“Nunca dome seus demônios, mas sempre
os mantenha na coleira”
Hozier (Arsonist’s Lullabye)
As Crônicas de Kat:
Entre todos os
demônios do Inferno
Nova Orleans, Estados Unidos
3 de outubro de 2015
Tatiana
Pierre
olha no fundo dos meus olhos por quase um minuto inteiro, como se procurasse
uma alma para roubar para si. Ficamos em um jogo de encarar silencioso. Me
pergunto como minha bisavó Katerina se sentia dormindo todos os dias ao lado de
alguém que dizia que a amava e depois de fazer amor, a olhava desse jeito. Mas
talvez ele só olhe assim para mim porque
eu tenho os olhos dela.
-
Vou sentir falta disso quando você recuperar sua alma. - Ele solta, com algo
que poderia ser ternura no olhar.
Respondo
com uma careta, porque não há o que responder. Isso, o que quer que isso seja, é apenas uma distração para os
entediantes anos de espera pelo começo da guerra. Ela começou há 6 dias, mas
estamos esperando por algumas informações antes de sair de Nova Orleans atrás
da família de Deyah, que Sophie localizou na Romênia. Eu achei que isso merecesse uma despedida e fiquei
para trás para vigiar Pierre enquanto
as meninas estão em uma visita ao Apreciadores.
Estamos
deitados lado a lado, mas minha cabeça bate em seu ombro e eu preciso olhar
para cima para olhar em seus olhos. Resolvo me virar na cama e me apoiar nos
cotovelos para olhá-lo frente a frente. Deixo o cabelo cair sobre o rosto
quando me viro e pergunto algo que venho pensando desde que Kat contou sobre
Deyah ter saído do Inferno e eu vi Pierre estremecer:
-
Por que você matou Deyah? - Solto, sem rodeios.
Ele
resmunga antes de soltar:
-
Você também a mataria se passasse muito tempo com ela.
- É
sério, Pierre.
Ele
fecha os olhos azuis.
-
Eu era apenas uma criança e não sabia como lidar com meus problemas sem cometer
um assassinato.
- E por que ela se tornou um problema?
Ele volta a abrir os olhos e parece o inferno lá dentro.
-
Ela proibiu Kat de ter homens em seu Exército, mesmo que eu me mostrasse fiel e
disposto a ajudar. Ela sugeriu que eu fosse uma barganha, pois era inútil para
os propósitos dela, a guerra contra o Inferno. Só serviria como moeda de troca.
E Kat, encantada pela ideia de grandiosidade, faria qualquer coisa que ela
pedisse. Ela até tentou uma aliança com a Morte!
-
Então você decidiu matar Deyah. - Insinuo antes que a raiva o faça mudar de
assunto.
-
Na minha mente demoníaca de 12 anos fazia todo o sentido. Mas, naturalmente,
Deyah acabou virando uma mártir dos seus próprios ideais. Kat ficou desconfiada.
Eu fugi por meu orgulho. Ao ser reencontrado, fui feito prisioneiro e aqui
estou. Servindo de barganha.
Tento
segurar a risada, mas isso se mostra impossível.
-
Você se acha tão importante para o Inferno. Você não é uma barganha, Pierre.
Ele
se ofende, mas tenta me fazer entender sua lógica:
-
Se eu não estou aqui como um trunfo sobre o Inferno, por que estou aqui?
Dou
de ombros, já tendo pensado nisso.
-
Você é filho de Ellie e foi criado por Kat. Elas têm um senso de posse sobre
você.
-
Ambas me desprezam. Ellie agora mais que nunca.
-
Elas não precisam te amar para te considerar posse delas. Elas são responsáveis
pelos seus primeiros 16 anos de vida. Te ensinaram a matar, a destruir, fizeram
de você o portador de pragas. Elas podem te considerar um erro colossal, um
traidor maldito, o ser mais desprezível a habitar no planeta, mas você pertence
a elas e elas não abrem mão do que têm.
Pierre
se cala. Isso é algo raro a acontecer, mas percebo que minha lógica feriu seu
orgulho. A tal necessidade de grandeza foi algo que Pierre absorveu de Kat,
mesmo sem perceber. Ele deixou o Exército porque se sentia pequeno e queria ser
grande para o Inferno. No fim, toda grandeza que ele conseguiu foi criar uma
linhagem sanguínea que resultou em mim. Na guerra contra o Inferno, toda
grandeza que ele vai poder conseguir se resume a mim. Imagino o tamanho do soco
no estômago que isso deve ser.
10 de outubro
Charlottie
-
Você vai quebrar essa mala, Sophie. - Digo, mudando de posição e arrumando o
livro no colo.
Ela
bufa e usa o cotovelo para apertar a mala e fechar o zíper.
- Da
última vez que eu fui embora de Nova Orleans, eu deixei tudo para trás. - Ela
diz, meio ofegante - Isso não vai acontecer dessa vez.
Uma
brisa tranquila entra pela janela onde estou sentada de lado. Os humores de
Sophie costumam afetar o clima.
-
Soph, nós somos peregrinas, quase ciganas. - Digo, entediada - Não vale a pena
manter posses físicas por perto.
-
Vale, se forem itens mágicos que ajudaram na guerra.
Fecho
o livro e me sento de frente para ela.
-
Como o quê?
Ela
para de tentar fechar a mala e sorri.
-
Agora você se interessa, sua peste.
