“Nunca dome seus demônios, mas sempre os mantenha na coleira”
Hozier (Arsonist’s Lullabye)

As Crônicas de Kat:
Entre todos os demônios do Inferno


Nova Orleans, Estados Unidos
3 de outubro de 2015
Tatiana
Pierre olha no fundo dos meus olhos por quase um minuto inteiro, como se procurasse uma alma para roubar para si. Ficamos em um jogo de encarar silencioso. Me pergunto como minha bisavó Katerina se sentia dormindo todos os dias ao lado de alguém que dizia que a amava e depois de fazer amor, a olhava desse jeito. Mas talvez ele só olhe assim para mim porque eu tenho os olhos dela.
- Vou sentir falta disso quando você recuperar sua alma. - Ele solta, com algo que poderia ser ternura no olhar.
Respondo com uma careta, porque não há o que responder. Isso, o que quer que isso seja, é apenas uma distração para os entediantes anos de espera pelo começo da guerra. Ela começou há 6 dias, mas estamos esperando por algumas informações antes de sair de Nova Orleans atrás da família de Deyah, que Sophie localizou na Romênia. Eu achei que isso merecesse uma despedida e fiquei para trás para vigiar Pierre enquanto as meninas estão em uma visita ao Apreciadores.
Estamos deitados lado a lado, mas minha cabeça bate em seu ombro e eu preciso olhar para cima para olhar em seus olhos. Resolvo me virar na cama e me apoiar nos cotovelos para olhá-lo frente a frente. Deixo o cabelo cair sobre o rosto quando me viro e pergunto algo que venho pensando desde que Kat contou sobre Deyah ter saído do Inferno e eu vi Pierre estremecer:
- Por que você matou Deyah? - Solto, sem rodeios.
Ele resmunga antes de soltar:
- Você também a mataria se passasse muito tempo com ela.
- É sério, Pierre.
Ele fecha os olhos azuis.
- Eu era apenas uma criança e não sabia como lidar com meus problemas sem cometer um assassinato.
- E por que ela se tornou um problema?  
Ele volta a abrir os olhos e parece o inferno lá dentro.
- Ela proibiu Kat de ter homens em seu Exército, mesmo que eu me mostrasse fiel e disposto a ajudar. Ela sugeriu que eu fosse uma barganha, pois era inútil para os propósitos dela, a guerra contra o Inferno. Só serviria como moeda de troca. E Kat, encantada pela ideia de grandiosidade, faria qualquer coisa que ela pedisse. Ela até tentou uma aliança com a Morte!
- Então você decidiu matar Deyah. - Insinuo antes que a raiva o faça mudar de assunto.
- Na minha mente demoníaca de 12 anos fazia todo o sentido. Mas, naturalmente, Deyah acabou virando uma mártir dos seus próprios ideais. Kat ficou desconfiada. Eu fugi por meu orgulho. Ao ser reencontrado, fui feito prisioneiro e aqui estou. Servindo de barganha.
Tento segurar a risada, mas isso se mostra impossível.
- Você se acha tão importante para o Inferno. Você não é uma barganha, Pierre.
Ele se ofende, mas tenta me fazer entender sua lógica:
- Se eu não estou aqui como um trunfo sobre o Inferno, por que estou aqui?
Dou de ombros, já tendo pensado nisso.
- Você é filho de Ellie e foi criado por Kat. Elas têm um senso de posse sobre você.
- Ambas me desprezam. Ellie agora mais que nunca.
- Elas não precisam te amar para te considerar posse delas. Elas são responsáveis pelos seus primeiros 16 anos de vida. Te ensinaram a matar, a destruir, fizeram de você o portador de pragas. Elas podem te considerar um erro colossal, um traidor maldito, o ser mais desprezível a habitar no planeta, mas você pertence a elas e elas não abrem mão do que têm.
Pierre se cala. Isso é algo raro a acontecer, mas percebo que minha lógica feriu seu orgulho. A tal necessidade de grandeza foi algo que Pierre absorveu de Kat, mesmo sem perceber. Ele deixou o Exército porque se sentia pequeno e queria ser grande para o Inferno. No fim, toda grandeza que ele conseguiu foi criar uma linhagem sanguínea que resultou em mim. Na guerra contra o Inferno, toda grandeza que ele vai poder conseguir se resume a mim. Imagino o tamanho do soco no estômago que isso deve ser.

10 de outubro
Charlottie
- Você vai quebrar essa mala, Sophie. - Digo, mudando de posição e arrumando o livro no colo.
Ela bufa e usa o cotovelo para apertar a mala e fechar o zíper.
- Da última vez que eu fui embora de Nova Orleans, eu deixei tudo para trás. - Ela diz, meio ofegante - Isso não vai acontecer dessa vez.
Uma brisa tranquila entra pela janela onde estou sentada de lado. Os humores de Sophie costumam afetar o clima.
- Soph, nós somos peregrinas, quase ciganas. - Digo, entediada - Não vale a pena manter posses físicas por perto.
- Vale, se forem itens mágicos que ajudaram na guerra.
Fecho o livro e me sento de frente para ela.
- Como o quê?
Ela para de tentar fechar a mala e sorri.
- Agora você se interessa, sua peste.
