“Quando sangue jovem escapa,
promessas quebradas voam embora.”
Zella Day (Sweet Ophelia)
As Crônicas de Kat:
Stregoica
Bucareste, Romênia
14 de dezembro de 2015
Olívia
- Ceea
ce aduce o astfel de fată frumoasă pentru că mică bucată de lume uitată de Dumnezeu?
- O taxista pergunta, quando viramos a esquina em uma rua poeirenta no subúrbio
da cidade.
Eu
estava olhando para a janela, vendo as ruas bonitas e exóticas da capital da
Romênia. Eu sou muito mais nova do que os restos das meninas do clã. Eu não
estava com elas durante a busca pela 13ª vampira e não conheci diversos lugares
do mundo, tentando encontrar alguém. Nasci no novo milênio e estou no Exército
há 2 anos. Viagens para lugares como a Romênia ainda fazem meu coração morto
disparar e meus olhos brilharem como uma garotinha boba.
-
Desculpe? - Digo, tentando prestar atenção na conversa, mesmo sem vontade.
Temos
regras: A cada país em que estamos nos comunicamos apenas no idioma local - a
menos que seja necessário esconder o que estamos conversando em uma emergência.
Eu tenho certa facilidade em aprender idiomas novos, mas não com tanta rapidez
quando Kat. O inglês, aprendi por osmose nos dois anos que moramos nos Estados
Unidos. O romeno foi ensinado para mim em aulas intensivas proporcionadas por
Kat, mas ele não vem naturalmente. Se eu não prestar atenção suficiente em cada
palavra em meio aos sotaques carregados eu acabo me perdendo. Kat garante que
uma hora todo idioma fluirá e me lembra que aprendeu a maioria dos que sabe
quando ainda era humana, em 10 anos de vida.
-
Eu perguntei o que traz uma menina tão bonita para esse pedacinho de mundo
esquecido por Deus. - Ele repete, animadamente.
-
Ah, viagem de família. Vim me encontrar com parentes. - Me surpreendo com como
a mentira sai fácil. Coisas que a gente aprende com o Exército: distorcer a
verdade de uma forma tão complexa, que a mentira se torna parte dela.
-
Eles estão no endereço que você me deu?
Eu
sei que ele está perguntando por educação, mas eu não gosto de como ele é
enxerido. Eu pareço ter 13 anos (Mas na verdade tenho 15, grande diferença) e
sou uma estrangeira em um país estranho. E ele é um homem desconhecido e sabe
para onde quero ir. Eu sei me defender, mas ele não sabe disso. Será que não
tem como se calar e parar de ser chato?
-
Sim. - Digo, simplesmente, voltando observar a cidade pela janela.
Algo
no meu tom faz com que ele se cale. Viajamos por mais dez minutos na estrada
maltratada que levava até o endereço que Kat me entregou. Quando paramos na
frente, o motorista anuncia o preço da viagem com um sorriso no rosto. Entrego
uma nota maior e digo que fique com o troco. Assim que desço do carro e espero
que ele saia, me dou conta de que falei em inglês. Mas mesmo que ele tenha notado
o erro não faz nada a respeito, a língua do dinheiro fala mais alto.
Encaro
o prédio malconservado antes de entrar. Tem três andares e a tinta desbotadas
com palavras em russo mostra que ele foi usado como comércio anteriormente. Graças
às minhas irmãs, as 10 janelas da parte da frente estão abertas, assim como a
porta, de onde vez uma risada tranquila que reconheço como a de Sophie. Este
foi o único lugar a venda que Kat considerou seguro o suficiente para que nós
morássemos, depois de quase dois meses divididas em quatro hotéis em diversos
pontos da cidade. Foi uma tática para procurar pela família de Anika e de Deyah
mais amplamente, mas até o momento não chegamos nem perto de uma pista. Já
esperávamos por isso, na verdade, foi até surpreendente o fato do feitiço de
localização de Sophie ter dado certo de primeira. Foi fácil demais e nada nunca
vem assim tão fácil. É quase como se tivéssemos vindo para a Romênia em uma
espécie de armadilha. Balanço a cabeça, tentando não atrair as sombras à
espreita e entro no prédio que quase parece abandonado.
-
Liv! Você demorou. - Sophie exclama me puxando pelo braço para dentro de casa.
- Teremos um quarto cada uma outra vez. Vem! Vou te mostrar o seu.
Tenho
que ignorar o erro dela ao não se dar conta de que eu nunca tive um quarto só
para mim desde que entrei no Exército, porque sou obrigada a segui-la até o
primeiro andar. Mesmo que Sophie sempre pareça ser a mais cheia de vida do
Exército (possivelmente porque ela é), eu me surpreendo com toda essa animação.
O
interior da casa não é o que eu esperava. De alguma forma, as vampiras que
chegaram primeiro conseguiram transformar o prédio decadente em algo mesmo que
minimamente elegante. A sala por onde entrei tinha recebido uma camada de tinta
branca e as duas janelas que ficavam viradas para os fundos da casa ganharam
cortinas pesadas. Os corredores e as escadas não foram pintados ou reformados,
mas não estavam tão decadentes quanto a fachada. Os dois andares de cima são
formados de corredores com portas dos dois lados. Sophie me conduz até o
terceiro e último andar e ao encontrar outro corredor, finalmente me dou conta
de que o lugar era usado como um hotel antigamente. Imagino que tenha pelo
menos 20 quartos. No último andar, passo pelas portas abertas de Miranda,
Valentina, Anika e finalmente paramos no meu quarto. Existem mais duas portas
abertas que pela lógica deduzo Kat e Charlottie. Há grandes chances de que
Pierre fique por aqui também, mas as outras portas do andar ficam fechadas.
-
Aqui estamos. - Sophie diz, abrindo a porta. - Espero que você goste e se sinta
confortável. Se quiser comprar qualquer coisa para deixar ainda mais
confortável, eu e algumas das meninas vamos à cidade amanhã. Vou deixar você em
paz.
E
antes que eu diga qualquer coisa, ela se vira e sai quase saltitante pelo
corredor. Levando em consideração que a última cidade que deixou Sophie feliz
foi Nova Orleans, eu imagino o que tem de tão animador em Bucareste para deixar
a vampira com alma tão animada. Suspiro e entro no quarto que foi separado para
mim.
As
malas que enviei para a casa no dia anterior estão no chão, próximas a um
armário de carvalho antigo. Uma porta aberta à minha direita revela um
banheiro, sem nenhum cheiro gritante (ao contrário da maior parte dos banheiros
das casas que alugamos anteriormente). Existe uma mesa de leitura, com o bocal
de uma luminária de parede se sobressaindo. Também há um espaço chamativo com
um suporte de TV. Finalmente, uma cama de dossel com cortinas em tom pastel de
rosa fica no meio do quarto, se juntando com uma tapeçaria antiga para dar uma
impressão mais clássica ao quarto. A cama parece o lugar mais confortável do
mundo, então tiro os sapatos e me jogo sobre ela.
Descubro
que o dossel é decorado com pequenas imagens bordadas, como uma tapeçaria.
Posso perceber que essas gravuras contam uma história, mas estou cansada demais
para tentar entender o que ela diz. Eu sinto como se tivesse viajado durante
todos esses dois meses em que estamos na Romênia e agora finalmente tivesse
chegado ao destino final. Mas ao contrário das outras vezes em que nos
instalamos em uma cidade, dessa vez não existirá o tédio que se instalava após
algumas semanas. Estamos em guerra e é um verdadeiro milagre que nenhum ataque
além da maldição de Ellie tenha acontecido. Precisamos encontrar a bruxa
herdeira da família de Deyah o mais rápido possível e lançarmos ofensiva o
quanto antes. Suspiro outra vez e fecho os olhos:
-
Que comece a decida até o Inferno.
25 de dezembro
Naomi
Bato
a pá contra a cova recém-coberta uma última vez e respiro fundo. Era de se
esperar que a atividade física me deixasse mais aquecida, mas assim que deixo a
pá cair, aperto o casaco com mais força em volta da pele. Não é o maior frio
que já enfrentei, mas é frio suficiente para que eu repense o plano que
desenvolvi para celebrar o Natal. Logo em seguida, me convenço a dar
prosseguimento à ideia. O frio, depois de um começo de inverno tão fraco é uma
vantagem, poucas pessoas na rua... Poucas testemunhas. É perfeito para o
presente que queria dar a Olivia.
Volto
ao prédio onde moramos. A porta está entreaberta e uma cálida luz amarela vem
da entrada. Charlottie e Tatiana conversam distraidamente sentadas no sofá da
sala e eu descubro que a luz vem da lareira. De novo, o clima acolhedor faz com
que eu sinta vontade de não deixar a casa outra vez e apenas me deitar na
frente do fogo com um dos livros que ganhei de aniversário. Me belisco, eu
preciso fazer isso. Deixo o casaco na entrada e vou pulando até o andar mais
alto. Passo por diversas decorações de Natal, colocadas por Sophie e Ellie e
ouço risadas vindas dos corredores.
Todo
Natal desde 97 é a mesma coisa: Dividimos 2 vítimas quentes que foram vigiadas
por semanas e que temos certeza de que o desaparecimento não causaria grande
comoção. Depois do sangue quente da ceia de Natal, trocamos presentes que em
pouco tempo vão para os cofres, a menos que sejam úteis o suficiente para
continuar conosco. É fraco e chato. Nós não costumávamos ter limites de vítimas
em dezembro e eu já me cansei de ganhar joias que vou guardar o tempo todo. Ter
nascido em dezembro dobra os presentes entediantes. Você pega uns números em um
computador, transforma em coisas brilhantes e devolve para um cofre depois de
um tempo. Sou muito menos vaidosa que isso. Muito menos cerimonial também. Eu
quero emoção, sinto falta do perigo. Por isso tive a ideia de fazer um pequeno
passeio por Bucareste hoje à noite, buscar pelo que Kat chamou de diversão a la strigoi. Mas não sou louca o
suficiente para procurar por confusão sozinha, preciso de alguém comigo. E
claro, escolhi a única pessoa que em 2 anos no exército ainda não sentiu o
gostinho de correr riscos ou de matar alguém sozinha.
Bato
na porta de Olívia e ela responde com um “entra” abafado. Quando abro a porta,
minha animação quase murcha, porque Anika está com ela, as duas debruçadas
sobre um computador que Kat comprou para a dona do quarto. Depois me dou conta
de que é Anika. Se for para convencer
mais alguém a procurar perigo que seja uma vampira de Ellie.
-
Ah, oi, Naomi. - Olívia diz tirando os olhos do computador, por meio segundo
antes de voltar a digitar.
Anika,
por outro lado, não tira os olhos de mim enquanto fecho a porta às minhas
costas e vou até a beirada da cama espiar o que elas estão fazendo.
