a falar sobre a missão e de forma maravilhada
discutiram o assunto por horas. Só Ellie ficou comigo, deitada no sofá,
relaxada, com as pernas sobre as minhas.
- Tomei uma decisão depois de ouvir toda
essa história. – Ela me disse, depois de um tempo de silêncio. – Eu vou fazer
isso. Vou abrir mão de um segredo em busca de uma resposta.
Eu estava cansada e quase hipnotizada por
Ellie. Não tínhamos um tempo assim desde... Antes de Sophie entrar no grupo.
- E qual a pergunta? – Perguntei.
- Para quê o Inferno me quer. – Ela disse,
fechando os olhos.
Quase gemi por ser poupada dos olhos dela.
- E você acha mesmo que Bianka consegue
responder essa pergunta?
Ela abriu os olhos e ergueu a sobrancelha.
- Você acha que ela está esperando por
perguntas menores que essa?
- Não sei. Bianka é um mistério para mim.
Ellie se sentou, de forma a ficar com o
rosto quase colado no meu.
- Um mistério do tipo que te assusta ou
mistério do tipo que te fascina?
Revirei os olhos.
- Nem um, nem o outro. Um mistério do tipo do
qual eu nunca sei o que esperar, mas que não pretendo ter em meu Exército
porque sei que ela não seria a mesma se deixasse de ser bruxa.
- Certo.
Ellie se reclinou outra vez e fechou os
olhos. Acabamos pegando no sono ali mesmo, uma de cada lado do sofá. Acordei
assim que o sol nasceu, despertada por um sonho onde Deyah me mandava ler seu
grimório de trás para frente, ou ela me denunciaria para o clã romeno.
Saltei do sofá e peguei o grimório entre os
livros espalhados. Fui para o quarto e me sentei sobre a cama com o livro no
colo. Embarquei na leitura e no desvendar daquelas páginas com tanta
intensidade que quando fui distraída pela entrada de Ellie no quarto percebi
que já passara do meio dia.
- Fui acordada por Anika desesperada me
perguntando onde você foi parar. – Ellie disse se sentando na outra cama do
quarto.
- Como se fosse a primeira vez que eu
desapareço do nada. – Disse sem tirar os olhos do livro.
- Não sei, mas acho que depois de ontem
elas estão preocupadas até com a própria sombra.
- Acho que também estou. Com minha própria
sombra eu não sei, mas tenho cada vez mais medo de bruxas.
- Medo, Kat?
Levantei os olhos para ver sua careta.
- Medo sim, Ellie. Imagine as coisas que
elas podem fazer conosco. Tudo que eu sabia sobre quem nós somos foi destruído.
Por bruxas!
- Certo, faz sentido. Mas ainda assim eu
não me importo.
- Eu sei, por isso adoro você.
Ela jogou uma almofada em mim.
- Nossa! Você está tão sentimental que eu
estou começando a detestar Bianka. – Então se deitou e virou de costas para
mim.
Mas não havia nada do seu conhecido gelo em
seu ato. Por um momento, eu tirei os olhos do livro e pensei em como saber a
verdade sobre o vampirismo havia mudado o Exército. Todas estavam extasiadas
por descobrir sobre a missão e ninguém estava pensando com muito cuidado nas
consequências. Lutar contra o Inferno? Quem tinha feito isso além do Céu (que é
muito mais poderoso que todos nós) e sobrevivido para contar história? Eu sei
que algumas de nós não sairão vivas disso tudo.
Voltei à leitura do texto, com Ellie
ressonando próxima a mim. Quando terminei a leitura e Ellie acordou, o sol já
havia se posto. Não me surpreendi quando saí e as velas já estavam acessas por
toda a casa. Nem perguntei onde conseguiram velas. Nos sentamos todas no tapete
à espera de Bianka e enquanto todas conversavam sobre o que iam pedir, eu
chamei Sophie.
- E então? Feliz sobre essa história de ter
a alma?
- Não sei. Faz muito tempo que eu não sinto
nada.
- Deve ser uma sensação estranha. Ter a
alma de volta.
- Ainda não tenho toda a minha alma de
volta. Só fragmentos. É tudo uma confusão aqui dentro. E de qualquer forma ela
não voltará a estar dentro de mim, só perdida em algum lugar comandando meu
corpo. Nada disso faz sentido.
Tentei animá-la, mas era uma situação estranha.
- Em breve não precisará mais de sangue.
Ela sorriu, olhando para as vampiras mais
novas em frente.