-
Claro. Não sei se você se lembra, mas quando isso terminar, eu voltarei a ser
uma bruxa. Preciso do que poder manter como informação.
Ela
faz um sinal para que eu me aproxime enquanto volta a abrir a mala. Deixo a
janela e sobre a cama dela encontro diversos cadernos de couro, alguns cristais
e diversos vidrinhos com líquidos.
- A
maioria dos cadernos tem ervas prensadas - Sophie explica - Algumas com poderes
curativos, outras com poderes protetores. Mas alguns são grimórios. Eu tenho
passado muito tempo tentando lembrar de todo feitiço que já ouvi na vida. Dos
que me ensinaram aos que eu aprendi por ser enxerida. Ontem cheguei a me
lembrar do que me protegeu de Pierre na primeira vez que o vi.
- A
invocação de proteção? Eu sempre quis saber quem te ensinou isso.
-
Magnólia. Sem querer, mas ela apontou os dedos para mim quando Jonah contou a
ela que eu havia posto fogo na casa. Não sabia que invocar proteção funcionava
até ver o olhar de pânico de Pierre. Mas eu não conseguia me lembrar de como
deveria pedir. Por anos, eu não consegui evocar essa proteção, até que eu me
dei conta: Preciso de uma ligação com a alma de uma bruxa sacrificada por uma
causa.
Levo
um tempo para entender o que ela quer dizer. Nós perdemos a proteção das bruxas
de Verdant quando nos tornamos vampiras e nenhuma bruxa foi sacrificada pela
nossa proteção... Mas uma bruxa foi sacrificada pela nossa causa.
-
Deyah? - Pergunto, fascinada.
Sophie
sorri.
-
Seria uma coisa se ela tivesse continuado no Inferno. Ela morreu como vampira e
sua alma estava prisioneira. Mas ela saiu, sua alma está livre e sem um link
com o corpo, está pronta para ser drenada e roubada. Ela era uma bruxa e foi
separada do seu corpo mortal por um ser Infernal, pela causa do Exército. Se eu
evocar sua proteção, ela precisa atender.
-
Uau. - É tudo que digo.
Ela
continua sorrindo, o rosto radiante por compartilhar sua sabedoria.
-
Nós não vamos nos livrar de Deyah, então podemos pelo menos usá-la a nosso
favor. - Dá de ombros - Meu próximo passo é descobrir como usar Pierre.
- Perguntou algo a Tatiana?
- Sim, mas ela disse que nem saberia dizer se tivesse
percebido alguma coisa que pudesse ser usada nele. Ele está um caco. É um vulto
do garoto que foi quando eu o conheci.
Me sento na minha cama, que fica ao lado da dela e cruzo as
pernas.
- Como ele era quando criança?
Sophie também se senta.
- Ele era... Estranho. Ele tinha aquela faísca violenta,
agressiva, aquele impulso que o fazia correr atrás de pássaros e quebrar seus
pescoços. Ele sorria cada vez que via uma morte particularmente violenta.
Adorava se fingir de inocente e perdido e destruir a vida de alguém aos poucos.
Causar caos era sua maior especialidade. Das poucas vezes que o vi com outras
crianças, eram sempre meninas: garotinhas que ou acabavam mortas por nós ou
acabavam correndo para os braços das mães em lágrimas. Ele era feliz e se
divertia muito com cada uma dessas situações. O problema era que nós não
tínhamos o ritmo dele. O que para ele era divertido, para nós era parte do
processo. Nós brincamos com a comida para escapar do tédio, mas só sentimos prazer
em consumir o sangue. Os assassinatos que o faziam vibrar, eram só parte de um
ciclo costumeiro para nós. Aos poucos ele foi absorvendo nossa indiferença,
nosso tédio eterno. Ele aprendeu a repudiar o que sentia e tentava não sentir,
mas era complicado demais. O fogo do Inferno ainda queimava dentro dele e
aparecia às vezes, como apareceu quando ele notou que Kat estava o testando e
nos deixou. Pierre nasceu pelo fogo e foi moldado com gelo. Autodestruição sempre
foi seu destino.
- Então como você pensa que ele deve ser útil para nós? -
Pergunto, absorvendo as palavras de Sophie.
- Não sei. Mas ele ainda é uma criatura infernal e imortal
que serve de portal daqui para o Inferno. Ele deve servir nem que seja de
escudo humano.
Concordo com a cabeça e prometo a mim mesma que também
pensarei no assunto. Eu tenho tempo mais o que suficiente para pensar em
estratégias para a guerra. Me sinto inútil enquanto estou parada, sem matar,
sem poder me colocar em perigo. É enlouquecedor.
- Ele tem sorte de ser um imortal que ao menos cresceu.
Quando penso em ficar presa nesse corpo de 12 anos pelo resto da vida eu quase
enlouqueço. - Exteriorizo o que estava pensando.
Sophie me observa com a sobrancelha erguida.
- É tão ruim assim?
- Ser parada por cada empresa áerea porque eu sou nova demais
para viajar sozinha? Me faz até sentir falta do século XIX e de viajar de
navio.
- Eu nunca vi as coisas desse jeito.
- Você tinha 18 anos quando foi transformada, Sophie. Já era
adulta, mas não tão velha. Não cresceria mais que isso e jamais seria tão
bonita quanto naquele momento. Eu morri aos 12 anos, graças a um sacrifício mal
feito. Ser imortal é bom, mas eu sei que até Kat tem problemas com ficar presa
para sempre no corpo de uma criança. Queria que toda essa guerra me permitisse
crescer.