-
Algum sucesso na busca online? - Pergunto protelando a ideia ao máximo.
-
Nada. - Anika responde. - Encontramos 540 famílias Litting e nenhuma delas é a
de Bianka e de Adelina. Não declarada pelo menos, algumas árvores genealógicas
não chegam até lá.
Ergo
a sobrancelha e aponto para a tela.
-
Vocês acham que uma família de bruxas registraria a árvore genealógica em um
site?
- A
família de Anika? Definitivamente. - Olívia diz, fazendo Anika concordar com a
cabeça. Eu rio e Olívia começa a desligar o computador. - Mas você veio até
aqui apenas para descobrir o que estamos fazendo?
Suspiro.
-
Não, na verdade eu vim aqui por causa de uma ideia que eu tive enquanto
enterrava os restos da ceia de Natal. - Faço uma pausa para avaliar a
audiência. Anika ajeita a postura. Liv desconecta o celular do notebook e
começa a brincar com a ponta do cabo. - Eu estava pensando no Natal de 1958,
Annie.
Os
olhos de Anika faíscam.
- O
ataque à prefeitura.
-
Cinquenta membros do governo mortos na frente de seguranças armados e
hipnotizados. - Explico para Olívia. - Nós iriamos mata-los também, mas
preferimos deixá-los vivos e sem certeza do que aconteceu. Eles foram julgados
pelos assassinatos, é claro.
-
Aquilo sim, foi uma festa de Natal. - A lembrança é tão vívida que Anika chega
a lamber os lábios.
-
Então você também acha que essas festas de Natal têm sido patéticas?
- É
claro. Comedimento é a coisa menos Kat do mundo. Quase me faz querer que não
tivéssemos nos unido.
-
Ela está nos protegendo. - Olívia diz, defendendo a criadora - Garantindo que
não morramos de uma forma ridícula, antes do objetivo ser alcançado.
-
Mas somos vampiras! - Exclamo - Qual o sentido de estar viva se a vida é
entediante?
-
Nós estamos em guerra.
-
Mas só Sophie, Ellie e Kat tem tido algum tipo de ação na guerra até agora. O
resto de nós está sufocando no próprio tédio. Eu tenho quase desejado que o
Inferno me mate agora.
Anika
e Olívia se entreolham quando eu termino minha frase em um suspiro.
-
Onde você está querendo chegar, Naomi? - Anika pergunta, franzindo a testa
delicada.
Deixo
a cabeça pender para um lado.
- É
Natal, estamos na Romênia e sentimos falta de comemorações de Natal reais, Anika.
Por que simplesmente não saímos e aproveitamos? Só por esta noite.
- É
perigoso, Naomi.
- É
isso que faz de tudo interessante. E é por isso que eu vim convidar Olívia. Em
2 anos no Exército, ela só matou quando foi transformada. Ela precisa de ao
menos um momento como o que nós tínhamos. - Faço uma pausa, mas nenhuma das
duas respondem, então continuo: - Não estou falando em um massacre, estava
pensando em um ataque a algumas pessoas que se aventurarem a sair da rua nesse
frio. É a Romênia, eles sabem sobre vampiros e sabem que isso acontece.
- E
se o Inferno lançar o primeiro ataque? - Olívia solta. Ela está quase
convencida, mas hesita por puro instinto de autoproteção.
- O
que eles vão fazer? Não é como se um demônio pudesse se materializar e nos
atacar fisicamente. E enquanto estivermos matando e destruindo, estamos vivendo
sob as regras deles, então eles não iriam destruir nossas almas.
Uma
última troca de olhares acontece à minha frente. Então as duas se colocam de
pé.
-
Onde iremos? - Olívia pergunta.
Sorrio.
-
Esperaremos a casa cair no sono e saímos de casa o mais sorrateiramente
possível. Escolhemos uma rua, em qualquer parte da cidade que pareça segura,
quem passar pela rua é presa voluntária.
-
Sophie não tem um feitiço protegendo a casa? - Olívia pergunta sendo
irritantemente lógica.
-
Só vai ser um problema quando nós voltarmos para casa. - Digo, dando de ombros
- Você não pode possivelmente estar com medo de receber uma bronca de Kat.
-
Não é medo. Mas também não considero broncas de Kat uma das coisas mais
agradáveis do mundo.
-
Se pensarmos bem, Kat provavelmente está esperando por isso há um tempinho. -
Anika diz, olhando para nós duas.
É
verdade. A tensão causada pelo tédio e pelos segredos de Kat já pode ser notada
há algum tempo. Vampiros e autocontrole não combinam e Kat sabe muito bem
disso. Até mesmo os laços que nos mantém leais se afrouxam quando nossos
instintos precisam ser controlados com tanta força de vontade. Quando Sophie se
voltou contra Ellie, algumas de nós tínhamos certeza de que o Exército não
sobreviveria ao baque. Mas elas logo voltaram ao velho companheirismo e aos
antigos segredos. Agora as vampiras mais velhas estão mais ligadas do que nunca
e o resto de nós observa isso nada satisfeitas. É claro que Kat sabe que em
algum momento alguém se revoltará contra suas regras.
-
Não é como se nós estivéssemos desertando. - Digo, esperando que agora esteja
tudo certo. - Combinado então? Assim que a casa ficar completamente silenciosa.
Olívia
solta um suspiro longo.
-
Pode contar comigo. - Diz, delicadamente.
Anika
sorri.
-
Comigo também.
Anika
Nunca
fui boa em esperar. E depois de me tornar vampira - um ser com uma propensão a
se obcecar por qualquer coisa, por menor que seja - piorei muito. Depois que
deixo o quarto de Olívia, nem estou mais pensando nas diversas árvores
genealógicas que consultei ao seu lado. Queria que existisse uma forma mais
simples de encontrar minha família, mas aparentemente não existe. Mas afasto o
passamento antes que ele se instale e quando chego ao meu quarto, deito na cama
e espero fixamente encarando o teto enquanto a casa começa a ficar silênciosa.
Horas
se passam e eu não me distraio. Pintei o quarto logo depois de me mudar e meus
olhos se focam na tinta rosa das paredes, iluminadas apenas pela luz da lua.
Consigo ouvir cada quarto sendo tomado por um silêncio sepulcral. Se prestar
atenção suficiente, descubro até mesmo qual dos quartos está ficando quieto
agora. O de Sophie é o mais fácil de perceber - a risada dela vai diminuindo
até desaparecer. O de cada uma das gêmeas também, elas sempre fazem muito
barulho e quando dormem, o silêncio parece dominar a casa a partir delas. Aos
poucos, tudo que se ouve são os rangidos da casa e o vento corrente lá fora.
Deixo um bom tempo passar antes de ter coragem de me levantar da cama e deixar
o quarto.
Não
ousamos sequer enviar mensagens uma para as outras, por medo de permitir que
qualquer ruído ou luz chame atenção. Olívia me espera na beira da escada e encontramos
Naomi no andar abaixo do nosso. Nenhum sinal é necessário para que nos sigamos
até o térreo. Nos atentamos a cada sombra e prestamos atenção no som das
respirações de nossas companheiras, vindos do quarto de cima. Quando alcançamos
a sala, Naomi para e checa o lugar por medo de que alguém tenha ficado para
trás ou caído no sono no sofá, mas além da fumaça que sai da lareira
recentemente apagada, nada parece se mexer. Finalmente andamos até saída e
durante o momento de última hesitação antes de abrir a porta barulhenta é que
parece que todos os nossos planos estão prestes a desmoronar:
-
Vocês três acham que eu sou estúpida? - A voz de Kat surge bem do nosso lado,
alcançando um dos casacos para cobrir a metamorfose recém revertida.
-
Kat, nós... - Olívia começa.
Mas
Naomi a interrompe.
-
Foi minha ideia. E sinceramente não vejo qual o grande problema nela.
-
Eu sei disso, meu quarto é ao lado do de Olívia. Só estou decepcionada por
vocês não terem dito nada sobre o plano para mim.
Naomi
bufa.
-
Eu não costumo fazer propostas que eu sei que serão recusadas.
-
Não faça suposições, Naomi. Você não tem como saber o que eu diria.
-
Eu sei o que suas regras dizem.
-
As regras do Exército tiveram diversas exceções em Nova Orleans, não entendo
porque não teriam agora.
-
Você está dizendo...? - Digo, olhando com cuidado.
Kat
pisca os olhos verdes e termina de abotoar o casaco.
-
Estou dizendo que ninguém precisa saber. - Diz e abre a porta, saindo para a
ventania.
Nós
três que ficamos para trás nos entreolhamos, duvidando que Kat simplesmente
tenha querido fazer parte do plano assim, sem condições. Naomi dá de ombros e
sai. A verdade é que de uma forma ou de outra, não há nada que possamos fazer
sobre o que quer que Kat queira. Ela é dona de si. Olívia morde o lábio e segue
Naomi. Eu vou em seguida e fecho a porta atrás de mim.
Em
pouco tempo estamos na estrada de terra iluminada pela lua cheia. À exceção de
Kat, que usa apenas um casaco felpudo que chega a seus pés, todas nós
esquecemos de pegar casacos no cabideiro. Mas o frio cortante não me faz tremer
ou hesitar. Pelo contrário, me traz uma sensação de confiança, lembranças
antigas começam a aflorar. A calça jeans colada a meu corpo não lembra em nada
os vestidos costurados por Ellie com tecidos roubados, mas o frio atravessa o
tecido dela, como faria com eles e me faz desejar sangue quente mais do que
nunca.
-
Sabe o que é estranho? - Kat diz, após um tempo. São os passos lentos dela que
atrasam nossa viagem até Bucareste e ela parece protelar de propósito. - Eu
tenho certas lembranças dessa estrada nos limites de Bucareste, mas não consigo
me lembrar do que exatamente fiz aqui.
-
Você provavelmente cometeu algum tipo de festim de sangue aqui, em uma das
festinhas do clã romeno. - Naomi resmunga, esfregando os braços. - Ou escapou
de uma delas por aqui.
-
Não, acho que não. Eu me lembro de todo mundo que matei, Naomi.
-
Quer dizer que você pode me dizer o
número? - Naomi pergunta, com um sorriso sarcástico.
Kat
sorri e por um instante as presas, apenas um pouco mais claras que a pele
pálida, brilham sobre a boca de botão cor de rosa.