- Claro. Não sei se você se lembra, mas quando isso terminar, eu voltarei a ser uma bruxa. Preciso do que poder manter como informação.
Ela faz um sinal para que eu me aproxime enquanto volta a abrir a mala. Deixo a janela e sobre a cama dela encontro diversos cadernos de couro, alguns cristais e diversos vidrinhos com líquidos.
- A maioria dos cadernos tem ervas prensadas - Sophie explica - Algumas com poderes curativos, outras com poderes protetores. Mas alguns são grimórios. Eu tenho passado muito tempo tentando lembrar de todo feitiço que já ouvi na vida. Dos que me ensinaram aos que eu aprendi por ser enxerida. Ontem cheguei a me lembrar do que me protegeu de Pierre na primeira vez que o vi.
- A invocação de proteção? Eu sempre quis saber quem te ensinou isso.
- Magnólia. Sem querer, mas ela apontou os dedos para mim quando Jonah contou a ela que eu havia posto fogo na casa. Não sabia que invocar proteção funcionava até ver o olhar de pânico de Pierre. Mas eu não conseguia me lembrar de como deveria pedir. Por anos, eu não consegui evocar essa proteção, até que eu me dei conta: Preciso de uma ligação com a alma de uma bruxa sacrificada por uma causa.
Levo um tempo para entender o que ela quer dizer. Nós perdemos a proteção das bruxas de Verdant quando nos tornamos vampiras e nenhuma bruxa foi sacrificada pela nossa proteção... Mas uma bruxa foi sacrificada pela nossa causa.
- Deyah? - Pergunto, fascinada.
Sophie sorri.
- Seria uma coisa se ela tivesse continuado no Inferno. Ela morreu como vampira e sua alma estava prisioneira. Mas ela saiu, sua alma está livre e sem um link com o corpo, está pronta para ser drenada e roubada. Ela era uma bruxa e foi separada do seu corpo mortal por um ser Infernal, pela causa do Exército. Se eu evocar sua proteção, ela precisa atender.
- Uau. - É tudo que digo.
Ela continua sorrindo, o rosto radiante por compartilhar sua sabedoria.
- Nós não vamos nos livrar de Deyah, então podemos pelo menos usá-la a nosso favor. - Dá de ombros - Meu próximo passo é descobrir como usar Pierre.
- Perguntou algo a Tatiana?
- Sim, mas ela disse que nem saberia dizer se tivesse percebido alguma coisa que pudesse ser usada nele. Ele está um caco. É um vulto do garoto que foi quando eu o conheci.
Me sento na minha cama, que fica ao lado da dela e cruzo as pernas.
- Como ele era quando criança?
Sophie também se senta.
- Ele era... Estranho. Ele tinha aquela faísca violenta, agressiva, aquele impulso que o fazia correr atrás de pássaros e quebrar seus pescoços. Ele sorria cada vez que via uma morte particularmente violenta. Adorava se fingir de inocente e perdido e destruir a vida de alguém aos poucos. Causar caos era sua maior especialidade. Das poucas vezes que o vi com outras crianças, eram sempre meninas: garotinhas que ou acabavam mortas por nós ou acabavam correndo para os braços das mães em lágrimas. Ele era feliz e se divertia muito com cada uma dessas situações. O problema era que nós não tínhamos o ritmo dele. O que para ele era divertido, para nós era parte do processo. Nós brincamos com a comida para escapar do tédio, mas só sentimos prazer em consumir o sangue. Os assassinatos que o faziam vibrar, eram só parte de um ciclo costumeiro para nós. Aos poucos ele foi absorvendo nossa indiferença, nosso tédio eterno. Ele aprendeu a repudiar o que sentia e tentava não sentir, mas era complicado demais. O fogo do Inferno ainda queimava dentro dele e aparecia às vezes, como apareceu quando ele notou que Kat estava o testando e nos deixou. Pierre nasceu pelo fogo e foi moldado com gelo. Autodestruição sempre foi seu destino.
- Então como você pensa que ele deve ser útil para nós? - Pergunto, absorvendo as palavras de Sophie.
- Não sei. Mas ele ainda é uma criatura infernal e imortal que serve de portal daqui para o Inferno. Ele deve servir nem que seja de escudo humano.
Concordo com a cabeça e prometo a mim mesma que também pensarei no assunto. Eu tenho tempo mais o que suficiente para pensar em estratégias para a guerra. Me sinto inútil enquanto estou parada, sem matar, sem poder me colocar em perigo. É enlouquecedor.
- Ele tem sorte de ser um imortal que ao menos cresceu. Quando penso em ficar presa nesse corpo de 12 anos pelo resto da vida eu quase enlouqueço. - Exteriorizo o que estava pensando.
Sophie me observa com a sobrancelha erguida.
- É tão ruim assim?
- Ser parada por cada empresa áerea porque eu sou nova demais para viajar sozinha? Me faz até sentir falta do século XIX e de viajar de navio.
- Eu nunca vi as coisas desse jeito.
- Você tinha 18 anos quando foi transformada, Sophie. Já era adulta, mas não tão velha. Não cresceria mais que isso e jamais seria tão bonita quanto naquele momento. Eu morri aos 12 anos, graças a um sacrifício mal feito. Ser imortal é bom, mas eu sei que até Kat tem problemas com ficar presa para sempre no corpo de uma criança. Queria que toda essa guerra me permitisse crescer.