- Aposto que Kaylee mataria para estar no meu lugar.
Eu ri do trocadilho e ouvimos as batidas de
Bianka na porta. A bruxa entrou toda feliz na sala. Contou que passara o dia
treinando pois a escola onde estudava não abrira por suspeita de bomba. Isso
também era ruim porque sua mãe não a deixaria sair naquela noite, mas ela
aproveitou o toque de recolher e pulou a janela.
- De qualquer forma, agora estou pronta
para responder às suas perguntas. – Ela se sentou no mesmo lugar onde se
sentara ontem – Quem será a primeira?
Todas olharam para Sophie com certa
adoração. Ela suspirou.
- Eu.
Os olhos escuros de Bianka faiscaram.
- Certo. Você quer primeiro sua resposta ou
revelará primeiro o seu segredo? Vou logo avisando, seu segredo tem que ser
equivalente à dimensão do seu pedido.
Todas esperávamos por isso.
- Primeiro meu pedido. – Sophie respondeu,
soando cansada. – Preciso que você ache minha irmã.
- Fácil. – Bianka respondeu, sorrindo. –
Sabe do que eu preciso?
Sophie concordou com a cabeça. Bianka pegou
a mochila que deixara ao lado do sofá e tirou um punhal dali de dentro.
- Está purificado. Eu juro.
Sophie revirou os olhos. Como se fizesse
diferença. Bianka entregou o punhal para Sophie e procurou uma página em banco
em seu grimório. Quando encontrou, colocou a frente de Sophie e em meio a um
silêncio sepulcral ela cortou o pulso sobre a página. Depois que o sangue
gotejou o suficiente, Sophie usou o próprio vestido para estancar o
sangramento.
- Eu deveria beber o seu sangue para
regenerar isso aqui.
- Shhh... – Bianka fez, concentrada no
sangue sobre a folha de papel. – Não recomendo que você se alimente agora. E em
breve seu corpo estará se regenerando sozinho.
Um sussurro de admiração tomou conta da
sala, mas foi silenciado quando a janela da sala bateu com toda força. Nos
focamos nas páginas sujas de sangue. Bianka sussurrou algumas coisas e o sangue
trocou de forma. Aos poucos assumiu a forma de uma casa.
- Gütt Straße, 163. – Ela disse, depois de
um tempo. Pegou uma vela para secar o sangue sobre a folha. Ele serviria de
lembrança de um feitiço.
- O QUE? – Sophie quase pulou.
- Ela está em Berlim. – Bianka respondeu,
sem olhar para ela - Gütt Straße, 163.
- Quais as chances...? – Sophie estava
maravilhada, chocada ou amedrontada. No escuro, eu não saberia dizer.
- Só há alguns detalhes: Não há como saber
se ela está viva ou não. E eu realmente não iria lá esta noite, ou sozinha. –
Ela terminou de secar o sangue e olhou para Sophie. – Agora, seu segredo.
Sophie suspirou, ainda em choque.
- Eu odiava vampiros porque... Charlottie
matou meu namorado de infância e eu a vi fazendo isso. – Ela conta isso como se
fosse a coisa mais estúpida do mundo, mas nenhuma de nós ri. Faz todo sentido e
é um segredo equiparável ao pedido que fizera.
- Certo. – Disse, Bianka franzindo as
sobrancelhas. – Quem será a próxima?
Ellie olhou para mim, mas as mais novas
tomaram a dianteira. Nenhuma das perguntas delas foi grande. As gêmeas pediram
juntas para saber o que acontecera com seus pais e contaram que haviam
transformado uma garota no caminho para o Japão, só para experimentar, e não
sabiam o que havia acontecido com ela.
Naomi pediu para saber quais eram os planos de sua mãe para ela e Bianka
respondeu que tia Juliette não planejava nada além de que ela retomasse o clã
que acabara com a minha morte. Frustrada, Naomi contou em quem dera seu
primeiro beijo o que definitivamente é constrangedor demais para ser registrado
aqui. Kaylee e Anika optaram por não pedir nada, o que me surpreendeu, pelo
menos em relação a Anika.
Ellie resolveu que iria antes de mim.
- Quero saber o que o Inferno quer comigo.
Bianka ergueu a sobrancelha.
- Isso vai exigir um segredo cabeludo.
Ellie bufou.
- Eu tenho vários.
- Certo. Talvez eu precise me comunicar com
alguém. Alguém importante. Pierre?
