Bucareste,
Romênia
9 de
fevereiro
Juliana
O que você leva para uma cidade à
qual você nunca foi e que não faz ideia do clima que tem para uma busca que
você não sabe como vai acontecer? Suspiro e enfio duas calças jeans e quatro
camisetas em uma bolsa de mão. O que quer que eu precise além disso eu compro
no processo. Coloco também dois pares de sapato, roupas íntimas e outras coisas
básicas, sem me preocupar com organização nenhuma, já que a mala enorme vai
quase vazia. Estou acostumada a ir de uma cidade para a outra deixando tudo
para trás ou destruindo todo vestígio de mim no lugar. Estar viajando apenas
por alguns dias - eu espero - em uma missão e ter “um lar” para retornar é um
conceito estranho, mesmo que nós tenhamos diversas casas em vários lugares do
mundo.
Sophie, Charlottie, as gêmeas,
Olívia, Kaylee e Amelie foram até o lugar onde o celular de Ellie foi perdido e
começaram a rastrear o grupo que as sequestrou, com certa dificuldade. Eles já
voltaram para a Romênia, mas é estranho como um país pequeno se torna gigante
quando você precisa encontrar um pequeno grupo de pessoas. Sophie disse que o
clã costumava se concentrar nos Cárpatos e Persephone sugeriu deixar Bucareste
e seguir para o norte. A família dela é de Piatra Neamț, uma cidade
completamente bruxa e de solo sagrado; mas Persephone tem uma casa de campo nos
arredores e ela pareceu o quartel general mais lógico. Além disso, você nunca
subestima a importância de ter mais bruxas do seu lado.
Fecho meu quarto com chave e vou para
o andar de baixo, onde marcamos de esperar enquanto Sophie pega o carro. Na
sala estão apenas Pierre e Anika, a segunda no sofá com um livro sobre as
pernas e os pés sobre uma mala lilás, enquanto o primeiro está sentado no
balcão da cozinha, com uma mala do lado, parecendo entediado com o celular na
mão. Me sento ao lado dele fazendo-o erguer os olhos e colocar o celular de
lado. Quando ele olha para mim eu já sei que me tornarei seu novo joguinho.
- Você tem falado com Alex
ultimamente? - Ele pergunta, me surpreendendo com o tema da pergunta.
- Não, por que? Ela tem tentado falar
com você?
- Não, não. Eu só não achava que ela
é do tipo que fica quieta por muito tempo.
- Ela me mandou várias mensagens nos
primeiros dias, mas depois que encontramos Persephone, foi parando aos poucos,
até desistir por completo.
- Não acredito que você está
desconsiderando sua irmã desse jeito, Juliana Mayfair.
Reviro os olhos. Alexandra me encheu
o suficiente para que eu desistisse da minha firmeza e a apresentasse a Pierre
como um presente de despedida, dois dias antes de virmos para a Romênia. Àquela
altura ela só tinha conhecido Louise e Kat, que ficou tão curiosa quanto Alex é
ao saber da existência da minha irmã mais nova. Pierre adorou conhecer Alex
especialmente porque ela provavelmente foi a pessoa mais sensível aos charmes
dele que já existiu. Ela só não se apaixonou no exato momento em que ele sorriu
para ela, porque sabia sobre ele ser um demônio sexual e estava pronta para
aquilo. Ainda assim, toda vez que ele falava ela abaixava os olhos com timidez
e só se atrevia a olhar para ele quando ele estava olhando para mim. Mas ela
observava nossa conversa com a mesma atenção que eu observava suas reações. E
agora sempre que conversamos o tema da conversa se torna Pierre. É bom que
tenhamos nos falado pouco nas últimas semanas.
- É uma forma de mantê-la em
segurança. - Respondo.
O semblante de Pierre escurece.
- Não existe segurança para quem tem
sangue em comum com vocês, Juliana. Não existe salvação.
- Você acha?
- Eu sei. O ataque a Kat e Ellie foi
influenciado pelo Inferno. Foi bem calculado demais para ter sido planejado por
um clã tão selvagem quanto o romeno.
Me ajeito na cadeira.
- O que você sabe?
- De nada. Se eu soubesse não estaria
falando sobre tão abertamente. Ao contrário de vocês, que recuperaram seu livre
arbítrio quando Kat se associou com a Morte, eu continuo sendo uma criatura do
Inferno e obrigada a seguir as ordens deles. Mas eu desconfio dos planos deles.
Conheço o Inferno melhor do que gostaria.
- Toda vez que você diz algo assim eu
me pergunto porque Kat ainda te mantem aqui. Até onde a gente sabe o Inferno
pode estar usando você para descobrir nossos planos e planejando um ataque
violento para breve.
- Eles não podem me usar sem que eu
saiba e Kat é arrogante demais
para se livrar de mim. Ela não me considera um risco, mesmo que o resto de
vocês considere.
-
Kat é louca, essa é a verdade. - Suspiro - Mas nós a escutamos por acreditar
que ela sabe mais do que nós sabemos, o que, de certa forma, é verdade. Ainda
não vi Kat errar nas decisões que tomou, então tenho que confiar na escolha
dela, mesmo que envolva você.
Pierre
bufa.
-
Não vou me ofender por você confiar em Kat, mas não confiar em mim.
- Pierre,
ninguém em sã consciência confiaria em você.
- À
primeira vista não, mas você me conhece de perto, Juliana.
-
Mais um motivo para eu não confiar em você.
-
Não acredita na minha lealdade?
-
Sei que ela tem dois lados. Que você está aqui como prisioneiro. E que sabe
guardar ressentimentos como ninguém.
Ele
suspira.
-
Pois saiba que mesmo que as coisas não tenham acontecido como eu gostaria,
existe uma parte de mim que aprendeu a gostar de vocês e a desejar que vocês
fiquem bem e sejam bem-sucedidas.
Eu rio tão alto que Anika olha para
nós dois, antes de decidir que prefere seu livro.