-
Não, eu não saberia dizer o número. Mas eu me lembro de seu rosto, de onde
vieram, como os matei. Se soubesse alguma coisa sobre eles, me lembro disso
também. Eu posso ouvir seus gritos... Eu evoco
seus gritos à noite quando não consigo dormir. Ah, eu posso sentir o cheiro
de sangue - o vigor dessa existência vigília. O prazer em destruir. O poder de
roubar vidas para manter a vida eterna. Vocês já pararam para pensar que agimos
como deuses? Cada pessoa é um universo inteiro, mesmo que dentro de um ser tão
frágil. Uma vida construída a partir de conexões. Uma criatura única no universo
que nunca existiu e que nunca voltará a existir. Um ser cujas palavras são
capazes de construir um mundo e cujas ações são capazes de destruí-lo. E nós, com
uma mordida e alguns segundos, somos capazes de destruir e apagar tudo isso. É
por isso que gosto de transformar assassinatos em arte... Sophie é a única que
parece me compreender. Eu sei a importância do que mato, o significado do que
destruo. E me sinto tão poderosa ao saber dessas mortes, ao saber do meu poder
sobre criaturas tão magníficas. Da minha superioridade sobre alguns seres. AAh,
se eu sentisse poderia me sentir grata à minha mãe. Mas eu me pergunto como
irei me sentir quando tudo terminar. Quando minha alma voltar e eu me tornar um
ser consciente. Quando não existir mais prazer em destruir.
Nós
estávamos ouvindo o discurso de Kat como se ela estivesse recitando um feitiço
longo e encantador - então quando ela faz essa pausa abrupta, nós paramos até
de andar. Kat, que estava andando em nossa frente e tinha as costas observadas
por mim, se vira assim que deixa de ouvir o som dos nossos passos e nos
observa. Por um instante estamos presas em suas palavras, a necessidade de
destruir maior que nunca, a vontade de sair dali e transformar Bucareste em
cidade fantasma nos queimando. Mas Naomi sai do encanto e deixa as frases
finais tomarem conta da perspectiva que teve sobre o que Kat disse:
-
Onde você quer chegar, Kat? - Pergunta, fazendo com que eu e Olívia a
encaremos.
O
rosto de Kat escurece e seu olhar assume o tom mais sombrio que poderia ter:
- Os
3 mandamentos do Inferno: Multiplicar. Destruir. Manter-se longe. Nossa
necessidade de destruir não é natural, não é parte de quem deveríamos ser. É um
prazer cruel. É um prazer viciante. Mas foi uma ordem da força contra a qual
estamos lutando. Não destruir, não matar,
é nossa primeira forma de revolta. Nos conter. Sobreviver por nós mesmas é
nossa primeira forma de ataque. Não são regras, meninas. Foi uma ordem de
guerra.
Assim
que a boca de Kat se fecha, a luz da lua desaparece. Olhando para cima, vejo
que uma nuvem gigantesca e tão escura quanto petróleo passou na frente da lua
cheia. Agora, só as estrelas iluminam à noite. Consigo enxergar os rostos das
meninas que estão comigo, mas não consigo ver seus olhos com a mesma clareza.
Kat ergue o olhar para onde eu acabo de olhar e pragueja em alemão. Naomi, que
até então se mantinha nos limites da firmeza, estremece.
- Nós
deveríamos voltar para casa? - Ela pergunta, com um fiapo de voz.
Kat
não responde até que a nuvem comece a se dissipar e a luz da lua volte a
iluminar a estrada. Quando seu olhar volta a Naomi, eu consigo ver seus olhos
faiscarem.
-
Não seja boba. É Natal e se eu disse que nós iriamos, nós iremos. Mas nunca
mais desobedeça uma ordem cuja razão você desconhece. Se eu mantenho vocês no escuro,
é para a sua própria proteção e se eu digo que deveriam fazer algo é porque eu
quero manter vocês por perto. - Ela se vira e aponta para a estrada - Agora
vamos. Se demorarmos mais estará tarde demais para que alguém apareça na rua.
Ela
toma a dianteira e com os ânimos afetados de todas as formas possíveis a
seguimos. Acho que rebeldia tem mais efeitos em vampiros do que a necessidade
de sangue. No momento. Se a situação fosse diferente, se não tivéssemos
consumido sangue quente no dia anterior, talvez o discurso de Kat não nos
afetasse tão profundamente, mas a verdade é que o plano de Naomi era uma
espécie de rebelião que foi frustrada por uma lógica tão simples que deveríamos
ter percebido. Parece que o Exército esqueceu quem é o verdadeiro inimigo.
Chegamos
a Bucareste cerca de meia hora depois e logo escolhemos uma rua deserta onde
ficar esperando. Kat volta a se transformar em um gatinho e começa a andar para
cima e para baixo procurando por possíveis presas. Naomi pega o casaco felpudo
e coloca sobre os próprios ombros. Parece derrotada.
-
Desculpa ter enfiado vocês nessa. - Solta.
-
Bem, você não se sente realmente culpada.
- Digo, criando vapor no ar com a respiração - Além disso, você só nos
convenceu porque nós duvidamos de Kat e do fato de ela ter intenções positivas.
Sucumbimos à necessidade de destruir, como os pequenos monstros que somos. E
esquecemos que lutar contra imposições do Inferno é justamente nosso objetivo.
Naomi
concorda com a cabeça, mas não diz mais nada para não ser forçada a concordar
com Kat. Bom saber que ela ainda tem algum orgulho.
Alguns
minutos de silêncio depois, justo quando Olívia está prestes a cair no sono, um
pequeno miado anuncia que tem alguém se aproximando. Kat volta até nós e se
esgueira para dentro do casaco entregue por Naomi, antes que três sombras tomem
a rua. Aos poucos notamos os vultos entrarem na rua vazia: um homem, uma mulher
e um bolo de casacos que parece uma garotinha.
-
Vão em frente - Kat diz com a voz rouca - Eu fico com um próximo passante.
Assentimos.
O ataque é rápido e sem muitas propagações. Exceto quando tento me aproximar da
garotinha. Ao ver os pais sendo atacados ela grita e com medo de que ela acorde
toda a vizinhança eu vou até ela, sussurrando uma canção de ninar. Quando tiro
seu capuz, porém, sou surpreendida. O choque é tão grande que enquanto encaro
as bochechas rosadas e os olhos castanhos escuros e enormes, eu acabo
afrouxando a mão em seu braço o que a faz fugir de mim e correr até o fim da
rua. Sou pega de surpresa e não a persigo, mas me viro para Kat para saber se
ela viu o que eu vi.
-
VAI ATRÁS DELA! - Kat berra com os olhos arregalados.
É
como se minha mente tivesse um estalo e eu começo a correr, atrás do vulto que
se movimenta como se suas pernas fossem 3 vezes mais longas do que são. Eu
preciso alcança-la, preciso pegá-la de volta e leva-la até o covil do Exército.
Essa garota seria a única forma de nos redimir das escolhas feitas
precipitadamente e de encontrar uma justificativa plausível para esta noite.
Porque seu rosto é igualzinho ao meu.
7 de janeiro de 2016
Juliana
-
Como uma criança pequena desaparece no ar da noite? - Louise diz com um bufo,
se jogando contra o meu colchão.
Eu
abro as cortinas e permito que o sol invada o quarto.
-
Ela pode ser uma bruxa poderosa. - Digo dando de ombros.
Louise
se senta na cama e eu a empurro para me sentar ao seu lado.
- Pode ser? - Ela pergunta erguendo uma
sobrancelha - Quais são as chances de uma garota descrita como igual a Anika
não ser a bruxa herdeira da linhagem de Deyah?
Suspiro
e pego o braço dela para brincar com a pulseirinha de prata.
-
Não sei. - Digo, quando ela começa a rir ao sentir cócegas - Mas espero que ela
tenha uma irmã mais velha. Imagina quão ferradas estaremos se uma garota de
cerca de 8 anos for responsável por nossa entrada no Inferno?
-
Pensei que Kat tivesse ensinado você a não duvidar de garotinhas.
Eu
rio.
-
Kat não é uma garotinha. Ela foi transformada quando era uma, mas deixou de ser
há muito tempo.
-
Ainda assim, não quero subestimar essa garota. - Louise diz, decidida - Até
porque se ela desapareceu na frente dos olhos de Anika e ainda não foi
encontrada depois de 2 semanas, ela com certeza tem algum tipo de poder agindo
a seu favor.
Solto
seu braço e ela mesma começa a brincar com a pulseirinha. Cruzo as pernas sobre
a cama.
-
Você provavelmente está certa. - Digo - Mas eu ainda não acredito que Naomi,
Anika e Olívia realmente fizeram o que fizeram.
-
Por que não? Todo mundo aqui tinha um desejo secreto do tipo.
Olho
no fundo dos olhos dela.
-
Nós somos um Exército, Lou. Estamos ligadas por muito mais que uma
transformação ou lealdade normal. Nós compramos uma briga muito séria, da qual
até os vencedores podem sair perdendo. A ação de uma afeta o grupo inteiro.
Elas não foram corajosas ou ousadas - elas foram terrivelmente imprudentes e
sem consideração.
-
Elas são vampiras.
- E
qual será a desculpa delas quando recuperarmos nossas almas? Não é sobre ser
indiferente. É sobre ser burra. A própria Anika admitiu que não valeu a pena.
Ou melhor, só valeu por encontrarem a garotinha, que ainda assim perderam. -
Suspiro - Se elas ao menos tivessem deixado os pais da menina vivos.
Mas
Louise continua tentando defende-las.
-
Elas só souberam quem estavam matando tarde demais.
- E
assim acabaram com a nossa provável única chance de vencer a guerra. As chances
de que uma garotinha ajude as pessoas que mataram seus pais são... - Um grito
no andar inferior me cala.
Desde
que Kat convocou todas nós para uma conversa, na manhã depois do dia de Natal,
a casa inteira assumiu um silêncio respeitoso. É como se o fato de Kat ter sido
sincera sobre suas regras e ter falado sobre o que Naomi, Olívia e Anika
fizeram, tivesse feito com que cada uma de nós assumisse a solenidade de um
soldado. O clima de guerra tivesse tomou conta de nossos ossos e da fundação da
casa. Agora estamos de olho na missão e nada além dela.
Eu
e Louise nos entreolhamos e descemos juntas até a direção do grito. Pareceu de
certa forma inumano, e só quando chegamos à entrada da casa é que descobrimos
que ele vinha de Pierre. Ele grita repetidamente, como se estivesse sendo
apunhalado diversas vezes. E apesar de estar na soleira da porta e não ter
ninguém a menos de cinco passos de onde ele está, sua blusa azul está empapada
com uma mancha de sangue que não para de crescer e se cola contra a pele.
- O
que aconteceu? - Ouço Louise perguntar a alguém à sua direita.
-
Não sei, ele veio pela estrada gritando e chegou até aqui em lágrimas e sangue.
- Ouço Sophie responder.