Sophie
solta um sorriso fraco.
- Sinto
muito, Lottie. O corpo vê o envelhecimento como decadência, então você fica
presa no corpo que tem para sempre.
- Por
um erro bobo de Deyah. - Ellie diz da porta aberta do quarto, fazendo com que
nós duas nos sobressaltemos. Ellie. Está. Sorrindo. Nunca vi nada mais
assustador. - Ou falta de conhecimento mesmo. Se ela tivesse passado algum
tempo observando bebês híbridos de demônio e humano, que eram abundantes na
época dela, ela poderia entender o funcionamento do corpo melhor. Deixando o
mínimo de controle para o corpo, talvez ele quisesse seguir seu ritmo normal
até a maturidade, quando enfim, o corpo considera envelhecer como decadência.
Sophie bufa, contrariada por Ellie ter surgido
do nada e ainda corrigindo o que ela acabou de dizer. Seu rosto se afogueia
quando ela vira para a colega vampira com alma.
-
Você realmente virou a portadora da resposta de todos os mistérios do universo
não é?
-
Não é bem assim, Soph...
-
Por que eu não consigo acreditar que essas informações só surgiram quando sua
alma voltou? - Sophie interrompe.
-
Não foram as informações...
-
Você sabia mais do que todas nós, sabia mais do que Kat sobre a guerra em que
ela estava se metendo e matou a única pessoa que explicou para nós o que estava
acontecendo. Então me perdoe se eu não confio plenamente em você.
-
Confiança é a única coisa que nos mantém ligadas. A única coisa que nos permitiria
vencer.
-
Então por que você não confia em nós? Por que manteve para si mesma um segredo
que deveria pertencer a todas nós?
- Eu
disse a Kat que contaria assim que o segredo fosse necessário. Eu corro risco
de vida. Se descobrirem que a lenda do Réquiem é real, milhares de interessados
no mundo inteiro estarão atrás de mim e se um deles colocarem as mãos em mim,
acabou.
-
De que forma a informação poderia vazar? Somos nós, Ellie. Não é como se
fossemos contar para o mundo inteiro.
-
Mas só uma pessoa precisa saber para desencadear a coisa toda. Agora que a
guerra começou ninguém contará a ninguém porque a vida de vocês depende da minha.
Se eu morrer, todas morrem no segundo seguinte. Menos você, é claro. Você está
livre.
-
Sim! E ainda estou aqui. Lealdade me mantém presa. E eu exijo o mínimo de volta
de todas vocês. A mesma lealdade.
-
Eu sou leal.
-
Não, Ellie, você não é. Você sempre foi a mais fria de nós, a mais distante. A
arma indestrutível de Kat. Você foi a primeira, não teve que conquistar um
lugar no Exército. Nunca precisou ser leal. Até onde eu sei poderia ir embora
agora e nos deixar para a morte. Sua alma está livre e se for presa outra vez,
você sabe como sair. Era o que você pretendia fazer em Cianne mesmo.
Eu
estou balançado a cabeça de um lado para o outro acompanhando enquanto Sophie
ataca Ellie, e no momento em que Sophie diz isso, estou olhando para ela.
Quando viro para Ellie para esperar pela resposta, a vejo atravessar a sala e
atingir Sophie com um tapa no meio da bochecha. Sophie fica vermelha a partir
da bochecha e seus olhos são tomados por uma fúria irresistível. Mas o olhar de
Ellie, que continha a mesma fúria, é tomado por um pesar tão intenso quanto:
-
Ah, Sophie. Me desculpe. Eu não sei o que me deu.
-
Ah, não. Pelo amor de Deus, não comece a chorar. - Sophie rosna, esfregando o
rosto. - Saia daqui antes que eu perca a cabeça.
Ela
se vira para sair correndo, provavelmente para chorar em algum lugar reservado
- Kat já a pegou fazendo isso 3 vezes.
- É
como se você fosse uma pessoa completamente diferente. - Eu digo, fazendo com
que ela pare no meio do caminho e com que Sophie se vire para mim. Olho para Ellie,
que não se vira para mim, mas continua parada. - A Ellie que eu conheci e que
me assombrou, permitiria qualquer coisa ao invés de se tornar um caso de pena.
Ela arrancaria a cabeça de Sophie antes de deixar que ela lhe desse ordens. Eu
entenderia se aquela Ellie tivesse um ataque de fúria ao receber sua alma de
volta, não uma crise de choro. Não adianta nada que o Inferno libere sua alma,
se graças a maldição dita por Abadom, sua alma te faz um joguinho deles.
Quando
eu termino, ela sai. Sem dizer mais nada.
17 de outubro
Juliana
-
Nós deixaremos a cidade um pouco antes do Halloween e eu pretendo contar a elas
sobre você amanhã. - Explico para Alex, balançando os pés no chão de areia.
-
Você precisa? - Ela pergunta.
Encaro
o sol se pondo em tons de laranja atrás do prédio. O café onde Alex trabalha
está com o movimento baixo e sempre que isso acontecesse podemos ficar
conversando nos fundos da loja.
-
Contar sobre você ou sair de Nova Orleans?
-
Sair de Nova Orleans.
-
Sim. Estamos no meio de uma missão. Você não tem medo do que 12 vampiras podem
fazer quando descobrirem que você existe?
Alexandra
dá de ombros. Ela fica mais parecida com minha mãe quando está se movimentando.