- E demônios podem ter sentimentos positivos?
- Eu só sou meio demônio, Juliana.
Sinceramente, agora eu vou guardar ressentimento de você, com sua descrença.
Reviro os olhos mais uma vez.
- Oh, eu sinto muito por não me
importar com seus sentimentos enquanto uma guerra está acontecendo. Pelo amor
de Deus, Pierre.
- Tenha certeza de que eu ajudaria
vocês de alguma forma, se não estivesse com as mãos atadas. Meu lado na guerra
foi definido muito antes de eu nascer.
- Ou isso é o que eles querem que
você pense. - Resmungo.
- Como?
- Você simplesmente aceita que não
pode nos ajudar e que vai continuar do nosso lado apenas como um apêndice
inflamado, Pierre. Se você usasse todo seu tempo livre para pensar em formas de
nos ajudar, talvez já tivesse encontrado alguma coisa. E aí sim, eu acreditaria
que você - Faço aspas no ar - Gosta de nós. Confiaria na sua lealdade com a
minha própria vida. É confortável demais dizer que deseja que sejamos
bem-sucedidas quando tudo que você faz é observar a luta de longe com cara de
tédio.
Pierre nem se atreve a responder a
isso, porque sabe que eu estou certa. Imaginando que ele não dirá mais nada, eu
me coloco de pé para ir atrás de Louise, mas ele me segura pelo braço antes que
eu possa dar um passo.
- Você acha que elas ainda estão
vivas?
- Eu acho que nós saberíamos de
alguma forma se elas não estivessem.
- As duas?
- Ellie não deixaria Kat morrer. E o
oposto também é verdadeiro.
- Você acha que elas têm alguma
chance contra um grupo de vampiros muito mais fortes que elas?
- Ellie é basicamente indestrutível,
Pierre. Se eles conhecem algo sobre a lenda do Réquiem, sabem disso. Além
disso, se Kat não soubesse se salvar com muito mais que apenas o físico dela,
ela não teria sobrevivido até hoje.
Ele pondera.
- Justo. E qual você acha que será o
próximo passo do clã?
Eu já pensei muito nisso então não
demoro a responder:
- Agora eles vão levá-las a um lugar
seguro. Protegido de qualquer tipo de magia e bloqueador de energia infernal.
Um clã tão antigo definitivamente tem um desses. Com elas lá, eles vão poder
dedicar toda energia a descobrir como matar o Réquiem. Fazendo isso, as duas
estão mortas. E depois, é claro, eles vêm atrás da gente para acabar com tudo
de uma vez.
- E você fala disso com toda
tranquilidade do mundo!
- Eu tenho me preparado para essa
guerra há anos, Pierre. Lidar com um monte de vampiros insanos obcecados pelo
poder que eles nunca irão conseguir no Inferno é a parte fácil da coisa.
- Não planejo esperar acordado pela
parte difícil.
- Que bom que você tem essa escolha.
Arad, Romênia
Eleanor
Depois de nos enfiar em um dos cinco
carros que os levaram até a Hungria e dirigir por algumas horas de volta para
seu país de origem, o clã romeno está parado em Arad há mais de um dia.
Montaram acampamento nos limites da cidade e saem para se alimentar em grupos
pequenos de duas em duas horas. Eles não querem ficar por aqui, apenas deixar
rastros suficientes para serem seguidos até aqui e aí se dispersarem.
Imaginando que eu e Kat não temos
como nos comunicar com o Exército, eles discutiram os planos em nossa frente: Irão
se dividir em três grupos, dois deixando rastros a leste e a sul, enquanto o
terceiro, formado apenas dos vampiros mais fortes, nos levará para um abrigo
protegido de magia nos arredores de Vatra Dornei. Quando estivermos lá, todo o
clã vai poder se dedicar ao que os dois primeiros grupos já farão enquanto
despistam quem busca por nós: Procurar formas de me matar.
Kat ficou completamente calada durante
o tempo em que os planos foram anunciados. Mal me dirigiu a palavra desde que
fomos sequestradas, quando o fez foi para perguntar se eu estava bem. Apenas
observa, com a mente funcionando em silêncio, provavelmente planejando algum
tipo de ataque ou um plano complexo de fuga. Quando a noite cai e nós somos
ordenadas a entrar em um carro diferente do que viemos, eu já com os nervos em
frangalhos, ela finalmente fala comigo, com a voz quase em um sussurro.
- Você acha que o plano deles
enganará às meninas?
- Não. Ou pelo menos não engará a
Sophie. - Respondo, o mais baixo que consigo. Estamos sozinhas no carro
enquanto os nossos motoristas são definidos do lado de fora, mas ainda assim
não é seguro. - Ela sabe que o clã costuma se firmar no Norte e é para lá que
ela vai seguir.
Ela concorda com a cabeça.
- Também acho isso. O que me faz
pensar em que tipo de armadilha eles pretendem colocar lá. Eles planejaram isso
em detalhes e devem imaginar que um rastro de corpos é óbvio demais.
- Você acha que elas nos encontrarão,
mesmo sem ter como nos localizar com magia ou tecnologia?
Ela não está olhando para mim.
Estamos sentadas no banco de trás do carro, tão livres quanto poderíamos dadas
as circunstâncias e ela está olhando para além do banco em sua frente, para a
estrada que se abre em frente ao para-brisas.
- Eu não subestimo minhas vampiras,
Ellie. O problema é o que acontecerá depois que elas nos encontrarem, porque eu
também não subestimo o primeiro clã ao qual pertenci.
Não tenho como responder a isso, mas
também não preciso porque dois vampiros enormes e musculosos assumem os bancos
dianteiros, o motorista fazendo com que o banco pressione minhas pernas.
- Prontas para mais algumas horas de
viagem? - O vampiro motorista fala. - Não pararemos de agora em diante, então
apertem os cintos.
Kat revira os olhos e eu não
respondo, tentando arranjar uma posição confortável para as minhas pernas.