Sophie solta um sorriso fraco.
- Sinto muito, Lottie. O corpo vê o envelhecimento como decadência, então você fica presa no corpo que tem para sempre.
- Por um erro bobo de Deyah. - Ellie diz da porta aberta do quarto, fazendo com que nós duas nos sobressaltemos. Ellie. Está. Sorrindo. Nunca vi nada mais assustador. - Ou falta de conhecimento mesmo. Se ela tivesse passado algum tempo observando bebês híbridos de demônio e humano, que eram abundantes na época dela, ela poderia entender o funcionamento do corpo melhor. Deixando o mínimo de controle para o corpo, talvez ele quisesse seguir seu ritmo normal até a maturidade, quando enfim, o corpo considera envelhecer como decadência.
 Sophie bufa, contrariada por Ellie ter surgido do nada e ainda corrigindo o que ela acabou de dizer. Seu rosto se afogueia quando ela vira para a colega vampira com alma.
- Você realmente virou a portadora da resposta de todos os mistérios do universo não é?
- Não é bem assim, Soph...
- Por que eu não consigo acreditar que essas informações só surgiram quando sua alma voltou? - Sophie interrompe.
- Não foram as informações...
- Você sabia mais do que todas nós, sabia mais do que Kat sobre a guerra em que ela estava se metendo e matou a única pessoa que explicou para nós o que estava acontecendo. Então me perdoe se eu não confio plenamente em você.
- Confiança é a única coisa que nos mantém ligadas. A única coisa que nos permitiria vencer.
- Então por que você não confia em nós? Por que manteve para si mesma um segredo que deveria pertencer a todas nós?
- Eu disse a Kat que contaria assim que o segredo fosse necessário. Eu corro risco de vida. Se descobrirem que a lenda do Réquiem é real, milhares de interessados no mundo inteiro estarão atrás de mim e se um deles colocarem as mãos em mim, acabou.
- De que forma a informação poderia vazar? Somos nós, Ellie. Não é como se fossemos contar para o mundo inteiro.
- Mas só uma pessoa precisa saber para desencadear a coisa toda. Agora que a guerra começou ninguém contará a ninguém porque a vida de vocês depende da minha. Se eu morrer, todas morrem no segundo seguinte. Menos você, é claro. Você está livre.
- Sim! E ainda estou aqui. Lealdade me mantém presa. E eu exijo o mínimo de volta de todas vocês. A mesma lealdade.
- Eu sou leal.
- Não, Ellie, você não é. Você sempre foi a mais fria de nós, a mais distante. A arma indestrutível de Kat. Você foi a primeira, não teve que conquistar um lugar no Exército. Nunca precisou ser leal. Até onde eu sei poderia ir embora agora e nos deixar para a morte. Sua alma está livre e se for presa outra vez, você sabe como sair. Era o que você pretendia fazer em Cianne mesmo.
Eu estou balançado a cabeça de um lado para o outro acompanhando enquanto Sophie ataca Ellie, e no momento em que Sophie diz isso, estou olhando para ela. Quando viro para Ellie para esperar pela resposta, a vejo atravessar a sala e atingir Sophie com um tapa no meio da bochecha. Sophie fica vermelha a partir da bochecha e seus olhos são tomados por uma fúria irresistível. Mas o olhar de Ellie, que continha a mesma fúria, é tomado por um pesar tão intenso quanto:
- Ah, Sophie. Me desculpe. Eu não sei o que me deu.
- Ah, não. Pelo amor de Deus, não comece a chorar. - Sophie rosna, esfregando o rosto. - Saia daqui antes que eu perca a cabeça.
Ela se vira para sair correndo, provavelmente para chorar em algum lugar reservado - Kat já a pegou fazendo isso 3 vezes.
- É como se você fosse uma pessoa completamente diferente. - Eu digo, fazendo com que ela pare no meio do caminho e com que Sophie se vire para mim. Olho para Ellie, que não se vira para mim, mas continua parada. - A Ellie que eu conheci e que me assombrou, permitiria qualquer coisa ao invés de se tornar um caso de pena. Ela arrancaria a cabeça de Sophie antes de deixar que ela lhe desse ordens. Eu entenderia se aquela Ellie tivesse um ataque de fúria ao receber sua alma de volta, não uma crise de choro. Não adianta nada que o Inferno libere sua alma, se graças a maldição dita por Abadom, sua alma te faz um joguinho deles.
Quando eu termino, ela sai. Sem dizer mais nada.

17 de outubro
Juliana
- Nós deixaremos a cidade um pouco antes do Halloween e eu pretendo contar a elas sobre você amanhã. - Explico para Alex, balançando os pés no chão de areia.
- Você precisa? - Ela pergunta.
Encaro o sol se pondo em tons de laranja atrás do prédio. O café onde Alex trabalha está com o movimento baixo e sempre que isso acontecesse podemos ficar conversando nos fundos da loja.
- Contar sobre você ou sair de Nova Orleans?
- Sair de Nova Orleans.
- Sim. Estamos no meio de uma missão. Você não tem medo do que 12 vampiras podem fazer quando descobrirem que você existe?