Noto
que Kat, que acabou de se enfiar no meio do grupo de vampiras que observam o
ataque a Pierre atônitas, olha para Sophie quando ela diz isso. Em seguida
segue até Pierre e rasga sua camiseta, a arrancando de uma vez só. Com um
último grito de dor que reverbera pela sala, Pierre para de gritar. Kat usa a
blusa rasgada como pano, correndo para esfregar o sangue que gruda no peito de
Pierre, como se impedisse a ferida de fechar. Por um segundo não entendemos o
que está acontecendo, mas de repente o sangue fica mais claro na pele e a letra
N aparece no canto esquerdo. A letra E surge em seguida, de repente um 7
sangrento começa a aparecer no meio da barriga de Pierre. Sophie reage antes do
resto e corre até a cozinha, voltando com um jarro de água nas mãos que atira
em Pierre quando Kat dá um passo para trás. O sangue escuro escorre pelo tronco
de Pierre, sujando suas calças de um tom quase marrom. Sua pele já começou a
cicatrizar, mas conseguimos ver claramente a mensagem antes que ela desapareça
por definitivo:
Ne întâlnim la ora 7 în piața
principal
Nos encontramos às 7h
na praça principal.
Eleanor
-
Como você sabia que o tinha uma mensagem escrita no peito dele? - Pergunto,
seguindo Kat com os olhos.
Ela
anda pela sala dramaticamente, enquanto espera que todas as meninas fiquem
prontas. Não está nervosa, mas está impaciente. Eu estou apenas aliviada que a
busca esteja chegando ao fim.
-
Não sabia. - Kat responde. - Mas eu sabia que aquilo não era trabalho do
Inferno. Era muito mal feito e muito bem executado ao mesmo tempo. Então eu fui
em frente e tentei descobrir o que aquilo significava e de onde o machucado
vinha.
-
Certo.
Kat
para de andar e encara o corpo estirado no sofá ao meu lado.
-
Eu queria que ele acordasse antes que precisássemos sair. - Diz, suspirando. -
Duvido que ele saiba dizer quem fez isso com ele, mas se ao menos houvesse
alguma pista.
- Você
não acha que foi a bruxa herdeira de Deyah?
- A
dedução geral é de que foi ela, mas não posso ter certeza absoluta de que foi.
Mas mesmo que tenha sido ela, ela não precisava atacar o garoto que não tem
nada a ver com isso de uma forma tão nojenta e bizarra.
-
Pierre é meio demônio e imortal. Nós matamos os pais dela!
-
Se ela se importa com isso tanto assim, talvez não esteja tão pronta para nos
ajudar. - Ela diz, dando de ombros.
-
Kat!
Uma
risada reverbera pelo corpo dela, fazendo o vestido balançar. Sophie aparece no
corredor, seguida por Tatiana e Charlottie.
-
Ah, droga, Kat está dando outra daquelas estranhas risadas nervosas - Solta,
revirando os olhos - Isso não vai acabar nada bem.
-
Cadê o resto de vocês? - Kat pergunta, ficado séria.
-
Descendo - Tatiana responde - Em breve estarão todas aqui.
-
Já são quase 18 horas. Se não estiverem todas aqui em breve nós nos atrasaremos
para chegar à piata e eu tenho quase
certeza de que a pessoa que fez aquilo no corpo de Pierre não vai ficar nada
feliz com atrasos.
-
Pelo amor de Deus, Katerina. Fique calma. - Sophie diz. - E falando em Pierre,
esse saco de ossos ainda não acordou? Ele não consegue ser de ajuda nem quando
é o único que pode fazer isso. Posso? - Quando ela pergunta isso, está parada
ao lado de Pierre, com o dedo ameaçadoramente próximo do rosto dele.
-
Não, você só vai atrasar o processo de cura. - Kat responde, fazendo um sinal
com a mão.
Sophie
suspira e se senta no canto do sofá, permitindo que a perna toque o pé de
Pierre, fazendo um chiado. Tatiana e Charlottie permanecem de pé, cada uma em
um celular. O relógio cuco que Kat comprou no natal toca as 18 horas fazendo
com que eu dê um salto no sofá.
-
SEIS HORAS! EU QUERO VOCÊS OITO AQUI EMBAIXO IMEDIATAMENTE OU EU MANDO VOCÊS DE
PRESENTE PARA O INFERNO.
- E
você é a dramática do Exército. - Sophie ri, olhando para mim.
-
Ela vai ser uma bela vaca quando receber a alma de volta.
-
Eu sei, mal vejo a hora.
Eu
rio e ficamos caladas até que o resto das meninas chegue. Estão todas
solenemente silenciosas, mas eu consigo notar que estão bastante inquietas por
dentro. Todas nós temos as pedras no pescoço. Kat conta com os olhos quantas
somos e aponta para a porta.
-
Nós vamos andando. Todas nós precisamos de um pouco de tempo para pensar.
Com
um resmungo geral, deixamos a casa aos poucos e começamos a longa caminhada
pela estrada de terra. Valentina e Miranda vão à frete, despreocupadas. Naomi,
Anika e Olívia vão em seguida, com a mesma expressão desolada que vem
carregando há dias. Charlottie, Sophie e Louise conversam baixinho sobre algo
que não consigo ouvir. Juliana, Tatiana e Kaylee seguem atrás, em silêncio. E
finalmente, eu e Kat, na retaguarda, olhando cada uma delas em um silêncio
pensativo.
-
Você acha que o dia é hoje? - Kat pergunta depois de um tempo.
-
Dia de quê?
-
Não se faça de desentendida, Ellie.
Existe
um tom de insolência na voz dela, que me faz segurar um sorriso. Mas além
disso, não identifico nada. Sua voz soa firme como uma porta se fechando. Não
tem medo ou está ansiosa. Ela apenas quer que aconteça logo, ela quer fazer
alguma coisa.
-
Queria acreditar que sim. - Respondo - Mas eu duvido muito.
-
Você notou algum sinal ultimamente? - Ela continua, desta vez mordendo o lábio
inferior.
Eu
a observo com ainda mais afinco. Ela está usando um vestido creme e longo até
os pés. Ele é sem silhueta e as alças são de metal, deixando os braços nus. Ela
só usa uma sandália porque saiu de casa. Quando percebe que eu estou encarando,
levanta os olhos até os meus e o verde da esmeralda em seu colo faz seus olhos
parecerem estar pegando fogo.
-
Não. - Respondo, tentando ser tão firme quanto ela - Não desde o ano novo.
Mas
Kat nota a mudança em meu tom.
- O
que houve, Ellie? - Ela pergunta sem parar de andar ou de olhar para mim.
Suspiro.
-
Eu só estava pensando em como é 2016 e como é impossível ser exatamente como eu
era em vida, graças a tudo que aconteceu nos últimos 151 anos.
- E
isso é bom ou ruim? - Ela pergunta, distraidamente.
-
Você é uma praga, Kat. Desde que cruzou meu caminho não trouxe nada para mim
além de morte, destruição e sangue.
Ela
ergue a sobrancelha.
-
Isso não responde minha pergunta.
-
Porque eu não sei, Katerina. Eu ainda não decidi.
Ela ri, mas não diz mais nada. O sol já está quase
completamente posto, apenas um feixe de luz de amarela corta o céu. Isso tem
nos colocado para a cama cedo ultimamente - mesmo que para mim isso signifique
ficar embaixo das cobertas, encarando rachaduras no teto e falando com
fantasmas, sejam eles reais ou imaginários.
Não sei bem o porquê, mas diversos deles tem me procurado
ultimamente. Imagino que vivam uma vida solitária, já que pouquíssimas pessoas
no mundo inteiro podem ver e se comunicar com eles. Eles sequer podem ver uns
aos outros, exceto em algumas situações específicas. Depois de estar no Inferno
e conseguir escapar, eles estão prontos para muita conversa e os que conhecem a
lenda do Réquiem costumam me achar facilmente. Nas últimas semanas apenas
fantasmas desconhecidos me procuram. Eles normalmente querem saber algo sobre
mim, mas a necessidade deles de falar sobre si mesmos sempre se sobrepõe. Eu
costumo procurar por informações que possam me ajudar, mas é tudo tão pessoal
que eu tenho tendência a quase sentir pena deles - até me lembrar de que eles
escaparam do Inferno. Enquanto isso, Deyah geralmente está distante. Quando
aparece, fica próxima à minha janela, abrindo e fechando a boca por alguns
minutos e desistindo de dizer qualquer coisa. Eu e Sophie gostamos tanto do
fato dela ter se calado que nem queremos saber o porquê.
Nas
noites em que nem o espectro de Deyah, nem desconhecidos aparecem (geralmente
noites de lua cheia ou lua nova, quando os fantasmas costumam tentar uma chance
de conversar com a Morte), eu fico sozinha com meus próprios pensamentos. Em
uma tentativa desesperada de fugir de lembranças perturbadoras que me levariam
à loucura, eu tento me comunicar com minha alma. Depois de arder em agonia, ela
está se recuperando. Ainda existem diversas cicatrizes que podem abrir em uma
ferida sangrenta a qualquer minuto, mas eu as vejo como um mapa. Elas
significam alguma coisa, elas estão prontas para me ensinar algo, mas não
importa o quanto eu pense eu não consigo descobrir o que é. O conhecimento
parece estar guardado dentro de mim, esperando o momento certo para ser usado,
como todo o resto dele sempre esteve.
Quando
atingimos os limites de Bucareste, Kat olha o relógio do celular. Faltam 15
minutos para as 19 horas e ela suspira. Chegaremos à praça principal a tempo,
mas apenas se apressarmos o passo. Com um suspiro, ela toma a dianteira e faz
com que o Exército inteiro ande mais rápido, quase em marcha. Quanto mais nos
aproximamos, mais solene o Exército fica. Algumas pessoas nos observam
caminhar, estranhando a formação com que seguimos. As formas da piata começam a ser notadas: Bucareste
tem dezenas de praças, mas definimos a praça principal como a maior praça
próxima ao lugar onde os pais da garotinha foram mortos. Sophie olha para trás
no momento em que pisamos no círculo em que consiste a praça. Ela não precisa
dizer nada para que eu concorde com a cabeça e a siga até a frente do Exército:
somos as mais fortes aqui. Somos nós quem devemos proteger as outras onze.
Paramos
de andar e esperamos. Dois minutos para as 19h. Diversas pessoas correm de
volta para casa e optam por ignorar completamente as treze figuras assustadas,
em sua maioria com aparência de garotinhas. Algumas pessoas olham, mas não
dizem nada ou parecem perceber algo estranho. A bolha de proteção de Sophie
está ativa, mas ninguém diz nada. Um minuto. Estamos esperando que alguém nos
ataque. Esperando um feitiço direto ou um ataque físico. Estamos esperando que
uma de nós caia, que alguém se perca. Estamos esperando que um grito cortante
rasgue o céu e faça com que cada pessoa circulando a nossa volta morra. O que
quer que esperemos, esperamos algo grande, desesperado, assombroso.