Depois que o vampiro no banco do passageiro (Eu não faço ideia do nome dele, já
que nunca fomos apresentados) passa alguns minutos tentando escolher uma
estação de rádio, o carro arranca e tomamos a estrada.
A música romena alta demais que toma
o carro me impede de dormir por algumas horas, ao contrário de Kat, que pega no
sono menos de meia hora de estrada depois. Ela definitivamente está mais
cansada que eu e precisa de muitas mais horas de sono. Tudo que eu posso fazer
é olhar a estrada passando e as estrelas que brilham, pedindo para serem
admiradas, ofendidas pelo mundo aqui embaixo tirar a atenção que deveria ser
delas. A lua ainda é nova, pequena demais para ser uma fresta, mesmo que esteja
começando a aparecer.
Dou um salto com a aparição
repentina, chamando a atenção do vampiro no banco do passageiro. Tento fingir
que foi apenas um espasmo natural, mas minha expressão, em um misto de animação
repentina com assombro, me trai.
- Tudo certo aí atrás? - O vampiro de
olhos injetados e feições graves pergunta. Concordo com a cabeça, tentando me
fingir de cansada - Você não teria algum tipo de comunicação que nós deixamos
passar, teria?
- Meu celular ficou no meu carro
destruído e vocês sabem que estamos protegidas de feitiços de localização.
Existe algum tipo de comunicação além dessas?
- Vindo do Réquiem, eu não duvido de
nada. Acho que você deveria vir aqui para a frente para que nós dois possamos
ficar de olho.
- Qualquer coisa desde que eu possa
abaixar essa maldita música.
Uma risada grave escapa dos lábios do
motorista. O passageiro resmunga.
- Pode ficar quietinha aí atrás ou eu
me enfio aí junto com vocês duas e iremos até Vatra com meu nariz na sua nuca.
Reviro os olhos e volto a olhar para
a janela, como quem não quer nada. A centímetros do meu rosto, seguramente
refletido no vidro, está um dos muitos fantasmas que vem me visitar quando quer
falar sobre ele mesmo. Era um vampiro que morreu violentamente em uma briga de
clãs em 1734, se não estou enganada. Depois que surgiu no carro, do nada, ele
já começou a falar sobre si mesmo, após uma breve reclamação por não ter me
encontrado onde sempre me procura, em casa. Ele começa a contar a mesma
história de sempre, sobre a morte de sua irmã, e eu consigo saber o que ele
está dizendo mesmo sem prestar atenção. O coitado já está beirando a
insanidade, apenas por acreditar que ao me contar aquela história fará com que
eu sinta compaixão o suficiente para achar um corpo para ele.
Ele não é alguém que notaria que algo
está errado e sem poder abrir a boca ou fazer sinal algum, eu não posso pedir
ajuda, mas a sua presença faz com que uma ideia começa a surgir no canto da
minha mente. Se depois que nós formos devidamente presas, Deyah aparecer e eu
puder informar a ela todos os planos do clã romeno, a enviando para Sophie,
mesmo em troca de alguma coisa, o Exército estará um passo à frente. O problema
é que Deyah pode não aparecer nunca mais e eu não sei como chama-la, pelo
simples fato de que ela poderia estar em qualquer lugar do planeta agora,
físico ou não. Ela aparece quando quer e recentemente só aparece quando estou
com Persephone, observando tudo em silêncio. Eu acreditava que ela estava
esperando pelo momento em que eu precisaria dela para dizer o que quer, mas eu
preciso agora e não a vejo em lugar nenhum.
Praguejo contra o universo, por me
dar o conhecimento sem poder. Qualquer bruxa que possa ver espíritos sabe
exatamente como chamá-los, mas eu não. Eu dependo da boa vontade dos fantasmas
- do desejo das almas insanas soltas no mundo após uma temporada de férias no
Inferno. Para evitar bufar de frustração, concentro minha atenção no
vampiro-fantasma falador. A história dele, como já fez outras vezes, me faz
pegar no sono, com a cabeça virada para a janela. Só acordo quando o sol começa
a nascer e uma luz irritante atinge meu rosto. Quando percebo que os dois
vampiros nos bancos da frente estão conversando, não me movo, para poder ouvir
distraidamente.
- Duvido que seja possível matá-la
sem a ajuda de uma bruxa e vai ser bem difícil convencer qualquer bruxa a se
aproximar da gente outra vez. - O vampiro no volante comenta.
- Serkan sabe ser diplomático quando
quer. - O outro afirma - Essa “missão” é importante demais para ele.
- Não sei se estou confortável o
suficiente com o Inferno nos mandando fazer o servicinho sujo deles.
- SHHHHHH. - O segundo sibila - Quem
é você para questionar eles?
O vampiro motorista bufa.
- Eu só não entendo porque eles
simplesmente não destruíram o Réquiem enquanto a alma dela ainda estava sob o
domínio deles.
O outro parece ponderar por um
instante, mas fala com cuidado.
- Se o Inferno fosse fã de
aniquilação não estariam em guerra com a Morte há tanto tempo. Existem coisas
muito piores que a morte e o Inferno é especialmente dedicado em relação ao
sofrimento eterno. Se eles deram a ela alma de volta, ela provavelmente não a
queria tanto quanto fez parecer. E ela foi amaldiçoada, é controlada pelos
próprios sentimentos. Imagine o tipo de tortura que deve ser sentir tão
profundamente depois de um século de vazio? Ela foi liberada do Inferno geral
para ser presa no próprio.
Cansada de ouvir essa conversa,
espero um pouco e me viro para o outro lado, deixando claro que estou acordada.
Mas assim que faço isso, sou recebida por Kat acordada, com um olhar pacífico de
condescendência.