-
Louise sabe e não fez nada. Algumas de suas outras irmãs também. Se eu sei
qualquer coisa sobre lealdade vampírica, eu sei que elas não mexerão comigo
porque eu sou sangue do seu sangue.
- Você
soa fascinada. Estamos falando de monstros, Alex. Predadoras, que não
hesitariam em matar você, nem por um instante.
- É
tarde mais para você começar a me assustar, Juliana. Depois de todas as
histórias que você contou, de todas as coisas incríveis que você fez nesses 17
anos... Estou mais encantada do que assustada.
-
Não é tudo grandioso e incrível, Alexandra. É perigoso e terrível durante boa
parte do tempo.
-
Por que você está tentando me proteger de si mesma?
-
Chame daquela lealdade vampírica que você citou.
-
Então eu posso desistir das chances de você me transformar em vampira?
-
Pode. Completamente.
Ficamos
em silêncio. Eu estabeleci essa relação estranha com minha irmã, com o passar
dos meses depois que Louise me trouxe ao restaurante. Não planejava contar a
história louca sobre ser vampira e ter mudado, mas no momento em que disse meu
nome, o rosto de Alexandra ficou chocado. Ela diz ter sido criada sob minha
sombra, sempre precisando fazer o que eu faria. Adele Mayfair, fria e exigente
quando eu era viva, desenvolveu uma espécie de adoração por mim quando me
perdeu. E Alexandra, que nasceu como um consolo para quem ela tinha perdido,
quase entrou em colapso quando me apresentei como Juliana.
-
Fale mais sobre o demônio que anda como vocês. - Ela diz depois de um tempo,
soando infantil.
-
Ele é um hibrido de demônio e humano.
-
Um demônio sexual.
-
Sim.
- E
ele é sexy?
A encaro.
-
Ah, você é mesmo uma garota humana de 16 anos.
-
Isso não responde minha pergunta.
- É
claro que ele é sexy. Ele nasceu para ser sexualmente atraente.
-
Como ele se parece?
-
Aparência não é a parte mais importante de alguém, Alexandra.
Ela
ri.
-
Ele é metade demônio. Eu sei o que esperar da personalidade dele. Eu quero saber da aparência.
Bufo.
Não sei como descrever Pierre. Nós éramos estranhamente próximos quando eu era
uma humana paga para ser babá dele. Eu não tinha medo ao ver como ele era fraco
e as suas respostas, agressivas demais para um prisioneiro, me faziam rir.
Depois que eu entrei para o Exército e começamos a procurar pela 13ª vampira,
passei pouco tempo com ele, mas sempre que eu e Louise éramos as responsáveis
por tomar conta dele, acabávamos nas melhores festas, conhecendo as pessoas
mais loucas e fazendo as coisas mais inacreditavelmente perigosas. Pierre sabe
como manter-nos perto do limite da sanidade. Ele é metade da diversão do
Exército.
-
Imagine que um garoto qualquer que você acha particularmente bonito passou 30
anos em uma guerra. Pierre. Ele é basicamente a versão infernal do que seria um
galã de cabelos escuros e olhos azuis.
Alex
suspira e eu reviro os olhos.
-
Não me surpreende que ele esteja em um caso tórrido com uma das vampiras do
Exército. - Ela diz, encantada.
-
Eu te disse que ela é bisneta dele, certo?
-
Vocês são vampiras! Esse tipo de regra é dobrável.
-
Você aceita isso tão facilmente. E Tatiana não está mais tendo - Faço aspas no
ar - “um caso tórrido” com Pierre. De acordo com ela, eles dormiram juntos pela
última vez há alguns dias.
- É
a sua chance!
- O
que?
-
Qual é, Juliana? Eu vi a forma como você fala de Pierre. Você tem no mínimo uma
queda por ele.
Dou
um tapa na minha testa.
-
Alex, você sabe que eu não posso sentir né? Você está perdendo todo o princípio
do vampirismo.
Ela
se cala.
-
Mas... A forma como você fala dele!
-
Pierre era alguém importante quando eu morri e está ligado à minha morte de
alguma forma, então podemos dizer que eu aprecio a companhia dele. Mas não
desse jeito, Alex.
Alexandra
revira os olhos.
-
Talvez eu não queira ser vampira tanto assim. Uma vida imortal sem me
apaixonar?
-
Ah, Deus. Você é filha da nossa mãe.
Ela
ri.
-
Como você pode falar o nome de Deus sem entrar em combustão?
-
Quantas vezes eu vou ter que te explicar que isso não faz diferença alguma? Não
sou puramente uma criatura infernal, nem puramente uma criação divina. Ando em
meio uma linha fina entre os dois.
- É
divertido?
Dou
de ombros.
-
Pode ser entediante às vezes, mas é bastante intenso em outras, então é tudo
contrabalançado.
Alex
chuta uma pedrinha com o canto do pé. Já está ficando escuro e em breve o café
se encherá outra vez. Eu provavelmente deveria ir para casa de qualquer forma,
não é seguro sair tanto assim. Me levanto, mas antes que comece a me despedir,
Alex volta a falar:
-
Você vai sentir minha falta?
-
Talvez sim, talvez não. Depende de quão ocupada eu esteja na Romênia.
-
Precisava ser tão sincera?
-
Foi você quem perguntou.
21 de outubro
Miranda
A
faca passa de raspão pelo braço dele antes de se prender à parede e por um
instante eu me distraio com o fio de sangue que goteja no chão e não digo nada.