Ao
invés disso, quando o relógio de uma igreja próxima começa a badalar as sete
horas, uma figura em vermelho e jeans que estava parada ao lado de uma estátua
desde que chegamos, anda até nós bem devagar. A garota para a cinco passos de
nós e nos observa em silêncio por um instante. Seu rosto é cortado pelas mais
diversas expressões. Me controlo para não estremecer quando Deyah surge ao meu
lado, mas percebo que ela estremece
no mesmo instante. Finalmente, ela fala:
-
Vejo que o garoto entregou meu recado.
-
Vejo que os corpos entregaram o nosso. - Kat diz.
Controlo
o grito surpreso de “Kat!” quando a dor corta o rosto da menina. Ela é uma
menina, mas não a garotinha que as meninas viram. A semelhança com Anika está
lá, mas não é tão óbvia quanto foi descrito. Ela tem os cabelos e a pele da
parente distante. Seus olhos também tem a mesma forma de amêndoa, mas são de um
lilás tão profundo que são intensos mesmo sob a luz amarela dos postes da
praça. Ela parece ter algo entre 16 e 18 anos e é da altura de Sophie. Ela é a
irmã mais velha da garotinha que vimos. Ela é a herdeira que torcíamos para
existir.
-
Meu nome é Persephone. - Diz, parecendo ouvir meus pensamentos sobre sua
aparência - E se vocês querem qualquer chance de vencer essa guerra ridícula,
precisam vir comigo.
Miranda
Seguimos
Persephone em silêncio até algumas quadras dali. Ela nos leva até uma casa
grande e antiga, de dois andares. Abre o portão delicadamente e espera que
todas nós estejamos lá dentro até entrar. Não gosto disso, Cianne me deixou com
certa insegurança sobe entrar em terreno desconhecido.
A
porta da frente da casa se abre para um salão amplo e de um dourado brilhante,
decorado de pinturas antigas. A garota fecha a porta atrás de nós e tira o
casaco. Faz um sinal para que a sigamos. Deixamos o salão largo por um corredor
e caminhamos em silêncio por uma série de portas. Em um momento, Persephone
para em frente a uma porta e dá três batidas delicadas:
-
Selene? - Chama, com a voz meio embargada. - Elas estão aqui.
Nós
treze nos entreolhamos. Noto que Sophie e Ellie se movem para mais perto de
Persephone, de uma forma quase imperceptível. Kat não para de encarar a garota
como se pudesse arrancar a cabeça dela do pescoço a qualquer momento. Depois de
um minuto de um suspense desolador, a porta se abre. A garotinha sobre quem
Anika e Kat tanto falaram sai do quarto. Ela é um espelho fiel de Anika, nem
mesmo uma filha se pareceria tanto. Naturalmente, Selene tem um aspecto mais
infantil, olhos menos marcados, uma inocência aparente. Mas em alguns anos,
elas terão o mesmo rosto.
Selene
nos observa com os olhos inchados e se encolhe em um casaco felpudo, antes de
grudar em Persephone. Persephone beija os cabelos da garotinha, antes de fazer
outro sinal para que continuemos a segui-la. A vontade de sussurrar algo a
Valentina me consome. Uma quantidade enlouquecedora de perguntas toma minha
mente e manter a solenidade que a situação parece exigir me toma mais energia
do que o que eu esperava.
Finalmente,
atingimos uma porta dupla, ao fim do corredor. Persephone a abre sem a menor
cerimônia. Lá dentro, o ambiente é completamente diferente do luxo do resto da
casa: parece o que seria uma sala de estudos, cinzenta, tomada de armários e de
carteiras. O que quebra o clima solene são as plantas rasteiras e flores que
tomam as paredes. As janelas amplas parecem concentrar a luz da lua em uma série
de carteiras específicas. A lua, inclusive, é completamente visível através
dessas janelas, mesmo sendo apenas no fiapo no céu. Para finalizar o clima
místico da sala, uma combinação de cristais está pendurada na entrada da porta.
Não se parece em nada com a cabana de Kat em Graz, mas é a comparação mais
próxima que meu cérebro faz.
Selene
se solta da irmã e entra na sala, respirando fundo o ar lá de dentro antes de
correr até um armário no fundo. Persephone observa a entrada da sala, parecendo
esperar por algo. Quando um clique silencioso parece atingi-la, ela dá um passo
à frente e respira fundo da mesma forma que Selene fez. É só depois que ela se
vira e diz que podemos entrar (deixando claro que precisamos de permissão para entrar)
e nós entramos na sala com cuidado que percebo porque as duas respiraram fundo:
O ar na sala é mais leve. Parece mágico, toma nossos pulmões como se pudéssemos
voar. A última de nós - Olívia - atravessa a soleira da porta e Persephone a
fecha com um sinal com as mãos.
-
Sentem-se no chão. - Ela diz, andando em direção a um dos armários. - Embaixo
da janela, mas sem se banharem pela luz da lua.
Obedecemos
sem muita opção porque a voz dela soa firme. Persephone não parece mais tão
miserável ou circunspecta quanto estava no caminho até aqui. Ela está em seu
elemento agora. Ela é tão dona de si quanto Bianka foi um dia. Nos sentamos em
um semicírculo, exatamente onde ela mandou e esperamos que ela volte. Sentadas
no chão é impossível ver onde Persephone está, mas posso ouvir sussurros e
risadinhas vindas de Selene. A espera mais uma vez me exaure. Quero falar,
gritar, fazer perguntas, fuçar cada canto dessa sala. Mas um olhar para nossa
líder, que balança a cabeça quando Ellie lhe sussurra algo, deixa claro que a
última coisa que devo fazer é me mexer. Estamos em formação. Não sou mais
Miranda. Sou a sexta vampira.
Persephone
finalmente volta. Agora está com um vestido negro que chega ao seus pés e um
colar cujo pingente forma um crucifixo com 12 pedras, encrustadas em uma
estrutura de prata. Nem preciso observar com muita atenção: são nossas pedras. Seus
braços estão nus e a tatuagem de uma lua crescente toma metade do antebraço
esquerdo. Ela se senta no espaço que deixamos para ela e Selene - agora sem o
casaco felpudo, mas sem vestes nobres como as da irmã - se senta ao seu lado.
Persephone e Kat se encaram por um instante. Estão se avaliando e comparando
expectativas, já que cada uma estava esperando para conhecer a outra há muito
tempo.
-
Não vou fingir que esta é uma reunião normal ou que eu estou completamente
animada e ansiosa para ajudar vocês. - Persephone começa, avaliando sua
audiência - Afinal, nós começamos nossas comunicações com o assassinato dos
meus pais. Gosto de pensar que sou alguém que sabe muito, mas infelizmente
ainda não desenvolvi a habilidade de ler mentes então preciso ouvir da boca de
vocês o que preciso: O que vocês sabem sobre a descida até o Inferno?
Todas
nós olhamos para Ellie, que estremece. Kat resolve tomar o controle da
situação, é claro:
-
Eu sei que a passagem acontece através de um evento celestial. Normalmente algo
grande, como um eclipse lunar que acontece uma vez a cada 70 anos, mas muitas
vezes pode ser algo costumeiro e frequente, como as auroras polares ou uma lua
minguante.
Mas
os olhos de Persephone repousaram em Ellie. Ela está mais interessada em nossas
reações do que em nossas palavras.
-
Você é Ellie, certo? - Pergunta. Seu olhar e sua voz se aprofundam ao mesmo
tempo - O Réquiem? - Ellie concorda com a cabeça, tentando controlar a si mesma
- Como vai a questão dos sentimentos?
- O
que você quer dizer? - Ellie pergunta, delicadamente. Sua voz vibra um pouco,
no limite da falha.
-
Você foi amaldiçoada certo? Condenada a ser controlada pelo que sente? Já matou
alguém com as próprias mãos porque se irritou um pouco? Ou caio no choro depois
de uma discussão simples? Já se apaixonou perdidamente por alguém que viu uma
vez só?
Ellie
não se atreve a olhar para ela.
-
Não é tão sério assim.
-
Ah, mas é sim. É isso que o Inferno queria e eles não deixam trabalho algum
pela metade. Não tente fingir que consegue suportar mais do que realmente
suporta só porque o Exército despreza sentimentos. Ouça de alguém que sente: É
melhor escolher os sentimentos mais inofensivos. Prenda-se a eles e permita ser
dominada pelos sentimentos bons. Você não é mais uma criatura infernal.
O
olhar de Ellie finalmente recai sobre Persephone. Por falta do que dizer, ela
não diz absolutamente nada. Persephone dá de ombros, olha em volta e continua:
-
Mas Kat está certa, é exatamente da forma que ela disse. Os grandes eventos
celestiais se chamam “janelas” e são abertas quando o Inferno quer ou com certa
raridade. Geralmente elas possibilitam a saída de almas, por qualquer questão
que o Inferno queira. Os pequenos e regulares se chamam “frestas” e são mais
para a entrada e saída dos próprios demônios, mas se você souber o que fazer,
pode usar delas também. No rumo oposto da Danse Macabre, as frestas geralmente
se abrem no quarto minguante ou crescente. São os momentos mais propícios para
possessões ou maldições infernais. Também existe, é claro, a entrada automática
que acontece com a morte. Mortais são um pouco diferentes: a alma vai para onde
deveria ir, sem precisar de janelas ou frestas. Espíritos não conseguem ficar
no plano terreno por muito tempo, não sem enlouquecer.
De
repente, Sophie engasga tentando prender uma risada e a atenção de todas vai
até ela.
-
Desculpa. - Ela diz ainda com uma risadinha. - O reflexo da matriarca da sua
família acaba de fazer uma careta na janela.
Persephone
e Selene se viram para olhar para a janela. Tenho vontade de bufar. Queria
poder falar com Deyah, tenho tantas coisas a perguntar para ela. Mas claro,
isso só vai acontecer quando eu receber minha alma de volta e ainda assim,
existem chances de que eu não possa falar com espíritos. E aparentemente de que
Deyah fique louca.
-
Se você continuar aqui vai ouvir uma série de coisas que não te agradam. -
Persephone diz, para o reflexo. Selene se encolhe ao seu lado. - Não é do jeito
que você queria que fosse, Deyah. Nada é. Kat aceitou seu plano, mas fez
mudanças o suficiente para que fosse exclusivamente dela. Você queria ser uma
deusa e ter controle sobre a vida e a morte. Toda sua jornada é povoada pelas
consequências disso.
Quando
ela termina de falar todo mundo caiu em um silencio absoluto. No segundo
seguinte, Kat se remexe.
- O
que você quer dizer com fiz mudanças o suficiente? - Pergunta.
Persephone
a encara.