Piatra Neamț, Romênia
13 de fevereiro
Miranda
Apesar de eu desejar muito e de Persephone
dizer que consideraria, nós não pudemos realmente entrar em Piatra Neam
. O
solo sagrado é poderoso demais. Considerando eventuais problemas relacionados a
isso, a família de Persephone construiu uma casa nos arredores que
perturbadoramente me lembra a casa dos Cullen em Crepúsculo. Construída em meio
a diversas árvores altas, tem três cômodos no andar térreo com a maioria das
paredes de vidro (exceto as do banheiro), enquanto o andar superior é apenas um
espaço aberto com sacos de dormir e uma vista que inclui a cidade inteira. O
teto é de vidro. Dormimos sob a luz das estrelas, com a imensidão do universo
nos esmagando, exatamente como a família que criou o primeiro vampiro planejou.
Não que tenhamos dormido muito
ultimamente. Passamos dias e noites tentando descobrir qual o lugar seguro para
o qual o clã romeno levou Kat e Ellie. Sophie e o pequeno grupo que juntou
acabou perdendo rastro delas no meio da Romênia porque vários grupos diferentes
saíram do último ponto em que elas viram alguma coisa. Nós assumimos que eles
vieram para o norte, porque é onde eles costumavam se concentrar até o século
XIX, o que quer dizer que provavelmente estamos perto deles, mas ainda não
temos como saber quão perto ou aonde ir para achar as duas. Persephone visitou
a família e anunciou para as bruxas do norte que se algum vampiro procurar por
elas pedindo ajuda, elas devem entrar em contato com ela imediatamente.
Além disso, nós simplesmente
esperamos. Buscando por qualquer pista, sobrenatural ou não, da localização
delas. É frustrante que os feitiços que nos ligam não sirvam para nos localizar
e que a magia de localização esteja bloqueada. Por questões de segurança, ficou
definido que fizéssemos o bloqueio dos feitiços de localização, mas assim como
a maioria das precauções, ela tem dois sentidos. Uma fé sem muita base de que
Ellie e Kat ainda estão vivas é o que nos mantém em sentimento. Ellie não
morreria com facilidade, mas a fragilidade de Kat é algo que sempre passa por
minha cabeça. Mesmo que eu nunca diga em voz alta.
Esses pensamentos me distraem do
livro que estava lendo e balanço a cabeça para tentar afastar os pensamentos e
me focar outra vez. É um diário de um vampiro que viveu no século XV, que pelo
que dizem se meteu a desafiar o Inferno e morreu sem nenhum motivo específico
durante um eclipse. Ninguém sabe dizer o que exatamente ele fez para desafiar o
Inferno, mas a história dele é uma das muitas que usam para forçar obediência
aos vampiros. Não sei se acredito nela; se as coisas fossem tão fáceis para a
entidade lá de baixo, todas nós já estaríamos mortas. Não que eu entenda como é
possível que ainda não estejamos mortas. O sequestro de Kat e Ellie parece ter
sido o único ataque que aconteceu até agora e isso parece suspeito. Ainda assim,
eu leio o suposto diário do tal Caius. Kat disse ter lido muitos diários assim
quando era viva, para se preparar para ser uma vampira poderosa e respeitada no
Inferno. Traduzindo: Uma vampira obediente e que temesse o Inferno.
E eu estou divagando de novo. Fecho o
livro e resolvo descer. Ninguém está dentro da casa, mas Persephone e Sophie
estão sentadas na varanda com cristais à sua frente sussurrando feitiços de
olhos fechados. Não posso incomodar, mas fico parada na soleira da porta
tentando entender o que elas estão dizendo com tanta concentração. Enquanto era
viva eu tinha pouquíssimas aspirações, então ser vampira e viver até o ano de
2016 era algo que superava todos os meus maiores sonhos. Mas o maior problema
da imortalidade é o tédio e depois que descobrimos que ter a alma de volta faz
de Sophie uma bruxa imortal, eu fui tomada de uma inveja absurda. O que eu mais
queria na vida era ter nascido uma bruxa e fiquei obcecada com a ideia do que
eu poderia ter feito se tivesse poderes enquanto morava no circo. Sei que é um
sonho sem fundamentos, mas isso não significa que eu não esteja me esforçando
ao máximo para estar em contato com cada parte mística do meu ser. O poder de
Ellie reside no conhecimento, assim como o de Kat e o de Deyah enquanto ela foi
vampira. Eu também posso ser uma das pessoas mais poderosas do mundo se
recolher conhecimento suficiente.
- Nada? - Sophie pergunta abrindo os
olhos.
- Absolutamente nada. - Persephone
suspira - Não tem como cancelar o bloqueio, Sophie. Se fosse possível, todas
vocês estariam correndo risco.
- Eu não posso ficar sentada aqui
torcendo para que elas consigam fugir e voltem, Persephone. A chance de que o
clã descubra uma forma de destruir o Réquiem é muito maior do que de duas garotas
em corpos de adolescentes fugirem de um clã cuja importância baseia-se na força
física. E nas crueldades que cometem.
- Por isso o treinamento físico.
- Você acha mesmo que menos de um mês
de treinamento físico serviria para alguma coisa nesse caso? A única coisa
protegendo aquelas duas é Ellie não poder morrer. Não significa que elas não
estejam passando por todo tipo de tortura. - Sophie balança a cabeça tentando
apagar a imagem mental. Volta a olhar para os cristais. - Todo feitiço tem uma
brecha. Garanto que esse tem um buraco grande o suficiente para que eu enfie
minha mão lá dentro.
- Não é um feitiço. - Eu digo,
fazendo com que as duas se assustarem - É a ausência dele. Você não pode enfiar
a mão no vácuo.
Sophie franze o cenho e me avalia.
- Desde quando você se tornou especialista no assunto?
- Eu praticamente desenhei o encanto
para Persephone. - Resmungo.
- Isso faz com que você tenha alguma
ideia de como desfazê-lo?
Balanço a cabeça.
- É impossível.
Sophie bufa e começa a recolher os
cristais.