Alexandra dá de ombros. Ela fica mais parecida com minha mãe quando está se movimentando.
- Louise sabe e não fez nada. Algumas de suas outras irmãs também. Se eu sei qualquer coisa sobre lealdade vampírica, eu sei que elas não mexerão comigo porque eu sou sangue do seu sangue.
- Você soa fascinada. Estamos falando de monstros, Alex. Predadoras, que não hesitariam em matar você, nem por um instante.
- É tarde mais para você começar a me assustar, Juliana. Depois de todas as histórias que você contou, de todas as coisas incríveis que você fez nesses 17 anos... Estou mais encantada do que assustada.
- Não é tudo grandioso e incrível, Alexandra. É perigoso e terrível durante boa parte do tempo.
- Por que você está tentando me proteger de si mesma?
- Chame daquela lealdade vampírica que você citou.
- Então eu posso desistir das chances de você me transformar em vampira?
- Pode. Completamente.
Ficamos em silêncio. Eu estabeleci essa relação estranha com minha irmã, com o passar dos meses depois que Louise me trouxe ao restaurante. Não planejava contar a história louca sobre ser vampira e ter mudado, mas no momento em que disse meu nome, o rosto de Alexandra ficou chocado. Ela diz ter sido criada sob minha sombra, sempre precisando fazer o que eu faria. Adele Mayfair, fria e exigente quando eu era viva, desenvolveu uma espécie de adoração por mim quando me perdeu. E Alexandra, que nasceu como um consolo para quem ela tinha perdido, quase entrou em colapso quando me apresentei como Juliana.
- Fale mais sobre o demônio que anda como vocês. - Ela diz depois de um tempo, soando infantil.
- Ele é um hibrido de demônio e humano.
- Um demônio sexual.
- Sim.
- E ele é sexy?
A encaro.
- Ah, você é mesmo uma garota humana de 16 anos.
- Isso não responde minha pergunta.
- É claro que ele é sexy. Ele nasceu para ser sexualmente atraente.
- Como ele se parece?
- Aparência não é a parte mais importante de alguém, Alexandra.
Ela ri.
- Ele é metade demônio. Eu sei o que esperar da personalidade dele. Eu quero saber da aparência.
Bufo. Não sei como descrever Pierre. Nós éramos estranhamente próximos quando eu era uma humana paga para ser babá dele. Eu não tinha medo ao ver como ele era fraco e as suas respostas, agressivas demais para um prisioneiro, me faziam rir. Depois que eu entrei para o Exército e começamos a procurar pela 13ª vampira, passei pouco tempo com ele, mas sempre que eu e Louise éramos as responsáveis por tomar conta dele, acabávamos nas melhores festas, conhecendo as pessoas mais loucas e fazendo as coisas mais inacreditavelmente perigosas. Pierre sabe como manter-nos perto do limite da sanidade. Ele é metade da diversão do Exército.
- Imagine que um garoto qualquer que você acha particularmente bonito passou 30 anos em uma guerra. Pierre. Ele é basicamente a versão infernal do que seria um galã de cabelos escuros e olhos azuis.
Alex suspira e eu reviro os olhos.
- Não me surpreende que ele esteja em um caso tórrido com uma das vampiras do Exército. - Ela diz, encantada.
- Eu te disse que ela é bisneta dele, certo?
- Vocês são vampiras! Esse tipo de regra é dobrável.
- Você aceita isso tão facilmente. E Tatiana não está mais tendo - Faço aspas no ar - “um caso tórrido” com Pierre. De acordo com ela, eles dormiram juntos pela última vez há alguns dias.
- É a sua chance!
- O que?
- Qual é, Juliana? Eu vi a forma como você fala de Pierre. Você tem no mínimo uma queda por ele.
Dou um tapa na minha testa.
- Alex, você sabe que eu não posso sentir né? Você está perdendo todo o princípio do vampirismo.
Ela se cala.
- Mas... A forma como você fala dele!
- Pierre era alguém importante quando eu morri e está ligado à minha morte de alguma forma, então podemos dizer que eu aprecio a companhia dele. Mas não desse jeito, Alex.
Alexandra revira os olhos.
- Talvez eu não queira ser vampira tanto assim. Uma vida imortal sem me apaixonar?
- Ah, Deus. Você é filha da nossa mãe.
Ela ri.
- Como você pode falar o nome de Deus sem entrar em combustão?
- Quantas vezes eu vou ter que te explicar que isso não faz diferença alguma? Não sou puramente uma criatura infernal, nem puramente uma criação divina. Ando em meio uma linha fina entre os dois.
- É divertido?
Dou de ombros.
- Pode ser entediante às vezes, mas é bastante intenso em outras, então é tudo contrabalançado.
Alex chuta uma pedrinha com o canto do pé. Já está ficando escuro e em breve o café se encherá outra vez. Eu provavelmente deveria ir para casa de qualquer forma, não é seguro sair tanto assim. Me levanto, mas antes que comece a me despedir, Alex volta a falar:
- Você vai sentir minha falta?
- Talvez sim, talvez não. Depende de quão ocupada eu esteja na Romênia.
- Precisava ser tão sincera?
- Foi você quem perguntou.