-
Um número sagrado e um número maldito. Todas ligadas a você por laços de
sangue. Charlottie? Kaylee? Louise? - Cada uma se mexe onde está ao ter seu
nome chamado.
-
Elas apenas não estão ligadas a mim pelo sangue literalmente. Elas ainda estão
ligadas a mim pelo sangue que derramaram e pelo sangue de seus parentes.
- Ainda
assim você inclinou as regras, transformou em algo próprio.
- E
isso atrapalha os planos finais?
-
Os que Deyah tinha planejado, sim. Mas você quer ter controle sobre a vida e a
morte como se fosse uma deusa?
Kat
dá de ombros.
-
Não ia doer.
-
Você não sabe o que diz, Katerina.
Tenho
a impressão de que Persephone queria implicar muito mais desprezo na voz do que
realmente consegue. Persephone é um pilar de segurança, parada ali onde está. É
fácil ter a sensação de que ela é superior a todas nós e se permitir ser
controlada por suas palavras. Mas sua voz ao dizer o nome inteiro de Kat deixa
trair o fato de que a admira. O que quer que saiba sobre a vampirinha causa
esse efeito nela.
Kat
ri.
-
Nosso objetivo é libertar almas e tirar do Inferno o poder sobre toda uma
classe de criaturas. Como exatamente isso não faria de mim uma deusa no
processo?
Os
olhos lilases de Persephone se fecham em uma linha.
-
Você já fez o suficiente se convencendo de seu próprio poder e do poder de quem
se tornará depois disso. Antes de começar com isso tudo eu definitivamente
preciso mostrar porque você não será metade do que espera ser.
Kat
ajeita a postura. Não acredito que Persephone quer mexer justamente com o
desejo de grandeza de nossa líder.
- E
o que exatamente você sabe que pode me levar a acreditar isso?
Katerina
Persephone
não ri apenas porque rir quebraria a imagem de si mesma que criava para nós.
Selene, porém, precisa de esforço para prender a risada.
-
Assim como Ellie, eu tenho minha própria maldição. Eu Sei. Não exatamente de tudo, mas eu tenho consciência de todo
conhecimento que vou adquirir enquanto viver, porque eu sei tudo que vai
acontecer em cada momento de minha existência. Sei o que significa cada marca
em minha linha da vida. Eu recebi o nome da Deusa das Estações. A esposa de
Hades e Rainha do Submundo. Eu conhecia meu destino desde que o ar tomou meus
pulmões pela primeira vez.
-
Como isso é possível? - Pergunto.
- É
a Romênia. Existe todo tipo de criatura poderosa aqui. Bruxas brancas, bruxas
negras, pessoas possuídas, vampiros, fantasmas e também videntes. Eu sou filha
de uma bruxa com um vidente. Há algumas gerações, outra vidente viu que a responsável
pela libertação teria olhos lilases. Quando eu nasci e abri os olhos, o clã
teve 3 meses de festas.
- O
clã? - Anika pergunta, subitamente interessada.
Persephone
encara a parente distante.
-
Nossa família é grande. Nós crescemos aqui, nos tornamos um clã e protegemos
nossa terra e uns aos outros. Também nos misturamos, para nos tornarmos mais
poderosas. Normalmente vivemos ao norte, mas meus pais trouxeram a mim e a
Selene para estudar em Bucareste.
- Foi
por isso que a família veio para a Romênia? - Pergunto. - Todo tipo de
criaturas?
Ela
dá de ombros.
- É
uma das razões. Mas você é esperta, vai descobrir quais fora as outras muito em
breve. - Ela faz um movimento de desprezo com a mão e eu posso jurar que uma
corrente de vento atravessa a sala - Não é sobre minha família que eu quero
falar agora, é sobre vocês. Vocês embarcaram de cabeça numa missão da qual não
sabiam nem a metade e agora é tarde demais para voltar atrás. Quando Kat disse
sim a Deyah, ela concordou com qualquer que fosse o plano dela desde que isso a
trouxesse grandeza e a derrota do Inferno, ela nunca pensou nas consequências
que isso traria para ela mesma.
-
Ou talvez ela não se importasse. - Digo, falando sobre eu mesma na terceira
pessoa.
- Você
não se importaria com nada agora, mesmo se tentasse. A questão é que você não
permanecerá assim para sempre. Você quer sua alma de volta e junto com ela
todos os sentimentos, todas as cicatrizes, a solidão e a dor que você não
sentiu pelos últimos quase 182 anos.
-
Isso é uma desvantagem suportável para se ter poderes capazes de fazer o
Inferno estremecer.
-
Primeiro, você considera esses poderes muito mais do que eles realmente são.
Segundo, você acha isso mesmo? Tenho certeza de que Ellie discorda de você.
Queria
conseguir manter o olhar de Persephone, mas a menção a Ellie faz com que meus
olhos corram até ela rapidamente. Ellie tem as pernas esticadas à sua frente e
a cabeça baixa enquanto brinca com a corrente do colar distraidamente. Quando
ouve seu nome, ergue os olhos até os meus. Ela nem precisa dizer nada, porque eu sei. Ellie tomaria a opção egoísta de
trocar o conhecimento do Réquiem pela capacidade de não sentir outra vez sem
pensar duas vezes. Ela detesta sentir e mais ainda ser dominada pelo que sente.
-
Ellie é uma exceção. Ela foi amaldiçoada. - Pontuo. - Sophie tem a alma de
volta há quase 100 anos e nunca teve motivos para se arrepender.
-
Pois eu digo que Sophie é uma exceção. - Persephone rebate. - Ela nunca sentiu
como o resto de nós sente. Sophie é efetivamente a única pessoa do Exército que
matou alguém em vida.
-
Eu fui abusada durante toda minha infância. Matei para me proteger. - Sophie se
defende, mas com toda monotonia possível na voz.
-
Ainda assim matou e sem se arrepender. Também foi a responsável por arquitetar
o massacre de Mardi Gras em 98. Você é a única no grupo que aparenta ter
tendências psicopatas pré e pós-vampirismo. Considere isso um elogio.
Sophie
sorri.
-
Não poderia ser nada além disso.
- A
questão é que entre uma alma amaldiçoada e uma psicótica vocês ainda não viram
de verdade como é receber uma alma maltratada e despedaçada de volta das mãos
do Inferno. Mas o mais próximo que já chegaram disso foi com Ellie. -
Persephone olha nos olhos de cada uma de nós antes de continuar: - Deixem-me
dizer algo que vocês deveriam ter sabido antes de aceitar os planos de Deyah:
Nem todo vampiro suportaria receber a alma de volta. Nem todo mundo está apto a
ter uma alma, quanto mais ficar sem e recebe-la outra vez. Nem todo mundo pode
suportar o que significa sentir outra vez depois de tanto tempo. Sua alma volta
para você com o peso de cada pessoa que você matou, cada vida que destruiu. A
maioria dos assassinatos cometidos por vampiro são no automático, para acabar
com a sede, vocês sequer percebem quem estão matando. Mas receber a alma de
volta e se lembrar dos olhos daquela garotinha que implorava que você não a
machucasse, ou lembrar do homem que estava voltando para os filhos depois de um
dia de trabalho ou da jovem apaixonada que tinha muita esperança do que estava
por vir... Isso pode ser demais para uma pessoa suportar de uma vez só.
Noto
Ellie empalidecer. É como se isso partisse algo dentro dela.
-
Além disso, você se lembra de que todo mundo que você amou em vida morreu e que
cada mortal de quem você se aproximar morrerá também. A alma te tira o direito
de transformar. Uma alma pesa. Isso é algo que ninguém gosta de comentar. Eu
sei que pesar ou amor não significa nada para vocês agora, mas isso só deixa
tudo pior. Vocês não conhecem esses sentimentos e podem não saber o que fazer
com eles quando eles surgirem.
As
meninas estão em um silêncio profundo, como se as palavras de Persephone tivessem
penetrado seus ossos e levado todo medo e toda escuridão que estavam tentando
segurar para dentro delas. Mas eu bufo.
-
Você realmente acha que eu escolhi garotas fracas? Realmente acha que eu
coloquei em meu Exército garotas que eu não acreditava que fossem capazes de
suportar o que está por vir? Você me ofende, Persephone. Me afronta. Cada uma
de nós, somos garotas abusadas, perseguidas, abandonadas. Tivemos uma
independência forçada a nós e uma força que nos foi imputada em uma idade tenra
demais para que pudéssemos recusá-la. Eu escolhi a maioria das minhas garotas
com cuidado e as outras foram um presente que eu não merecia. Todas elas são
capazes de sobreviver e de suportar coisas que você que viveu toda sua vida em
uma casa confortável, temendo perspectivas que ainda não chegaram, jamais
poderia. Da garota que nasceu para morrer até aquela que foi morta por uma
guerra à qual não pertencia, cada uma de nós teve sua alma massacrada em vida.
Todas nós, mesmo jovens, conhecemos a dor antes de morrer. E cada uma de nós
merecia ser mais do que o destino nos encarregou de ser. Por isso estamos aqui.
Eu prometi às meninas liberdade e não foi o que as dei ao transformá-las em
vampiras, então pretendo reparar isso. Elas serão livres. Mesmo que eu precise
carregar o peso de suas almas em minhas costas e curar seus machucados com
minhas próprias mãos.
Não
é apenas a impressão agora: Uma corrente de ar realmente atravessa a sala e
abre a janela atrás de Persephone. A luz da lua, que por sinal não passa de um
fiapo no céu, toma mais espaço na sala e atinge as pernas esticadas de Ellie.
Rapidamente, ela recolhe as pernas, obedecendo a ordem de Persephone de se
manter longe da luz da lua. Mas a herdeira simplesmente faz um sinal com as
mãos e fecha a janela.
-
Já entendi, você é determinada e tem um Exército. Apenas não irrite o Inferno
mais do que já irritou antes da hora se não quiser que seu Exército caia sem
luta. Sua mania de grandeza e a crença de que nasceu para grandes coisas será a
sua destruição, Katerina.
-
Isso é uma ameaça, um conselho ou uma interpretação do futuro, óh, grande
vidente?
Persephone
sorri. É a primeira vez que ela faz isso desde que chegamos e eu percebo que é
porque finalmente entendeu com quem está lidando. Ela está tentando tomar
controle de algo que é meu por direito e isso não vai acontecer.
-
Um conselho. O que quer que vá acontecer com você no futuro não tem nada a ver
comigo.
-
Então porque diabos estamos aqui? - Rosno.
-
Por causa delas. - Ela diz, sem tirar os olhos dos meus. - Eu sou a única que
pode ajudar você a cumprir o que prometeu para elas e alcançar o que você
acredita querer para si mesma. Então, eu não serei idiota o suficiente para
tentar conduzir seu Exército a ser o que eu quero que elas sejam ou a desejar o
que eu quero que desejem. Mas se você tiver o mínimo conceito de
autopreservação, vai jogar com as minhas regras, sim. E vai fazer exatamente o
que eu acredito que precisa fazer.