- Você tem passado tempo demais com
Persephone, Miranda. Nada é impossível e acreditar que algo seja vai
completamente contra tudo que estamos tentando fazer em primeiro lugar. Eu não
vou desistir porque Kat não desistiria, mesmo que uma de nós já estivesse
morta! - Ela exclama antes de se colocar de pé e deixar a casa, em direção à
floresta.
- Nossa. - Persephone diz, erguendo
sobrancelha - Para um grupo que odeia sentimentos vocês conseguem ser bem
passionais, às vezes.
- Sophie está frustrada. - Justifico,
mesmo sem vontade - Foi você que disse que ela é uma das criaturas mais
poderosas do mundo, agora não pode simplesmente dizer que ela não pode fazer
algo.
- Anotado! - Persephone responde,
sorrindo. - Como foi a leitura?
- Terrível. Apenas me convenceu mais
de que tudo é invenção do Inferno. Eles não simplesmente destruiriam alguém que
foi contra eles. Eles vivem na crença de que são invencíveis, insuperáveis, uma
ou outra revolta apenas reforça o universo de ódio no qual se sustentam. Matar
para mandar uma mensagem não é a coisa mais infernal a se fazer. Mentir, porém.
- Faz sentido. Mas só porque eles não
fizeram isso, não quer dizer que eles não possam.
- Não mesmo? - Pergunto, cruzando os
braços - Se o Inferno pudesse destruir uma alma sem a permissão do dono, por que
precisaria do corpo vazio para uma possessão?
Um raio cruza o céu e é acompanhado
por um trovão imediato. Só isso já seria estranho o suficiente, mas o dia é o
primeiro dia claro e ensolarado do ano. É claramente um sinal.
- É diferente quando a alma está em
posse deles, Miranda. - Persephone responde, as mãos indo ao crucifixo com as
12 pedras instintivamente.
- Não se ela tem um link na Terra,
Persie. Uma ligação com o mundo físico pode mudar tudo.
Vatra Dornei, Romênia
14 de fevereiro
Eleanor
Kat é jogada de volta no barracão com
um empurrão nas costas que a derruba no chão perto de meus pés. Está pálida
como a morte, mas não está suja de sangue.
- Vocês sabem que isso me deixa com
raiva quase tanto quando matá-la, não é? - Rosno para os dois monstros que a
buscaram mais cedo e a atiraram lá dentro.
- E que diferença isso faz com você
aí dentro? - Um deles responde. O sol às suas costas me impede de ver seu
rosto, mas não aperto os olhos para tentar enxerga-lo melhor.
- Não vou ficar aqui para sempre. E
quando eu sair, terei nomes e rostos marcados no cérebro.
O homem parece prestes a dizer alguma
coisa, mas o outro o cutuca e ele se interrompe. Com uma risada do fundo da
garganta ele bate a porta do barracão e me deixa sozinha com uma Kat ofegante.
Me aproximo da vampirinha e descanso sua cabeça em meu colo, afastando o cabelo
da testa suada.
- Adoro quão intensa sua raiva soa. -
Kat sussurra, quase em um sopro rouco - Como se você realmente pudesse
destruí-los com suas palavras.
- Não duvide que farei isso. -
Respondo, checando por ferimentos no corpo dela - O que eles fizeram?
- Ah, você sabe. A boa e velha sessão
de espancamento com chutes na barriga, peito e cabeça. - Ela engasga e leva um
bom tempo para que sua respiração volte ao normal - Mas eu devo dar os devidos
créditos ao clã. Eles desenvolveram método. Sequer um osso quebrado, nenhuma
ferida externa. Exceto por alguns hematomas na barriga.
Puxo o vestido em frangalhos que ela
usa para ver os tais machucados. Todo o torso claro de Kat está repleto de
hematomas roxos e azuis até perto do pescoço. Um deles tem formato de pé. No
outro eu consigo enxergar marcas de dedo. Preciso respirar fundo para segurar
as lágrimas.
- O que eles estão tentando fazer?
Kat precisa de um momento para
responder e responde com os olhos fechados:
- Estão apelando para meu senso de
autopreservação. Acreditam que eventualmente eu vou preferir me manter viva do
que manter você viva. Não importa quantas vezes eu diga que eu não sei como
matar você, então eu simplesmente não poderia ajudá-los nem se quisesse.
Ela tenta se mexer e acaba gritando
de dor.
- Kat, fica quieta e descansa, por
favor. É perigoso. - Minha voz soa cheia de pesar e eu me dou conta de que
comecei a chorar.
É simplesmente assim: Eu sou tomada
por um sentimento com toda vontade e ele escapa por meus olhos ou por outras
reações antes que eu consiga pensar em alguma forma de controlá-lo. Dessa vez
algumas lágrimas acabam caindo em Kat, o que faz com que ela abra os olhos.
- Ellie, não. - Ela sussurra,
parecendo exausta. A última coisa que ela precisa lidar agora é com
sentimentos. - Não precisa se preocupar. Nunca se ouviu falar de nenhuma
vampira que tenha morrido por baço rompido.
Esfrego o nariz.
- Viver com dor é tão ruim quanto. Estamos
há cinco dias em um buraco ridículo presas pelo clã que queria te destruir
completamente e você tem sido torturada em cada um desses dias.
- Não me importo. Sei que iremos sair
daqui e estou dolorida demais para me importar com coisas tão grandes. - Ela
responde, fechando os olhos outa vez. - Tudo que importa é que está quentinho e
confortável aqui e desde que você me mantenha onde eu estou, pegarei no sono em
breve e vou acordar melhor. Tenho certeza. Eles não pretendem me matar e eventualmente
vão se dar conta de que eu realmente não sei como matar você e desistir de me
machucar.
Eu sorrio com sarcasmo entre as
lágrimas que ainda não pararam de cair.
- Kat, eles não estão torturando você
para que você diga a eles como me matar. - Digo, agora tirando o cabelo dela do
pescoço - Eles estão tentando fazer com que eu me mate.