21 de outubro
Miranda
A faca passa de raspão pelo braço dele antes de se prender à parede e por um instante eu me distraio com o fio de sangue que goteja no chão e não digo nada. A ferida se fecha logo e eu faço uma careta.
- Se você estiver com desejos suicidas, existem outras vampiras no Exército que querem te matar mais do que eu quero. - Reclamo enquanto ando até onde a faca está, a apenas milímetros de onde eu havia mirado.
- Quem brinca com facas dentro de casa? - Pierre grita, limpando o sangue do antebraço com a língua.
- Valentina e eu estamos sempre brincando com facas e ninguém cuja opinião seja relevante parece se importar.
Arranco a faca da parede e me viro de volta para onde ele está. Pierre olha para os dois lados do corredor e ergue a sobrancelha.
- E onde está sua outra metade?
- Não é da sua conta.
Ele cruza os braços e encosta na soleira da porta de onde saiu.
- Eu sei. Só estou surpreso por você existir sem Valentina.
Reviro os olhos e atiro a faca, mirando alguns centímetros ao lado da barriga dele. Sem nada para desviar o percurso a faca atinge o lugar onde eu queria na soleira da porta com tudo, deixando um rasgo na blusa preta de Pierre no caminho.
- Pensei que você tinha dito que não me queria morto!
- Eu disse que tem gente que te quer morto mais do que eu quero. Além disso, fazer você sangrar é divertido.
Eu jurava que a destruição da sua camiseta fosse fazer Pierre me deixar em paz, mas naturalmente estava sonhando alto demais. Quando ele não sai, eu sou forçada a ir até ele para pegar a faca. Ele me vê fazendo isso e quando paro ao seu lado, pega a faca antes de mim, a segurando sobre minha cabeça.
- Você e sua irmã são duas criaturas esquisitinhas. Essa obsessão por facas... Não é comum.
- Todos esses anos convivendo com vampiras e você ainda não entende nossas condições? Que perceptivo.
- Eu entendo a obsessão por coisas ligadas à forma como você morreu, mas apesar de terem sido obrigadas a brincar com facas em vida, a morte de vocês não esteve ligada a isso.
Eu começo a rir.
- Você acreditou na história de Anika sobre nossa morte? Eu jurava que você fosse mais esperto que isso, Pierre.
Ele começa a brincar com a lâmina, passando-a pela mão delicadamente, sem cortar-se.
- Eu sei que ela exagerou nos detalhes, mas deve ter sido algo do tipo.
- Cada vampira do Exército percebeu o erro na possibilidade de Anika ter nos matado com uma mordida. E você não.
Pierre corta a própria mão. Não sei se é de propósito ou sem querer, já que a lâmina está muito afiada, mas ele deixa a faca parada onde está, uma bolha de sangue se formando. Ele para de encarar a própria mão e olha nos meus olhos.
- Eu deveria prestar mais atenção a você, Miranda. Você e Valentina são as únicas vampiras do Exército que Kat não escolheu a dedo. Eu sei que você é perceptiva e que quer ser tão grandiosa quanto essa empreitada para o Inferno te fará. O que mais eu descobriria se passasse mais tempo observando seus passos?
As gotas do sangue dele formam uma pequena poça aos meus pés. Perco a paciência e arranco a faca de suas mãos, abrindo o corte.
- Se Anika tivesse sugado nosso sangue de uma ferida não existente, Valentina e eu teríamos cicatrizes de mordida. - Digo, saindo do corredor para fora de casa.

25 de outubro
Anika
Quando entramos as 13 no salão da casa onde acontece a reunião dos Apreciadores, eu tenho flashback vívido do momento em entramos no salão da Mansão Hass, para onde levamos os membros de todos os grupos de estudos sobre vampiros, há quase 18 anos. Assim como naquele dia, estamos todas de vestidos de época, costurados pela própria Ellie e com nossas pedras preciosas adornando os pescoços. Assim como naquele dia, isso tudo é um show, uma demonstração das bizarras criaturas que somos. Nos apresentamos como antiguidades: atemporais, exóticas, belas e únicas.
Nunca poderíamos permitir que todos os grupos de estudo de vampiros soubessem que estávamos ali e nos focamos em apenas um, o que Kat achou menos agressivo, que ainda não existia em 1997: Os Apreciadores da Arte do Sangue. A líder desse grupo, uma garota de 24 anos de pele de ébano chamada Amelie, implorou para que nós tivéssemos uma festa assim, uma reunião gloriosa, que fizesse com que nos despedíssemos de Nova Orleans com toda pompa outra vez - mas sem a parte do massacre com mais de 500 mortos. Amelie prometeu que nos divertiríamos tanto quanto naquela Festa do Solstício, mas essa reunião é completamente diferente daquela. Para começar, somos nós que estamos no território deles, ao invés deles no nosso.
Nos espalhamos rapidamente e cada uma se envolve em conversas com um grupo. Eu me canso de todos os grupos rapidamente e me afasto para pegar a taça de sangue que está sendo servida por garçonetes que não sei o quanto sabem sobre o que está acontecendo. Procuro uma forma de não ser abordada por um tempo e acabo encontrando Ellie observando tudo de um canto.
- Você está tremendo. - Digo para ela, ao me aproximar com duas taças de sangue na mão. Noto a direção que seu nariz toma e levando o dedo. - Não faça careta!