-
Coloque as cartas sobre mesa, Persephone. A guerra não deixa tempo para tantos
rodeios.
Kaylee
Persephone
sorri discretamente. Cada vez que ela faz isso é mais perturbador. Seu rosto
não é do tipo que foi feito para sorrir. Ela tem uma armadura no lugar de
feições. Seus sorrisos são uma forma de ataque, não de rendição.
- É
aqui que cada segredo cai. Este é o lugar onde cada parte de vocês é revelada
por inteiro. Se eu não estiver conectada com a essência mais profunda de quem
vocês são é muito mais fácil perder vocês no Inferno e não encontrar o caminho
de volta até seu corpo.
-
Isso soa como uma versão mais violenta dos desejos de Bianka. - Sophie diz,
distraidamente, com os dedos brincando pela borda da área iluminada pela luz da
lua.
-
Bem, minha tatataravó tinha razão em desejar segredos e a verdade é que ela não
conseguiu nem a metade dos segredos de vocês.
-
Sua o quê? - Ellie solta, junto com uma respiração alta.
Persephone
ergue a cabeça para observar Ellie com superioridade.
-
Você realmente acreditou que ela morreu naquela manhã, não foi? Acha mesmo que
ela não sabia que você tentaria matar qualquer um que soubesse que você estava
a meio passo de se tornar o Réquiem? Ela nunca deixou a escola, mas soube como
se proteger. Ela não pretendia ficar na Alemanha por muito tempo e depois que foi
declarada como morta pelas autoridades, foi fácil ir embora. Você só deixou a
fuga dela mais fácil, Ellie. É a você que devemos agradecer o fato do clã de
Deyah estar na Romênia.
Percebo
que Ellie precisa de toda energia que possui no corpo para não estremecer.
-
Eu estava me perguntando como ela não fugiu do Inferno e veio atrás de mim.
-
Ela era mais esperta que Deyah. Preferia se associar com o diabo do que escapar
de suas mãos para enlouquecer. Ninguém escolheria insanidade no lugar do poder.
Apenas a insanidade que vem junto com ele. Além disso, qualquer pessoa com
olhos pode ver que tem algo de muito errado com as portas do Inferno no
momento. - Ellie se ergue, como se para ouvir melhor. O que quer que estivesse
sentindo pelos novos fatos sobre Bianka, o sentimento foi embora com a mesma
rapidez que chegou. - Continua acontecendo. - Persephone continua - As janelas. Não pararam. No ano novo uma lua
gigante não prevista me impediu de ter uma noite de sono tranquila. O Inferno
abriu as janelas para a saída de Ellie, mas eu duvido que tenham mantido
abertas agora que a alma dela se normalizou. Tem algo de errado. Houve uma
ruptura. Aparentemente, isso é vantagem para nós, é claro, mas a questão é que
não só almas torturadas habitam o Inferno. Tudo que existe de maldito vem de
lá. E se alguma coisa sair sem a permissão... Bem.
- Como
assim “Bem”? - Sophie reclama - Eu pensei que você tivesse dito que era uma
vidente. Onde está sua vidência agora?
-
Eu sei sobre o meu destino. Não o do
mundo inteiro. Coisas continuarão acontecendo depois que eu for incapaz de
fazer algo a respeito...
-
Escolha interessante de palavras. - Kat diz, apertando os olhos. - Seu destino
não é a morte é? Você teria menos medo se fosse.
-
Não tenho medo.
-
Você é constituída de nada além de medo, Persephone. Graças a algum tipo de
força de vontade sobrenatural você é o tipo de pessoa que sabe gastar suas
energias em outras coisas e não se concentrar no que sente. Mas você tem medo.
De quem é. Do que sabe. Do que precisa fazer. Cada parte do seu poder é
abastecido e consumido pelo medo desolador que você tem. Você é uma criatura
admirável, mas não pense que me ameaça mesmo que por um instante.
-
Isso tudo não é sobre mim.
- Mas
ainda assim você não me desmente.
Persephone
suspira. Kat jogou baixo, mas ainda assim a garota passa longe de apresentar
qualquer proximidade da perda de seu brilhante autocontrole. A cada momento ela
parece mais perturbadoramente interessante. Como algo que você não quer ver e
não pode deixar de olhar ao mesmo tempo.
-
Eu disse que era uma maldição. - Ela diz, finalmente - Saber de seu destino e
saber que absolutamente nada do que você faça vai mudar isso. Eu não posso me
afastar da linha do tempo que foi criada para mim porque existe um cabo
invisível que me puxa de volta. É mais forte que eu e é inevitável. Eu sabia
que meus pais morreriam uma semana antes que eu completasse 18 anos e os
mantive presos em casa durante todo o Natal. Meu pai desapareceu por volta das
19h e ligou para minha mãe dizendo que não sabia como tinha ido parar na casa
de um amigo e precisava que ela fosse busca-lo. Selene foi junto porque eu
sabia que ela não morreria agora e talvez ela pudesse cuidar deles. O que
aconteceu aquela noite não tem explicação nenhuma. Aconteceu porque precisava acontecer. Você tem alguma
ideia de como é enlouquecedor o conhecimento sem o poder?
É
um debate estranho. As participantes querem ter certeza de que suas rivais
estão colocando todas as cartas na mesa antes de revelar o que precisam. Elas
se admiram e se temem ao mesmo tempo. Tentam saber qual das duas é a mais
poderosa e ao mesmo tempo não querem descobrir a resposta.
-
Você está brincando, certo? - Ellie diz, a voz subindo algumas oitavas. Ela
balança a cabeça e cruza as pernas em sua frente. - Persephone, conhecimento só
é uma maldição se você não souber como usá-lo. Seu destino pode ser o pior dos
destinos, mas é o seu destino e “é fraqueza e tolice dizer que não suportaria
algo que seu destino dita que é preciso ser suportado.”. Algumas pessoas não
foram feitas para a felicidade e talvez você seja uma delas, mas não significa
que você não pode aproveitar sua própria desgraça.
Persephone
não responde. Coloca o cabelo atrás da orelha e sussurra algo para Selene que
se levanta e vai para a parte de trás da sala. O Exército fica em silêncio
novamente. Eu posso sentir a mente de cada uma das pessoas próximas a mim
disparando com dezenas de pensamentos e tentativas de entender o que está
acontecendo e o que está para acontecer. Eu não ouso tentar entrar na confusão
dos meus pensamentos. Sou melhor observando do que refletindo. Selene volta com
um caderno de couro que obviamente é um grimório e o entrega para Persephone,
que agradece antes de abri-lo em seu colo.
-
Aqui está o que vai acontecer: - Persephone começa de olhos no caderno. -
Dentro das próximas semanas, eu quero entrar na alma figurativa de vocês. Eu
quero saber de cada segredo, por mais obscuro que seja. Eu quero deixar vocês
tão próximas de qualquer espectro de sentimento que tenham que sentirão sua
alma queimar no Inferno como se estivessem de frente a uma fornalha. Preciso
saber quem são enquanto descubro sobre a ruptura antes de leva-las ao Inferno.
Vocês serão pessoas completamente diferentes quando atravessarem a janela. Bem,
as que sobrarem de vocês.
Kat
quase salta.
- O
que você quer dizer?
-
Eu quero dizer que assim como pessoas terão que morrer, vampiros, possivelmente
animais e até plantas também terão. Acontece. E não tente fingir que não sabe
que é isso que acontece em guerras. Fortaleça seu Exército, Katerina.
Prepare-as para a luta. Mostre a que elas vieram. Vocês só precisam do número
sagrado e do número maldito para o juramento que faremos hoje. Depois disso, a
perda de uma ou de outra não implica na perda da batalha.
Ao
ouvir isso, Selene se coloca de pé novamente e sai de cena.
-
Juramento? - Kat pergunta, ainda afrontada.
-
Você disse que vocês estão ligadas pelo sangue que derramaram mais do que pelo
sangue que as transformou. Se isso é verdade, o processo que faremos hoje não
vai afetar nenhuma de vocês. Quero ter certeza de que o sangue derramado de
qualquer uma de vocês sejam em prol das outras. É o Inferno, não a esquina.
Precisamos do máximo de poder possível e sangue de vampiro acontece de ser bem
poderoso. Não posso deixar ele se perder.
-
Então você sabe que algumas de nós vão
morrer. - É Miranda quem pergunta, falando pela primeira vez.
Persephone
bufa enquanto Selena chega com algumas vasilhas de madeira e um estojo grande
demais para o bracinho.
-
Eu sei que vocês não terminarão com o
mesmo número que têm agora. O que vai acontecer com as outras eu não poderia
dizer com exatidão.
-
Mas você sabe quais de nós...?
Selene
interrompe ao deixar o estojo cair, fazendo com que diversos punhais escapem de
dentro dele e atinjam o chão com um baque. Persephone mexe as mãos e de repente
cada um dos punhais está na frente de cada uma de nós treze.
-
Não, Miranda. Eu não sei. - Persephone responde, pegando as tigelas de madeira
da mão de Selene e atirando para nós pelo chão. - Vocês sabem o que fazer. -
Diz, simplesmente, quando termina.
-
Você realmente espera que a gente se corte sem ter como nos regenerar
imediatamente?
-
Bem, se cortem de uma forma que não faça uma bagunça e depois ataquem alguém na
rua. Pelo amor de Deus. E eu também preciso do sangue de Ellie e Sophie, nem
ousem questionar isso.
Algumas
de nós resmungam, mas ninguém diz nada. Encaro o punhal cuja ponta toca minha
perna e suspiro antes de pegá-lo. Ao contrário das outras vampiras do Exército,
eu tenho um mapa formado por cicatrizes de lugares onde posso cortar sem que o
sangramento se agrave. Escolho um ponto um pouco abaixo da parte interior do
cotovelo. A ferida arde, o punhal entra mais profundamente do que eu planejava,
mas eu não chio ou reclamo. Permito que o sangue escorra lentamente até a
vasilha de madeira, observando concentradamente o liquido escuro como terra
molhada. Eu tenho uma espécie de obsessão por como meu sangue se parece em
comparação com sangue humano. A diferença mais importante não é a física, até
mesmo o cheiro diferente só é perceptivo por vampiros e outras criaturas
mágicas. Mas eu poderia jurar que nosso sangue é o mais escuro do que o sangue
humano. Ou talvez eu só tenha encarado ele por muito tempo.