Piatra Neamț, Romênia
15 de fevereiro
Anika
Eu levo um tempinho para notar Selene
me observando, de tão concentrada que estou em tentar abrir a caixa que
encontrei no andar de cima. Está trancado com algum tipo de feitiço e eu
percebo logo que força física não vai adiantar de nada. Quando bufo em
frustração, vejo a garotinha, com as feições tão incrivelmente parecidas com as
minhas, me observando na porta da escada, com o rosto meio escondido nas
sombras.
- Isso é da minha família. - Ela
reclama quando encontra coragem para falar.
- Eu também sou. - Devolvo. - Isso
aqui era da minha avó e quando minha mãe morreu, se tornou meu por direito.
- Exceto pelo fato de que você também
morreu, então se tornou da minha linhagem.
- Eu pareço morta para você?
Ela balança a cabeça em negativa.
- Mas também não parece viva.
Aperto os olhos, olhando para ela com
toda a atenção. Selene é jovem demais para participar de muitos dos rituais que
nos envolvendo e absolutamente nunca está presente nos momentos em que falamos
abertamente sobre o Inferno, mas Persephone ainda deixa que ela participe de
diversos feitiços pequenos e sempre treina com ela, levando-a onde quer que vá.
Ela é uma bruxa poderosa. Jovem, mas
surpreendentemente poderosa. Persephone deixou escapar algo sobre tudo ser dela
um dia e como Persephone conhece o futuro e não dá indicações de que terá
herdeiras, ela é automaticamente uma bruxa herdeira. Me pergunto o que mais
sobre essa família eu ainda estou para descobrir.
- Certo, é seu então. - Pondero - Mas
me responda uma coisa: Isso significa que vocês já descobriram o que foi
guardado aqui dentro.
- Sim. - Ela responde.
- E...?
- Por que eu diria a você?
- Ah, não sei, Selene. Porque eu
poderia te matar em 5 segundos, é um bom motivo?
Ela engasga, mas em seguida sorri.
- Boa tentativa. Eu sei quando vou
morrer e não é pelas mãos de ninguém.
- De acordo com as suas previsões.
Meus planos podem ser um pouquinho diferentes.
- Você não me assusta.
- Não é isso que estou sentindo
daqui. - Respiro fundo, deslizando a língua pelos lábios com delicadeza - Seu
coração está disparando e seu rosto está cada vez mais vermelho. Você cheira a
medo. E a sangue. Doce, suave e inocente sangue que é particularmente atraente
para alguém que não se alimenta direito há tanto tempo. Eu teria te matado no
natal, sabe. Você era minha. E seu coração batia tão forte, tão desesperado
para ser parado...
- PERSEPHONE! - Ela grita, com a voz
várias oitavas mais alta do que a altivez que ela tinha antes.
Eu explodo em uma gargalhada que faz
com que minha barriga doa, mas estou feliz por ela ter reagido. Meu próprio
discurso estava me deixando terrivelmente próxima de seguir com minha ameaça
vazia. Não pretendia matar uma criança de 8 anos e definitivamente não a irmã
mais nova da nossa maior aliada, mas toda a conversa sobre o sangue e o coração
dela fez com que minhas veias começassem a doer. Sinto falta do sangue quente.
Espero poder experimentá-lo uma última vez.
Vatra Dornei, Romênia
18 de fevereiro
Eleanor
Acordo de repente com a luz que entra
entre as madeiras que formam o barracão. A manhã chegou de repente e parece
quente. Quente demais. Assim que me sento e esfrego os olhos vejo a palha
remexida e a ausência de Kat. Eles a levaram antes de amanhecer de novo e desta
vez eu estava exausta demais para acordar com o movimento. Enfio as unhas nas
mãos para não explodir de raiva. Se eu pudesse eu já teria derrubado cada
pedaço de madeira desse barracão e destruído qualquer um que tentasse tocar em
Kat com as minhas próprias mãos, mas é claro que eu não posso. Só vampiros
podem entrar e sair daqui sem serem conduzidos, o que é outro dos motivos pelos
quais eles costumam deixar Kat machucada demais para sair.
Fico de pé e começo a andar pelo
barracão para esticar as pernas. Chuto o chão enquanto ando fazendo buracos
maiores do que o esperado que resultam em uma poeira absurda. Me imagino
chutado a cara de cada dos membros do clã romeno. Me imagino destroçando eles
de dentro para fora, arrancando cada órgão não vital, antes de arrancar o
coração e entregar para os lobos que eles sempre mantem por perto. Assim que
penso neles, ouço um uivo. Cada pelo do meu corpo se arrepia. Nenhum lobo uiva
de dia, mesmo que ainda seja muito cedo. No mesmo instante sinto minhas veias
ferverem.
A pedra de safira sobre meu coração
esquenta e eu puxo a corrente para olhá-la. Não que eu precise olhar para ela
para ver o que minhas veias já acusam e meu pescoço já clama: Está negra. Kat
está sangrando. Minha visão fica vermelho escuro e eu corro até a porta do
barracão, mesmo sabendo que não vai levar a lugar nenhum. Rosnado desesperados
escapam dos meus lábios conforme minhas mãos arranham uma parede invisível que
recobre as paredes de madeira. É infrutífero, não tem como eu alcançar a porta
real abri-la e sair. Mas eu não paro. Continuo arranhando pelo que parece horas
e gritando até minha garganta doer. Eu ouço pessoas se aproximando, risadas de
desdém e amaldiçoo toda sua existência e cada respiração que eles dão. Meus
pulsos doem e eu desejo que eles quebrem, mas não paro. Não posso parar. Chega
ao ponto de eu não saber mais porque estou fazendo aquilo, só sei que preciso.