A ferida se fecha logo e eu faço uma careta.
-
Se você estiver com desejos suicidas, existem outras vampiras no Exército que
querem te matar mais do que eu quero. - Reclamo enquanto ando até onde a faca
está, a apenas milímetros de onde eu havia mirado.
-
Quem brinca com facas dentro de casa? - Pierre grita, limpando o sangue do
antebraço com a língua.
-
Valentina e eu estamos sempre brincando com facas e ninguém cuja opinião seja
relevante parece se importar.
Arranco
a faca da parede e me viro de volta para onde ele está. Pierre olha para os
dois lados do corredor e ergue a sobrancelha.
- E
onde está sua outra metade?
-
Não é da sua conta.
Ele
cruza os braços e encosta na soleira da porta de onde saiu.
-
Eu sei. Só estou surpreso por você existir sem Valentina.
Reviro
os olhos e atiro a faca, mirando alguns centímetros ao lado da barriga dele. Sem
nada para desviar o percurso a faca atinge o lugar onde eu queria na soleira da
porta com tudo, deixando um rasgo na blusa preta de Pierre no caminho.
-
Pensei que você tinha dito que não me queria morto!
-
Eu disse que tem gente que te quer morto mais do que eu quero. Além disso,
fazer você sangrar é divertido.
Eu
jurava que a destruição da sua camiseta fosse fazer Pierre me deixar em paz,
mas naturalmente estava sonhando alto demais. Quando ele não sai, eu sou
forçada a ir até ele para pegar a faca. Ele me vê fazendo isso e quando paro ao
seu lado, pega a faca antes de mim, a segurando sobre minha cabeça.
-
Você e sua irmã são duas criaturas esquisitinhas. Essa obsessão por facas...
Não é comum.
-
Todos esses anos convivendo com vampiras e você ainda não entende nossas
condições? Que perceptivo.
-
Eu entendo a obsessão por coisas ligadas à forma como você morreu, mas apesar
de terem sido obrigadas a brincar com facas em vida, a morte de vocês não
esteve ligada a isso.
Eu
começo a rir.
-
Você acreditou na história de Anika sobre nossa morte? Eu jurava que você fosse
mais esperto que isso, Pierre.
Ele
começa a brincar com a lâmina, passando-a pela mão delicadamente, sem
cortar-se.
-
Eu sei que ela exagerou nos detalhes, mas deve ter sido algo do tipo.
- Cada
vampira do Exército percebeu o erro na possibilidade de Anika ter nos matado com
uma mordida. E você não.
Pierre
corta a própria mão. Não sei se é de propósito ou sem querer, já que a lâmina
está muito afiada, mas ele deixa a faca parada onde está, uma bolha de sangue
se formando. Ele para de encarar a própria mão e olha nos meus olhos.
-
Eu deveria prestar mais atenção a você, Miranda. Você e Valentina são as únicas
vampiras do Exército que Kat não escolheu a dedo. Eu sei que você é perceptiva
e que quer ser tão grandiosa quanto essa empreitada para o Inferno te fará. O
que mais eu descobriria se passasse mais tempo observando seus passos?
As
gotas do sangue dele formam uma pequena poça aos meus pés. Perco a paciência e
arranco a faca de suas mãos, abrindo o corte.
-
Se Anika tivesse sugado nosso sangue de uma ferida não existente, Valentina e
eu teríamos cicatrizes de mordida. - Digo, saindo do corredor para fora de
casa.
25 de outubro
Anika
Quando
entramos as 13 no salão da casa onde acontece a reunião dos Apreciadores, eu
tenho flashback vívido do momento em entramos no salão da Mansão Hass, para
onde levamos os membros de todos os grupos de estudos sobre vampiros, há quase
18 anos. Assim como naquele dia, estamos todas de vestidos de época, costurados
pela própria Ellie e com nossas pedras preciosas adornando os pescoços. Assim
como naquele dia, isso tudo é um show, uma demonstração das bizarras criaturas
que somos. Nos apresentamos como antiguidades: atemporais, exóticas, belas e únicas.
Nunca
poderíamos permitir que todos os grupos de estudo de vampiros soubessem que
estávamos ali e nos focamos em apenas um, o que Kat achou menos agressivo, que
ainda não existia em 1997: Os Apreciadores da Arte do Sangue. A líder desse
grupo, uma garota de 24 anos de pele de ébano chamada Amelie, implorou para que
nós tivéssemos uma festa assim, uma reunião gloriosa, que fizesse com que nos
despedíssemos de Nova Orleans com toda pompa outra vez - mas sem a parte do
massacre com mais de 500 mortos. Amelie prometeu que nos divertiríamos tanto
quanto naquela Festa do Solstício, mas essa reunião é completamente diferente
daquela. Para começar, somos nós que estamos no território deles, ao invés deles
no nosso.
Nos
espalhamos rapidamente e cada uma se envolve em conversas com um grupo. Eu me
canso de todos os grupos rapidamente e me afasto para pegar a taça de sangue
que está sendo servida por garçonetes que não sei o quanto sabem sobre o que
está acontecendo. Procuro uma forma de não ser abordada por um tempo e acabo
encontrando Ellie observando tudo de um canto.
-
Você está tremendo. - Digo para ela, ao me aproximar com duas taças de sangue
na mão. Noto a direção que seu nariz toma e levando o dedo. - Não faça careta!