Aos
poucos a sala é tomada pelo cheiro ferroso de sangue e quando as tigelas são
empurradas de volta para a Persephone, elas deixam um rastro escuro no chão. Ao
redor do círculo, eu posso ver cada uma apertando os pulsos e dedos para
estancar os sangramentos. Exceto por Sophie e Ellie que cochicham algo uma para
a outra. Da direção delas vem um cheiro cortante de sangue humano que desperta
um clamor em meu corpo. É estranho, o sangue delas não carrega mais a maldição
do vampirismo e de repente elas se tornaram presas em potencial. Eu não sei
exatamente se seu sangue poderia ser consumido (bem, o de Sophie, não. O de Ellie,
não tenho como saber), mas se pudesse deduzir, diria que não.
- Certo.
- Persephone diz, enfiando os dedos nas tigelas para desenhar algo com sangue
no chão - Tirem as pedras dos pescoços e coloquem à sua frente, mas sob a luz
da lua. A partir de hoje, elas não podem estar em nenhum outro lugar além de
seus pescoços. Não se preocupem, ninguém vai se arriscar a roubá-los e se o
fizerem, trarão apenas desgraças para os si mesmos. Isso é magia representativa
e cada uma dessas pedras representará a importância de vocês na batalha. - Ela
desenha enquanto fala e enquanto todas nós fazemos o que ela ordena - A
fidelidade e a confiabilidade da esmeralda. A sensibilidade e o poder de cura
da safira. O autocontrole e a perceptividade da lápis-lazúli. A espiritualidade
e a intuição da ametista. A honestidade e a clareza dos diamantes. A paz e o bom humor do topázio. A pureza do
rubi. A vitalidade e a ousadia da almandina. O alívio das aflições da
água-marinha. A conexão com os estados espirituais do quartzo. E a harmonia
entre o corpo e a alma trazido pelo ônix. Cada uma dessas coisas será o que
vocês trarão para o Exército e se vocês não se consideram portadoras dessas
qualidades, esse será o primeiro passo.
Ela
se cala para continuar seus desenhos e nos deixar com nossos próprios
pensamentos. A pureza do rubi? A
pedra que escolhi para mim aumenta e destaca as qualidades, chamando pelo que
há de melhor na pessoa que o carrega. Não tenho muito de bom restante em mim e
definitivamente nada puro. Sou a única vampira do Exército transformada por
assombração. Só me tornei vampira porque minha alma estava infectada pelo que
Kat era, porque minha mente estava em seu estado mais doentio. Não sou pura,
não me sinto limpa. Não estava pensando nisso quando escolhi o rubi: Queria a
pedra mais escura possível, mas que não fosse negra. É essa a representação que
tenho de mim, tomada pela escuridão, mesmo não tendo nascido dela.
Persephone termina o desenho e o que eu vejo é uma
árvore sem folhas, com 13 galhos longos. O desenho é de um vermelho vivo já que
a luz da lua banha ela por completo. Enquanto a bruxa herdeira alcança as
pedras e posiciona uma em cada galho (a Esmeralda no ponto mais alto), vejo
Louise se remexer.
- Isso é algo que eu chamo de feitiço pesado. - Ela
diz, para ninguém especificamente - E geralmente é feito com o sangue de
pessoas já mortas.
- Bem, teoricamente vocês estão mortas. De acordo com as regras humanas, seus corações
pararam e seus corpos não tinham nenhum tipo de reação física. Seu sangue não é
sangue comum.
- É magia mortal, Persephone. Profanação de corpos e
acesso ao reino da Morte. Os mortos deveriam descansar em paz.
- Aqui não é Nova Orleans, Louise. - Essa frase me faz
perceber que nenhuma de nós, em momento algum, dissemos nossos nomes ou de onde
viemos. Sei que Persephone disse que sabe,
mas eu sinto vontade de descobrir o quê. - Magia considerada obscura demais
para o povo de sua cidade é de praxe por essas bandas. E eu não estou
profanando corpo algum. Estou consagrando sangue para uma causa, na frente das
donas dele. - Ela levanta os olhos para Louise quando enfim coloca a pedra de
ônix num ponto no meio do desenho. - Você aceitou fazer parte disso. É uma luta
que não tem mais um fim. Na vida ou na morte, você é parte disso agora. Não
pode sequer cogitar desistir.
Louise não diz mais nada. Encara Persephone com
delicadeza, observando com cuidado o rosto à sua frente, antes de balançar a
cabeça com confiança. Persephone se senta no fim do tronco da árvore, com as
pernas cruzadas na frente de si. Seu corpo forma sombra por cima da árvore, mas
a luz envolve seus ombros e corpo por completo, formando uma aura. Seus dedos
sujos de sangue alcançam o crucifixo cravejados de pedras em seu pescoço e ela
fecha os olhos. Por um instante, palavras em latim são sussurradas com clareza.
Não conheço esse feitiço e nenhuma outra além de Kat e Louise parece se
conhecer. Olívia, porém, é fluente em latim e as palavras ditas por Persephone
a fazem erguer a sobrancelha.
Durante um momento, nada acontece. Quando o silêncio
se torna perturbador, o sangue no chão começa a se mexer. O desenho se parte:
Primeiro os galhos se soltam do tronco com um audível crack. Em seguida ele se aproxima das pedras, se arrastando como
pequenos animais rastejantes para dentro das correntes. Ouço um chiado, como se
o sangue estivesse fervendo, e minhas veias começam a arder. Não como se
estivessem queimando, mas uma coceira agonizante que me tira do sério. Da
ferida ainda aberta, um líquido negro como petróleo começa a escorrer e faz barulho
quando goteja no chão.
- Pelo amor de Deus, Persephone! - Ellie exclama, como
se soubesse o que é aquilo e a ideia do que está fazendo parte a perturbasse.
Mas Persephone não responde. Permanece de olhos
fechado sussurrando o feitiço. Selene observa todas nós de pé. Parece surpresa,
mas não assustada. Não é a pior coisa que ela já viu.
- Sanguis lapso
confirma reliqua. (Que o sangue caído reforce). - Persephone termina,
abrindo os olhos.
Em um instante, a coceira desaparece. Assim como o
sangue no chão, que parece ter entrado nas pedras, e a lua no céu. O pequeno
fiapo de lua minguante foi tomado por uma nuvem gigantesca e só consigo
enxergar o rosto das pessoas mais próximas de mim porque um relâmpago toma o
céu e dura alguns segundos a mais do normal. Depois que o som do trovão corta a
sala e parece partir o tempo em dois, Persephone volta a falar:
- Vocês conseguem achar suas pedras intuitivamente?
Não precisamos responder. Eu sinto como se a pedra
fosse meu coração e meu sangue fosse bombeado diretamente de lá. Não preciso sequer me inclinar muito para
alcançar o rubi. Ele está muito mais pesado e parece pulsar quando o coloco
sobre o peito. Quando todas fazem isso, ainda na escuridão estranha da
tempestade sem água, Persephone estala os dedos e acende velas em torno da
sala. É claro que este é um lugar sem energia elétrica.
-
Isso não foi magia negra. - Ela diz, delicadamente - É magia de linhagem. Só
funcionaria se houvesse algo ligando vocês e Kat estava certa, realmente tem. O
sangue de vocês é como se fosse um só agora e quanto menos dividido ele for, se
algumas de vocês morrerem, mais forte ele se torna. - Ela faz uma pausa,
enfatizando as palavras. A gente já sabe disso, mas ela faz questão de reforçar
que vamos perder algumas de nós. - A partir do dia 9, primeira lua nova do ano,
começaremos uma espécie de treinamento. É quando, como eu falei, os segredos
vão cair e vocês estarão em contato com tudo que são e o que fizeram. Não
existe opção. Não existe desistência. Não existe retorno. E falando em linhagem
e segredos, alguma de vocês já formou um vampiro? - Dessa vez, ela não faz
pausa alguma porque quer nos pegar com a guarda baixa.
Funciona.
Algumas de nós se remexem. Kat observa as que se movem, com o olhar opaco. Ela
geralmente sabe de tudo, mas nesse caso ela só sabe que a maioria de nós não
conta absolutamente tudo para ela. Eu só transformei Louise, porque ninguém se
aproximou o suficiente de mim para que eu compartilhasse algo do tipo. Exceto
por Amelie, mas ela já estava batizada quando nos conhecemos.
-
Ótimo. Achem essas pessoas e matem-nas. Não quero saber de pontas soltas. Seu
sangue é a parte mais importante e não podem pertencer a ninguém mais.
-
Acho que seu desejo por sangue está tomando sua cabeça. - Kat diz, voltando a
olhar para Persephone - Nós não deveríamos estar tomando conta da libertação
dos vampiros? Como isso acontecerá se nós já começarmos matando eles?
Persephone
suspira. Seus dedos deslizam por seus cabelos delicadamente. Como ela pode
parecer tão desconfortável e nem um pouco vulnerável ao mesmo tempo? A
explicação de Kat sobre seu poder vir do medo é a que mais faz sentido para
mim.
-
Certo. Continuemos achando pequenas brechas nas regras e evitando o que
desagrada a vocês. - Ela diz, quase com um rosnado. - Mas eu preciso explicar
uma coisa: Quero que fique claro que não iremos libertar todas as almas, não
vamos assumir o controle do Inferno. O Inferno é uma dimensão eterna que existe
desde muito antes que vocês tenham nascido e continuará existindo muito depois
de deixarem de existir - mesmo que isso ainda leve milhões de milênios. O que
queremos é recuperar o controle de algo que eles tiraram: O livre arbítrio. Na tentativa
de criar seres que superariam à Morte, eles tiraram dos humanos o único poder
que nos foi concedido - o de decidir. Não estamos tentando criar nossos
próprios prisioneiros. Nós liberaremos a alma de cada vampiro que queira ser
libertado e apenas de quem se sentir apto a enfrentar as consequências. Faremos
um acordo e que quem quiser continuar prestando serviço ao Inferno, poderá
fazer de livre e espontânea vontade e arcará com as consequências da eternidade
na Terra. A magia de almas também acaba aqui: Os estudos de Deyah serão
destruídos, meu conhecimento dissipado. Ellie será o último Réquiem. Nada disso
é natural, as três maiores forças do universo são.
- Posso
aceitar isso. Parece ser bom o suficiente. - Kat diz, dando de ombros. - E como
anunciaremos nossos planos a cada vampiro existente?
Persephone
balança as mãos como se desprezando a pergunta.
- É
2016. Notícias correm mais rápido do que acontecem. E com 182 anos nesse mundo,
você provavelmente conhece algum tipo de rede de vampiros a quem possa recorrer
para a notícia circular.
Kat
concorda com a cabeça e olho para ela no mesmo momento em que ela olha para
mim. Abro um sorriso discreto.
-
Traga Amelie até aqui. - Kat movimenta os lábios, só para mim, sem precisar
explicar mais nada.
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