O nome atingiu cada uma de uma forma
diferente. Eu olhei para Sophie lembrando agora que foi o nome de Pierre que
ela sussurrara quando se deu conta de que estava se comunicando com sua alma
pela primeira vez. Anika, Naomi e as gêmeas se aproximaram do centro, querendo
acompanhar cada parte. Kaylee olhou para Ellie, que por sua vez não se abalou.
- O que for necessário. Mas boa sorte, com
aquele imbecil.
- E eu achando que não encontraria mãe mais
fria que a minha. – Bianka disse, pegando um diário e suspirando. – Certo.
Preciso de seu sangue.
- Só se tiver o seu de volta.
- Se você se negar a me ajudar eu não
poderei ajudar você, Ellie.
- A descendente de Deyah precisa de ajuda
para se comunicar com o Inferno??
- Sem usar magia negra, sim.
O duelo de palavras geladas fazia nossas
cabeças virarem como se estivéssemos assistindo um jogo. Ellie e Bianka se
encararam por um momento, até que Ellie esticou o pulso e suspirou.
- À vontade.
O corte de Bianka foi limpo e preciso. O
sangue de Ellie respingou no tapete da sala, mas logo estava no ar, girando com
cuidado sobre a chama de uma velha. A chama de expandiu e iluminou toda sala,
exceto Bianka, que continuava protegida sob a luz da lua. Ela sorriu quando
conseguiu o que queria.
- Para dizer a resposta, preciso contar
alguns de seus segredos, então serei justa e não pedirei que me conte mais
nada. Certo?
Ellie concordou sem hesitar.
- Quando você estava grávida, cada
sangramento a carregava para o Inferno. Seu corpo não resistiria àquele vai e
vem de alma, mas aquilo só tornou sua alma ainda mais poderosa. No final, ela
conseguia ver além da tortura, além da dor. Você sabe de algo, Ellie, algo que
nem sabe que é importante, mas que tem guardado todos esses anos. Além disso,
sua madrinha lhe disse uma coisa que você guardou dentro de você e depois
testou, para descobrir que ela estava certa. Para ser sincera, não tenho
certeza de porque você ainda não foi destruída. ” Sua voz mudou de tom, se
tornando mais grave “Você conhece a saída do Inferno, Eleanor Pleurer. Você é a
chave. E por isso eles a temem ainda mais que temeram Deyah ou que temem
Sophie.”
Sorri por dentro. Aquilo não respondia nada
para nenhuma de nós, mas respondia tudo para Ellie. Me perguntei porque Bianka,
que dizia que estava para tirar alguns esqueletos do armário, resolvera deixar
os segredos de Ellie sob uma densa névoa. Me perguntei o que Ellie escondia.
30 de janeiro
Diário de Kat
Pedi para Bianka que me desse mais tempo
para escolher uma pergunta e ela me deu mais 24 horas. Na manhã seguinte fomos
acordadas por Sophie, que implorou que fossemos atrás de Charlottie antes que a
localização mudasse. Mas antes que conseguíssemos sair um novo bombardeio
começou. Passamos o resto do dia presas em casa, sem melhora nenhuma nos
bombardeios. Quando terminou, mandamos Anika e Kaylee pela cidade, para fazer
um reconhecimento geral das condições. Resolvemos que iríamos embora de Berlim
logo depois do encontro com Charlottie.
Quando Anika e Kaylee chegaram, tinham uma
novidade preocupante:
- Bianka morreu. – Anika disse, cansada –
Atingiram a escola dela essa manhã e todas as crianças morreram. Tanto talento,
destruído por uma guerra idiota.
- Eu não ouvi se ela tinha irmãs. – Eu
disse, como se a continuação do clã de Deyah fosse minha única preocupação.
- Tinha. – Anika respondeu. – Três. E as
treinava, sem que sua mãe soubesse, é claro.
- Precisamos dar continuidade a história de
Bianka e deixar esses grimórios com suas irmãs.
- É claro. – Kaylee respondeu, pesarosa de
certa forma. Aquilo me daria nos nervos, se tivesse algum.
Passamos o dia seguinte organizando tudo
que tínhamos, para ver o que deixaríamos para trás e fossemos buscar
Charlottie. Sophie estava mais ansiosa do que poderia suportar e ainda não
entendo porque não fui alcançar a irmã sem nós. Quando,
finalmente, terminamos tudo e fomos atrás dela, fomos surpreendidas pela
improbabilidade de encontrar outra vampira talentosa na mesma família, mesmo
sendo criada em condições tão diferentes.
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