Ela suspira e pega a taça de mim.
- Quanto deles você acha que conhecem a lenda? - Ela pergunta, aproximando a taça do nariz antes de tomar uma golada corajosa.
Nem imagino o gosto que sangue humano tem para quem não precisa dele para sobreviver.
- Eu sei lá. Mas mesmo que todos conheçam, ninguém tem razões para acreditar que você é ela. Ou que você é diferente de nós. Apesar de você ser muito pior em fingir do que Sophie é, ninguém deduziria algo que não faz ideia de que existe.
Quando digo isso, sinto o olhar de Sophie em mim e olho para onde ela está. Sei que ela está prestando atenção na conversa. Sophie tem se mantido na defensiva com Ellie por todos os dias desde que a alma dela voltou. Ela acredita que tem todas as razões do mundo para desconfiar das verdadeiras intenções da segunda vampira com alma do grupo. Ellie suspira.
- Você tem razão.
- E você só tem sentimentos. - Rebato, ainda olhando para Sophie, que sorri.
Volto a olhar para Ellie, que revira os olhos.
- E eu achando que você era leal a mim.
- E sou. Se chama firmeza. A antiga Ellie ia preferir que eu fosse agressiva do que ser gentil.
- A antiga Ellie? Annie, eu ainda sou eu.
Tomo a taça de sangue da mão dela e finalizo, pensando no que poderia dizer sem fazê-la chorar e estragar o disfarce. Não é que Ellie esteja sensível, é que quando seus sentimentos vêm, eles vêm com muita força e de forma destruidora.  Eu sei que se tomada por uma fúria arrebatadora, Ellie com alma mataria tantas pessoas quando Ellie sem alma mataria. A questão é que ultimamente ela só sido tomada por tristezas arrebatadoras.
- Eu sei, mas é difícil saber disso com você chorando pelos cantos.
- Eu não consigo controlar, Anika. Se eu me lembro de uma coisa ruim, eu me lembro de todas. O peso de tudo que eu fiz em 150 anos caí em cima de mim uma vez e eu sou uma pessoa só, não posso suportar tudo.
- Você precisa suportar, Ellie. E você suportará, eu sei que consegue. Só não espere que um bando de crianças sem alma ou sentimentos entendam porque você cai no choro hora sim, hora não.
Antes que ela possa responder, um rapaz do grupo se aproxima de nós e puxa uma conversa chata sobre a Europa Oriental. Eles sabem para onde estamos indo, apesar de não fazerem ideia do motivo. Acho que a crença geral é de que esses são os dois lugares mais comuns para vampiros no mundo: Nova Orleans e a Romênia. E Nova Orleans realmente está tomada de vampiros.
Uma coisa que nos surpreendeu quando voltamos à cidade foi o fato de que ninguém parecia se lembrar ou se preocupar com o que aconteceu no Carnaval de 1998. É bem verdade que Nova Orleans tem seu número significativo de serial killers e de mortes bizarras, mas que tipo de massacre com mais de 500 mortos passa quase despercebido? Foi Louise quem apresentou uma resposta: Um massacre onde a maioria dos mortos eram bruxas. A cidade costumava ser dominada por bruxas e a alta sociedade da qual fizemos partes era constituída quase que exclusivamente delas. A maioria das pessoas que morreu naquela noite foram bruxas, bêbadas demais para se defenderem. Quando amanheceu, as bruxas sobreviventes dos clãs, poucas e em sua maioria idosas, demonstraram grande interesse em deixar que as mortes só tivessem a repercussão necessária. Foi essa devastação de clãs poderosos que deixou NOLA da forma como está: Cheia de vampiros, utilizando-se de humanos para se alimentar e da proteção da morte das bruxas para não ser incomodado. É uma cidade incrível e misteriosa - talvez eu volte para cá quando tudo terminar.
- Você viveu na Hungria por um tempo, certo, senhorita Blegleiter? - Diz o garoto... Qual o nome dele?... Ah, sim, Holt. Ou algo do tipo.
Volto a tentar participar da conversa, nada satisfeita. Ela se estende por alguns minutos, Ellie falando mais que eu, até que uma confusão na entrada finalmente me livra da insistência do rapaz. Holt se afasta, tentando enxergar com mais clareza o que acontece. Começa com um grito de “O CONVIDADO DE HONRA CHEGOU” e continua com todo mundo olhando naquela direção. O salão se cala, mas eu percebo dois armários que estavam fazendo a segurança se aproximarem do lugar onde entramos, com fúria nos outros. De onde estou, sou muito baixa para enxergar quem chegou fazendo escarcéu, mas quando noto Ellie empalidecer, percebo que deveria ter reconhecido a voz.
- Vocês não sabem quem eu sou, mas elas sabem! Elas não têm poder suficiente para me deixar entrar? - Pierre rosna, alto demais. Ele está bêbado, algo que eu vi acontecer mais frequentemente do que gostaria.
Aos poucos, cada vampira do Exército localiza as outras no meio da multidão. Ellie e Sophie trocam um olhar cúmplice que pensei que não fossem trocar outra vez e se dirigem juntas até hoje Pierre está. Kat e as outras meninas vêm até onde eu estou porque é o lugar com mais espaço. Ainda não posso ver o lugar onde Pierre está discutindo com os guardas, mas o vejo dizer o nome de Ellie, seguido de um grito gutural, enquanto algo que entendo como ele sendo arrastando para o lado de fora acontece e o cheiro de carne queimada toma conta do salão. Quando a porta de entrada se fecha, todos os presentes começam a conversar, como se sequer estivéssemos lá.