Ela
suspira e pega a taça de mim.
- Quanto deles você acha que conhecem a lenda? - Ela
pergunta, aproximando a taça do nariz antes de tomar uma golada corajosa.
Nem imagino o gosto que sangue humano tem para quem não
precisa dele para sobreviver.
-
Eu sei lá. Mas mesmo que todos conheçam, ninguém tem razões para acreditar que
você é ela. Ou que você é diferente de nós. Apesar de você ser muito pior em
fingir do que Sophie é, ninguém deduziria algo que não faz ideia de que existe.
Quando
digo isso, sinto o olhar de Sophie em mim e olho para onde ela está. Sei que
ela está prestando atenção na conversa. Sophie tem se mantido na defensiva com
Ellie por todos os dias desde que a alma dela voltou. Ela acredita que tem
todas as razões do mundo para desconfiar das verdadeiras intenções da segunda
vampira com alma do grupo. Ellie suspira.
-
Você tem razão.
- E
você só tem sentimentos. - Rebato, ainda olhando para Sophie, que sorri.
Volto
a olhar para Ellie, que revira os olhos.
- E
eu achando que você era leal a mim.
- E
sou. Se chama firmeza. A antiga Ellie ia preferir que eu fosse agressiva do que
ser gentil.
- A
antiga Ellie? Annie, eu ainda sou eu.
Tomo
a taça de sangue da mão dela e finalizo, pensando no que poderia dizer sem
fazê-la chorar e estragar o disfarce. Não é que Ellie esteja sensível, é que
quando seus sentimentos vêm, eles vêm com muita força e de forma destruidora. Eu sei que se tomada por uma fúria
arrebatadora, Ellie com alma mataria tantas pessoas quando Ellie sem alma
mataria. A questão é que ultimamente ela só sido tomada por tristezas arrebatadoras.
-
Eu sei, mas é difícil saber disso com você chorando pelos cantos.
-
Eu não consigo controlar, Anika. Se eu me lembro de uma coisa ruim, eu me
lembro de todas. O peso de tudo que eu fiz em 150 anos caí em cima de mim uma
vez e eu sou uma pessoa só, não posso suportar tudo.
-
Você precisa suportar, Ellie. E você suportará, eu sei que consegue. Só não
espere que um bando de crianças sem alma ou sentimentos entendam porque você
cai no choro hora sim, hora não.
Antes
que ela possa responder, um rapaz do grupo se aproxima de nós e puxa uma
conversa chata sobre a Europa Oriental. Eles sabem para onde estamos indo,
apesar de não fazerem ideia do motivo. Acho que a crença geral é de que esses
são os dois lugares mais comuns para vampiros no mundo: Nova Orleans e a
Romênia. E Nova Orleans realmente está tomada de vampiros.
Uma
coisa que nos surpreendeu quando voltamos à cidade foi o fato de que ninguém
parecia se lembrar ou se preocupar com o que aconteceu no Carnaval de 1998. É
bem verdade que Nova Orleans tem seu número significativo de serial killers e de mortes bizarras, mas
que tipo de massacre com mais de 500 mortos passa quase despercebido? Foi
Louise quem apresentou uma resposta: Um massacre onde a maioria dos mortos eram
bruxas. A cidade costumava ser dominada por bruxas e a alta sociedade da qual fizemos
partes era constituída quase que exclusivamente delas. A maioria das pessoas
que morreu naquela noite foram bruxas, bêbadas demais para se defenderem.
Quando amanheceu, as bruxas sobreviventes dos clãs, poucas e em sua maioria
idosas, demonstraram grande interesse em deixar que as mortes só tivessem a
repercussão necessária. Foi essa devastação de clãs poderosos que deixou NOLA
da forma como está: Cheia de vampiros, utilizando-se de humanos para se
alimentar e da proteção da morte das bruxas para não ser incomodado. É uma
cidade incrível e misteriosa - talvez eu volte para cá quando tudo terminar.
-
Você viveu na Hungria por um tempo, certo, senhorita Blegleiter? - Diz o
garoto... Qual o nome dele?... Ah, sim, Holt. Ou algo do tipo.
Volto
a tentar participar da conversa, nada satisfeita. Ela se estende por alguns
minutos, Ellie falando mais que eu, até que uma confusão na entrada finalmente
me livra da insistência do rapaz. Holt se afasta, tentando enxergar com mais
clareza o que acontece. Começa com um grito de “O CONVIDADO DE HONRA CHEGOU” e
continua com todo mundo olhando naquela direção. O salão se cala, mas eu
percebo dois armários que estavam fazendo a segurança se aproximarem do lugar
onde entramos, com fúria nos outros. De onde estou, sou muito baixa para
enxergar quem chegou fazendo escarcéu, mas quando noto Ellie empalidecer,
percebo que deveria ter reconhecido a voz.
- Vocês
não sabem quem eu sou, mas elas sabem! Elas não têm poder suficiente para me
deixar entrar? - Pierre rosna, alto demais. Ele está bêbado, algo que eu vi
acontecer mais frequentemente do que gostaria.
Aos
poucos, cada vampira do Exército localiza as outras no meio da multidão. Ellie
e Sophie trocam um olhar cúmplice que pensei que não fossem trocar outra vez e
se dirigem juntas até hoje Pierre está. Kat e as outras meninas vêm até onde eu
estou porque é o lugar com mais espaço. Ainda não posso ver o lugar onde Pierre
está discutindo com os guardas, mas o vejo dizer o nome de Ellie, seguido de um
grito gutural, enquanto algo que entendo como ele sendo arrastando para o lado
de fora acontece e o cheiro de carne queimada toma conta do salão. Quando a
porta de entrada se fecha, todos os presentes começam a conversar, como se
sequer estivéssemos lá.