A razão me atinge quando outra parte
do meu corpo começa a doer e eu percebo que machucaram Kat em outro lugar. Um
grito aterrorizado sai de minhas entranhas, tão gutural que nem reconheço como
meu, tão alto que faz com que os lobos voltem a uivar. Minha alma estúpida me
prende aqui. A mesma alma que é a razão pela qual Kat está sendo torturada
enquanto eu permaneço viva. Indestrutível. Deslizo pela parede e caio no chão
com um baque. Minha raiva se transformou em lamento, meu corpo agora pertence a
minha tristeza. Minha maldição se tornou quem eu sou. Por meio segundo, uma
faísca dentro de mim, eu me permito imaginar o que aconteceria se eles
vencessem. Se eu me permitisse morrer. Kat morreria no segundo seguinte, mas
ela deixaria de sofrer. Eu poderia pensar em uma opção para que a alma dela
fosse salva. Talvez... Talvez eu pudesse negociar sua alma, em troca da minha
vida. Ela teria paz e o Inferno teria o fim da luta que estão tentando evitar.
O fim do Réquiem.
O meio segundo vai embora em um
instante. É de Kat que eu estou falando. Ela não quer paz. Ela não quer grandes
atos em nome de sua felicidade. Ela quer grandiosidade, vitória. Ela tem
orgulho do que fez e do que criou. E eu sou uma dessas coisas. Desistir não é
uma opção. Deixar que eles vençam muito menos. Salvar Kat não é enviar sua alma
para o céu. É mandar a alma de seus inimigos para o inferno. E eu farei isso
não importa o que aconteça daqui em diante.
Esse pensamento parece acalmar algo
dentro de mim. Alcanço a pedra em meu pescoço e respiro fundo. Sei que eles não
vão matá-la. Eles querem que eu me mate antes e eu não vou deixar isso
acontecer. Mesmo que ela esteja machucada e sangrando, em breve trarão ela de
volta e a deixarão sofrer em paz. E então eu darei um jeito para que ela
melhore. E pensaremos juntas em uma forma de sair daqui. Repito isso para mim
mesma mil vezes, de olhos fechados e tentando ignorar a dor que percorre meu
corpo indicando os lugares onde Kat sangra. Pescoço e barriga. Não sei o que
fizeram com ela, mas algo dentro de mim indica que provavelmente tem algo a ver
com os lobos.
Muito tempo se passa. Não vejo a
sombra mudando, mas o facho de luz solar que incide sobre minha pele muda de
posição. Não conto o tempo, conto minhas respirações e tento relaxar, meditar.
Preciso controlar meus sentimentos e pensar o mais racionalmente possível. O
que a Ellie, vampira sem alma que era o maior orgulho de Kat, faria? Como a
garota que congelava uma sala inteira com um olhar se mostraria digna de adoração?
No carro, pensei em pedir para os fantasmas que me perseguem que fossem atrás
de Sophie e contassem a ela onde estávamos, mas cada um dos fantasmas que
apareceu foi sem uso. Eles não conhecem Sophie e já estão tão loucos que
simplesmente não teriam como entender a importância disso tudo. Só existe uma
alma amaldiçoada na Terra que poderia me ajudar, mas Deyah desapareceu há semanas.
- Se ela aparecesse e me ajudasse eu
provavelmente faria qualquer coisa que ela quisesse. - Digo em voz alta. Minha
voz soa rouca após os minutos (Talvez horas) de grito seguidos de horas de
silêncio.
Estou tensa, então meu corpo não
relaxa ou se cura como deveria. Me coloco de pé outra vez e volto a andar para
relaxar. Preciso ficar calma. Consciente. Racional. Por todo tempo que
conseguir. Repasso lembranças e repito mantras internos. Procuro descobrir o
que fazer, mas sem permitir que um fiapo do ódio que sinto tome conta de mim.
Mais algumas horas parecem ter se passado quando eu me sento outra vez. Está
quente e mesmo que não sinta nenhum sintoma de desidratação, não ia reclamar de
ter um pouco de água.
Vou para o cantinho do barracão e me
sento com as pernas apertadas contra mim. Invoco um silêncio interior intenso,
que só está aqui agora por causa das horas de sentimentos extravasados e fico
tão quieta que poderiam pensar que morri. É por causa desse silêncio completo,
do fato de que eu poderia ouvir até os grãos de poeira caindo no chão, que eu
ouço os passos se aproximando. Normalmente, Kat é devolvida aos empurrões,
entre risadas cruéis e gritos de escárnio e seus carrascos evitam entrar no
barracão. Hoje, as coisas seguem de forma diferente.
Ouço a porta abrir, mas não me movo.
Meu coração dispara quando percebo que dois homens estão entrando no barracão.
Provavelmente acreditam que eu esteja dormindo, ou melhor, que seu plano deu
certo. Digo a meu corpo para ficar quieto, preciso ouvir Kat. Lá está ela. Os
batimentos irregulares e a respiração alta de alguém que tem os pulmões
machucados. O cheiro do sangue dela invade meu nariz e meu corpo arde em ódio
outra vez. Repito que meu corpo se acalme, quase gritando para ele. Não adianta
me permitir ser dominada pelo ódio agora, quando vou poder ter alguns frutos
disso em alguns segundos. Kat é depositada no chão a alguns metros de mim e um
gemido de dor escapa dela quando isso acontece. Os homens sussurram entre si,
mas o esforço para me manter calma é demais para que eu me concentre no que
eles estão falando. Como eu esperava, eles se aproximam. Um deles me chuta com
a ponta do sapato. Ainda não, Ellie. Ainda não. Outro sussurro e um deles se
abaixa para ficar mais perto de mim. Meus caninos surgem antes que eu possa
pensar no que isso significa. Ele me toca e então se aproxima para me cheirar.
Não leva nem um milésimo de segundo.
Minhas mãos vão exatamente para seu pescoço, conhecendo exatamente onde eu
preciso pressionar para que ele não tenha mais cabeça. Não preciso de
treinamento físico; tenho o elemento surpresa e uma raiva que recebi de
presente do Inferno. O vampiro acaba sem cabeça tão rápido que o outro sequer
tem tempo de cogitar sair correndo. A briga com ele dura um pouco mais de tempo
do que com seu colega, mas ele também não tem chances. Por mais fortes que
possam ser seus braços e seu abdômen, a cabeça continua sendo uma parte frágil.