- Bem, isso declara o fim de nossa noite. - Kat diz, depositando a taça que carregava na bandeja de uma garçonete que passa.
- Que diabos Pierre quis com essa manifestação absurda? - Kaylee diz, revoltada.
- Ele está bêbado. - Tatiana justifica. - Lembrou de onde nós estávamos e resolveu fazer uma ceninha.
- E que diferença faz? - Miranda completa - Nós estamos indo embora. Ele apenas deu ao grupo alguma coisa para pensar.
- Vamos não falar disso até deixarmos o lugar, certo? - Kat diz, com um tom de ordem.
Nos dispersamos outra vez, dessa vez para nos despedirmos de todos. Apesar do que Kat disse, não foi o fim da noite para nós. Sophie e Ellie não voltam ao salão; provavelmente continuam torturando Pierre do lado de fora. Passamos quase uma hora nos despedindo de todo mundo e aguentando discursos sobre nossas qualidades e nossas habilidades. É como se ficássemos apenas com a parte maçante do que tínhamos em 97. Se a situação fosse mais próxima daquela, estaríamos lotadas de presentes de despedida e as melhores recomendações de locais para ficar e de pessoas para conhecer. Aqui somos nós a fonte do conhecimento e do dinheiro: Kat doou mais de 50 mil dólares para pesquisas sobre as propriedades curativas do sangue de vampiro.
Quando finalmente terminamos, saímos e encontramos Sophie e Ellie com um Pierre desmaiado e encostado na parede entre as duas. O desprezo por Pierre as uniu em um objetivo igual outra vez. Depois de alguns minutos de debate, Pierre é carregado por Kaylee e Tatiana, já que mais queimaduras o fariam acordar e gritar. Saímos as 13 caminhando por uma chuvinha fraca. Ninguém sequer se deu ao trabalho de oferecer uma carona. É tão afrontoso.
Kat volta ao assunto onde paramos:
- Alguma ideia de por quê Pierre resolveu fazer essa cena? - Pergunta, olhando para Ellie.
- Não sei nem do que ele faz sóbrio, quanto mais nas condições que chegou até aqui. - Ela responde, chutando o chão. - Provavelmente, só fazer uma cena mesmo.
Uns cinco segundos de silêncio se passam, antes que eu resolva soltar o que vinha pensando há um tempinho:
- Por que Pierre ainda está aqui? Que serventia ele tem para nós?
Todo mundo começa a olhar para mim e para de andar. Odeio quando isso acontece.
- O que você quer dizer, Anika? - Kat pergunta.
- Ele não serve de barganha, não serve aos nossos propósitos e até onde sabemos pode ser usado como arma do Inferno a qualquer momento, como foi para amaldiçoar Ellie. Ele é 88 quilos de inutilidade e possível perigo eminente, por que ele continua aqui?
Percebo Tatiana desviar o olhar de mim e encarar o chão. As outras olham para Kat esperando por uma resposta.
- Você acha que nós deveríamos nos livrar dele?
Por que ela fica me respondendo com perguntas?
- É você quem diz que devemos nos focar na missão e deixar para trás qualquer coisa que não sirva para ela.
- Sophie está buscando formas de fazer com que ele seja útil.
- Pesquisa infrutífera até agora. - Sophie completa, não se deixando abalar.
- Então por que não mantemos ele preso em um lugar só? - Pergunto, usando a lógica - Ao invés de termos que carregá-lo por aí como uma carga irritante?
Ninguém responde. Ninguém tem uma resposta lógica. Mas eu sei que ninguém quer se desfazer de Pierre porque o assunto é deixado de lado sem resposta e voltamos a andar pelas ruas frias de Nova Orleans em outubro.

28 de outubro
Katerina
- Terminou? - Pergunto ao ouvir o zíper da mala de Ellie se fechando.
Nós nem vamos usar nenhuma das roupas que usávamos em Nova Orleans. O plano é deixa-las em alguma instituição no meio da Europa e comprar roupas novas assim que chegarmos à Romênia. Comprar roupas novas a cada país que chegamos é uma forma de nos adaptarmos com facilidade, assim como treinar a língua iremos usar por semanas antes.
- Terminei. - Ellie responde, se sentando na cama. - Ah, credo.
Me viro para onde ela está, com uma calça jeans ainda na mão.
- Deyah? - Pergunto.
- Sim. - Ellie suspira. - Ela está bastante animada para “voltar ao país onde morou por tanto tempo”.
- Pelo menos uma pessoa está.
- Ela disse que você não tem com o que se preocupar. Se você usar da mesma precaução que usou aqui, deve estar segura.
Ergo a sobrancelha, mas não quero alimentar Deyah com perguntas.
- Não estou preocupada com o clã. Eu só não tenho nostalgia alguma dos anos passados naquela terra de ninguém.
Ellie está olhando para o fantasma, com certa náusea. Imagino como deve ser ver fantasmas com tanta clareza, sem precisar de superfícies reflexivas.