-
Bem, isso declara o fim de nossa noite. - Kat diz, depositando a taça que
carregava na bandeja de uma garçonete que passa.
-
Que diabos Pierre quis com essa manifestação absurda? - Kaylee diz, revoltada.
-
Ele está bêbado. - Tatiana justifica. - Lembrou de onde nós estávamos e
resolveu fazer uma ceninha.
- E
que diferença faz? - Miranda completa - Nós estamos indo embora. Ele apenas deu
ao grupo alguma coisa para pensar.
-
Vamos não falar disso até deixarmos o lugar, certo? - Kat diz, com um tom de
ordem.
Nos
dispersamos outra vez, dessa vez para nos despedirmos de todos. Apesar do que
Kat disse, não foi o fim da noite para nós. Sophie e Ellie não voltam ao salão;
provavelmente continuam torturando Pierre do lado de fora. Passamos quase uma
hora nos despedindo de todo mundo e aguentando discursos sobre nossas qualidades
e nossas habilidades. É como se ficássemos apenas com a parte maçante do que
tínhamos em 97. Se a situação fosse mais próxima daquela, estaríamos lotadas de
presentes de despedida e as melhores recomendações de locais para ficar e de
pessoas para conhecer. Aqui somos nós a fonte do conhecimento e do dinheiro:
Kat doou mais de 50 mil dólares para pesquisas sobre as propriedades curativas
do sangue de vampiro.
Quando
finalmente terminamos, saímos e encontramos Sophie e Ellie com um Pierre
desmaiado e encostado na parede entre as duas. O desprezo por Pierre as uniu em
um objetivo igual outra vez. Depois de alguns minutos de debate, Pierre é
carregado por Kaylee e Tatiana, já que mais queimaduras o fariam acordar e
gritar. Saímos as 13 caminhando por uma chuvinha fraca. Ninguém sequer se deu
ao trabalho de oferecer uma carona. É tão afrontoso.
Kat
volta ao assunto onde paramos:
-
Alguma ideia de por quê Pierre resolveu fazer essa cena? - Pergunta, olhando
para Ellie.
-
Não sei nem do que ele faz sóbrio, quanto mais nas condições que chegou até
aqui. - Ela responde, chutando o chão. - Provavelmente, só fazer uma cena
mesmo.
Uns
cinco segundos de silêncio se passam, antes que eu resolva soltar o que vinha
pensando há um tempinho:
-
Por que Pierre ainda está aqui? Que serventia ele tem para nós?
Todo
mundo começa a olhar para mim e para de andar. Odeio quando isso acontece.
- O
que você quer dizer, Anika? - Kat pergunta.
-
Ele não serve de barganha, não serve aos nossos propósitos e até onde sabemos
pode ser usado como arma do Inferno a qualquer momento, como foi para
amaldiçoar Ellie. Ele é 88 quilos de inutilidade e possível perigo eminente,
por que ele continua aqui?
Percebo
Tatiana desviar o olhar de mim e encarar o chão. As outras olham para Kat
esperando por uma resposta.
-
Você acha que nós deveríamos nos livrar dele?
Por que ela fica me respondendo com
perguntas?
- É
você quem diz que devemos nos focar na missão e deixar para trás qualquer coisa
que não sirva para ela.
-
Sophie está buscando formas de fazer com que ele seja útil.
-
Pesquisa infrutífera até agora. - Sophie completa, não se deixando abalar.
-
Então por que não mantemos ele preso em um lugar só? - Pergunto, usando a
lógica - Ao invés de termos que carregá-lo por aí como uma carga irritante?
Ninguém
responde. Ninguém tem uma resposta lógica. Mas eu sei que ninguém quer se
desfazer de Pierre porque o assunto é deixado de lado sem resposta e voltamos a
andar pelas ruas frias de Nova Orleans em outubro.
28 de outubro
Katerina
-
Terminou? - Pergunto ao ouvir o zíper da mala de Ellie se fechando.
Nós
nem vamos usar nenhuma das roupas que usávamos em Nova Orleans. O plano é
deixa-las em alguma instituição no meio da Europa e comprar roupas novas assim
que chegarmos à Romênia. Comprar roupas novas a cada país que chegamos é uma
forma de nos adaptarmos com facilidade, assim como treinar a língua iremos usar
por semanas antes.
-
Terminei. - Ellie responde, se sentando na cama. - Ah, credo.
Me
viro para onde ela está, com uma calça jeans ainda na mão.
-
Deyah? - Pergunto.
-
Sim. - Ellie suspira. - Ela está bastante animada para “voltar ao país onde
morou por tanto tempo”.
- Pelo
menos uma pessoa está.
-
Ela disse que você não tem com o que se preocupar. Se você usar da mesma
precaução que usou aqui, deve estar segura.
Ergo
a sobrancelha, mas não quero alimentar Deyah com perguntas.
-
Não estou preocupada com o clã. Eu só não tenho nostalgia alguma dos anos
passados naquela terra de ninguém.
Ellie
está olhando para o fantasma, com certa náusea. Imagino como deve ser ver
fantasmas com tanta clareza, sem precisar de superfícies reflexivas.