- Os tempos mudaram. - Ellie reproduz o que Deyah está dizendo. - Deve existir um bom motivo para a família de Deyah ter se mudado para a Romênia, que não costumava ser segura para bruxas.
- Vou te dizer um motivo excelente: Se esconder. Minhas opções prováveis de lugares onde o clã de Deyah estaria eram lugares muito menos óbvios.
- Eu ainda me pergunto o que você vai querer em troca. - Ellie diz, para o fantasma.
Não digo nada e observo sua expressão mudar. Apesar dessa nova Ellie emotiva e até mesmo delicada me incomodar grande parte do tempo, não posso negar que o fato de ela estar mais expressiva me diverte. Ela costumava ser um túmulo, eu nunca tinha certeza do que ela estava pensando ou o que ela queria. Agora eu posso notar as mais ínfimas mudanças de expressão em seu rosto e entender o que ela quer comunicar sem que ela precise abrir a boca.
- Você acha que a gente te deve lealdade porque você criou o vampirismo? Acho que passamos da fase de dever alguma coisa a carcereiros de almas, Deyah. Comece a arranjar motivos para não destruirmos cada pessoa ligada a você por sangue, ao invés de motivos para te agradecer.
Sorrio. Eu me dei conta de que apesar da situação não ser a ideal, se nós déssemos continuação a nosso plano Ellie eventualmente evoluiria a se tornar essa mesma versão de si que é desde que recebeu sua alma de volta. Ellie voltaria a sentir, de uma forma ou de outra. Mas ela ainda é Ellie - ainda é a primeira pessoa que eu considerei boa o suficiente para transformar. Ainda é a garota que assumiu a direção de um orfanato aos 15 anos. Aquela que bebeu sangue do meu machucado para que eu me sentisse confortável para beber o seu. A única coisa que mudou foi um bebê demoníaco e 150 anos de assassinatos.
Volto a arrumar a mala enquanto Ellie fica quieta, provavelmente ouvindo o blá, blá, blá de Deyah. Tenho poucos pertences. Além de um novo diário (os outros dois estão guardados em um cofre), celular e o colar da esmeralda (as outras joias estão divididas em 13 cofres em diversos lugares do mundo), não tenho mais nada que precise guardar. Pego a corrente e observo a luz refletindo na pedra verde. A pedra dos viajantes. Eu sempre espero que sua proteção nos ajude em dias como hoje. Esta noite pegamos os primeiros dos quatro voos que nos levarão para a Romênia, em um percurso complicado que eu e Ellie criamos. Os documentos falsos são novos e foram feitos com toda discrição que alguns milhões proporciona. Estamos tentando diminuir as chances de sermos perseguidas por alguém de Nova Orleans. Apesar dos boatos e de alguns vampiros que encontramos enquanto buscávamos a 13ª vampira saberem que estamos em busca de algum objetivo, ninguém sabe exatamente o que é. E é melhor assim, porque para sermos precisas, nem nós sabemos.
- Kat. - Ellie chama, prolongando a vogal, depois que eu guardo o colar da esmeralda na mala e fecho o zíper.
Me viro e ela está deitada na cama, com os pés sobre sua mala.
- Sim? - Digo, me sentando na beira da minha cama, de frente para ela.
- Eu sei que você não respondeu para Anika, por ter seus próprios motivos. Mas eu sou eu e de uma forma ou de outra, sou mãe de Pierre: Por que ainda carregamos ele a todo canto? Por que consideramos ele nosso prisioneiro, se os crimes dele já ficaram para trás há tanto tempo e ele não tem efeito nenhum sobre a guerra?
Suspiro. Pierre realmente incomoda todo mundo desse jeito? Por que querem se livrar dele tão facilmente?
- Você disse que você é você, então eu posso ser sincera com você, certo? - Digo, com cuidado.
- Claro.
O que eu disse sobre as mudanças de expressão: Posso ver os olhos dela faiscarem de interesse. O mesmo tom de gelo de sempre se transforma em um prisma, por meio segundo.
- Quando Pierre nasceu, eu disse a você que ele era o ser mais poderoso do mundo. Que era o primeiro bebê meio-íncubus desde a idade média. Seres como Pierre são humanos imortais, nascidos para destruir o que tocam e com o que se associam. Eles não seriam simplesmente dizimados por humanos normais e mortais. Foram destruídos porque o próprio Inferno não queria que eles continuassem se propagando e propagando sua existência. Foram destruídos, porque a existência de bebês-íncubos permitia que um fenômeno como o Réquiem aconteça. Que pessoas como você surgissem. Ellie, o próprio Inferno teme bebês como o que você deu à luz. Pierre continua conosco porque eu quero que ele veja isso, eu quero que ele descubra o que ainda pode se tornar, quão poderoso ele ainda pode ser. Assim como você, Pierre é de minha criação, é de minha posse. Eu o lapidei até ele se tornar o que é. Ele me traiu e nos deixou porque queria ser grande no Inferno, mas não sabia de algo que eu aprendi depois que minha mãe tentou a mesma coisa que ele: A única coisa que o Inferno sabe é escravizar, não honrar. Quanto às condições dele ao lado do Exército: ele só será prisioneiro enquanto continuar agindo como tal.