-
Os tempos mudaram. - Ellie reproduz o que Deyah está dizendo. - Deve existir um
bom motivo para a família de Deyah ter se mudado para a Romênia, que não
costumava ser segura para bruxas.
-
Vou te dizer um motivo excelente: Se esconder. Minhas opções prováveis de
lugares onde o clã de Deyah estaria eram lugares muito menos óbvios.
-
Eu ainda me pergunto o que você vai querer em troca. - Ellie diz, para o
fantasma.
Não
digo nada e observo sua expressão mudar. Apesar dessa nova Ellie emotiva e até
mesmo delicada me incomodar grande parte do tempo, não posso negar que o fato
de ela estar mais expressiva me diverte. Ela costumava ser um túmulo, eu nunca
tinha certeza do que ela estava pensando ou o que ela queria. Agora eu posso
notar as mais ínfimas mudanças de expressão em seu rosto e entender o que ela
quer comunicar sem que ela precise abrir a boca.
-
Você acha que a gente te deve lealdade porque você criou o vampirismo? Acho que
passamos da fase de dever alguma coisa a carcereiros de almas, Deyah. Comece a
arranjar motivos para não destruirmos cada pessoa ligada a você por sangue, ao
invés de motivos para te agradecer.
Sorrio.
Eu me dei conta de que apesar da situação não ser a ideal, se nós déssemos
continuação a nosso plano Ellie eventualmente evoluiria a se tornar essa mesma
versão de si que é desde que recebeu sua alma de volta. Ellie voltaria a
sentir, de uma forma ou de outra. Mas ela ainda é Ellie - ainda é a primeira
pessoa que eu considerei boa o suficiente para transformar. Ainda é a garota
que assumiu a direção de um orfanato aos 15 anos. Aquela que bebeu sangue do
meu machucado para que eu me sentisse confortável para beber o seu. A única
coisa que mudou foi um bebê demoníaco e 150 anos de assassinatos.
Volto
a arrumar a mala enquanto Ellie fica quieta, provavelmente ouvindo o blá, blá,
blá de Deyah. Tenho poucos pertences. Além de um novo diário (os outros dois
estão guardados em um cofre), celular e o colar da esmeralda (as outras joias
estão divididas em 13 cofres em diversos lugares do mundo), não tenho mais nada
que precise guardar. Pego a corrente e observo a luz refletindo na pedra verde.
A pedra dos viajantes. Eu sempre espero que sua proteção nos ajude em dias como
hoje. Esta noite pegamos os primeiros dos quatro voos que nos levarão para a
Romênia, em um percurso complicado que eu e Ellie criamos. Os documentos falsos
são novos e foram feitos com toda discrição que alguns milhões proporciona.
Estamos tentando diminuir as chances de sermos perseguidas por alguém de Nova
Orleans. Apesar dos boatos e de alguns vampiros que encontramos enquanto
buscávamos a 13ª vampira saberem que estamos em busca de algum objetivo,
ninguém sabe exatamente o que é. E é melhor assim, porque para sermos precisas,
nem nós sabemos.
-
Kat. - Ellie chama, prolongando a vogal, depois que eu guardo o colar da
esmeralda na mala e fecho o zíper.
Me
viro e ela está deitada na cama, com os pés sobre sua mala.
-
Sim? - Digo, me sentando na beira da minha cama, de frente para ela.
-
Eu sei que você não respondeu para Anika, por ter seus próprios motivos. Mas eu
sou eu e de uma forma ou de outra, sou mãe de Pierre: Por que ainda carregamos
ele a todo canto? Por que consideramos ele nosso prisioneiro, se os crimes dele
já ficaram para trás há tanto tempo e ele não tem efeito nenhum sobre a guerra?
Suspiro.
Pierre realmente incomoda todo mundo desse jeito? Por que querem se livrar dele
tão facilmente?
-
Você disse que você é você, então eu posso ser sincera com você, certo? - Digo,
com cuidado.
-
Claro.
O
que eu disse sobre as mudanças de expressão: Posso ver os olhos dela faiscarem
de interesse. O mesmo tom de gelo de sempre se transforma em um prisma, por
meio segundo.
-
Quando Pierre nasceu, eu disse a você que ele era o ser mais poderoso do mundo.
Que era o primeiro bebê meio-íncubus desde a idade média. Seres como Pierre são
humanos imortais, nascidos para destruir o que tocam e com o que se associam.
Eles não seriam simplesmente dizimados por humanos normais e mortais. Foram
destruídos porque o próprio Inferno não queria que eles continuassem se
propagando e propagando sua existência. Foram destruídos, porque a existência
de bebês-íncubos permitia que um fenômeno como o Réquiem aconteça. Que pessoas como
você surgissem. Ellie, o próprio Inferno teme bebês como o que você deu à luz.
Pierre continua conosco porque eu quero que ele veja isso, eu quero que ele
descubra o que ainda pode se tornar, quão poderoso ele ainda pode ser. Assim
como você, Pierre é de minha criação, é de minha posse. Eu o lapidei até ele se
tornar o que é. Ele me traiu e nos deixou porque queria ser grande no Inferno,
mas não sabia de algo que eu aprendi depois que minha mãe tentou a mesma coisa
que ele: A única coisa que o Inferno sabe é escravizar, não honrar. Quanto às
condições dele ao lado do Exército: ele só será prisioneiro enquanto continuar
agindo como tal.
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