Não a arranco, a estouro. Meu ódio por ele permite que eu o faça lenta e
dolorosamente. Cuspo no chão sujo de miolos quando termino. Humanos comuns fazem
coisas impossíveis quando recebem cargas de adrenalina e eu sou humana o
suficiente para me incluir nisso.
Chuto os dois corpos para fora pela
porta que deixaram aberta, pegando a cabeça decapitada pelos cabelos antes de
atirá-la para longe. Assobio para os guardas que ficam mais distantes do
barracão antes de fechar a porta com tudo. Só depois que faço isso é que me dou
conta de que meus braços atravessaram a barreira invisível enquanto eu segurava
a cabeça do vampiro morto. Não tenho tempo para me arrepender ou para
considerar o que poderia ter feito, quando olho para Kat ela é tudo que
importa.
- Isso foi... Incrível. - A frase soa
entrecortada porque sua respiração é completamente irregular. - Não que eu
esteja surpresa.
Neste ponto já estou sentada ao seu
lado, observando os ferimentos. Kat foi mordida pelos lobos. Primeiro no
pescoço e em seguida na barriga. Enquanto o pescoço só mostra marcas de
mastigação, a barriga foi dilacerada. O vestido que ela usava, que já estava em
frangalhos, agora está completamente rasgado do lado direito, com fios entrando
em contato com os órgãos expostos pelas mordidas.
- Eles te deram aos lobos? - A
pergunta sai engasgada.
Kat sorri, os dentes sujos pelo
próprio sangue.
- Lobos incrivelmente bem treinados.
Nem eu teria tanto autocontrole se tivesse uma presa pequena e desprotegida com
sangue fresco perto de mim.
- Mas os lobos se agitaram horas
atrás. Você não pode estar sangrando por todo esse tempo.
- Estou sim. Eles... - Ela engasga
com o ar e cospe sangue. Se ela não fosse vampira seria impossível que ela
estivesse viva, mas com a vida presa à alma no Inferno, ela segue assim até
conseguir sangue. Ou até perder todo o seu. Alguns segundos de respirações
fundas se passam antes que ela continue: - Eles estavam tentando provar a
teoria de que um vampiro pode sangrar até morrer. Mas tempo demais se passou e
eles resolveram que é melhor deixar você descobrir isso.
- Mas eles não querem matar você! Não
podem, porque sabem o que meu ódio é capaz.
Os olhos claros de Kat se fixam nos
meus. Ela está envolta em um manto de dor, mas sua mente está clara como a luz
do sol. Ela não tem o medo para impedi-la, não tem todo um grupo de sentimentos
para incapacita-la. É com uma clareza de voz quase completa e uma frieza
absoluta que ela diz:
- Eles descobriram, Ellie. Ou acham
que sim. Eles sabem como capturar sua alma e destruí-la com o auxílio de uma
bruxa, mas sabem que antes disso eles precisam destruir cada ligação física que
você tem na Terra.
- Que graças a Persephone significa
cada uma de vocês. - Tremo com a realização tomando conta de mim por completo.
- Eles estão indo atrás das garotas.
Kat fecha os olhos. É tudo que eu
preciso para saber que estou certa. Eu poderia explodir por mil sentimentos
diferentes, mas nenhum se fixa dentro de mim. Minha mente começa a trabalhar,
indo em mil direções diferentes, buscando uma solução para aquilo.
- Eu não posso deixar isso acontecer.
- Sussurro. - Não posso deixar que as matem por minha causa. Elas precisam ser
avisadas, precisam fugir... Precisam. - Minha voz morre. Se elas estiverem
sendo observadas como nós estávamos, elas estarão mortas antes que o dia
termine. Se é que elas já não estão.
Mas elas não estão, certo? Se
estivessem eu saberia, a ligação serve para isso. A pedra em meu peito continua
negra, mas considerando que a vampira que está bem na minha frente tem uma poça
de sangue onde seu corpo repousa, isso não quer dizer nada sobre as que não
estão aqui.
- Precisamos fazer com que você pare
de sangrar. - Digo, me aproximando de Kat. Tenho medo de tocá-la e fazer com
que desmaie de dor.
- Seus truques de Réquiem envolvem
uma forma de curar vampiros sem o uso de sangue humano? - Ela pergunta,
sarcástica, abrindo os olhos. - Porque você já deveria ter falado sobre eles
bem antes.
- Precisa existir uma forma, você não
vai morrer assim.
Ela parece tentar dar de ombros, mas
geme de dor antes de conseguir começar a se mover.
- Não é pior do que a última forma
como eu morri. - Seu olhar se anuvia por um instante - E eu estou tão contente
por você não ter cedido a pressão deles. Você será a última de pé, Ellie. Você
e Sophie. E eu acredito que vocês vão conseguir terminar tudo.
- VOCÊ ESTÁ DESISTINDO? - Grito,
querendo pegá-la pelo pescoço por isso.
Ela sorri outra vez.
- Eu perdi ao menos dois órgãos
internos vitais. Me reservo o direito de fazer isso.
- Precisa existir um jeito. - Rosno.
A raiva vai tomar conta de mim se eu não respirar fundo. Começo a soltar fatos
para me concentrar - Tudo que aconteceu nos últimos 181 anos. Toda a sua
história. Tudo isso não aconteceu para que você terminasse no meio da Romênia,
depois de ter sido atacada por uns lobos controlados por alguns idiotas.
- Pense assim: Estou sangrando até a
morte. Uma morte que pouquíssimos vampiros tiveram em todos os séculos desde
que o vampirismo começou. - Ela tosse outra vez, mas não chega a cuspir sangue
e demora menos para se recuperar. - Sempre temos humanos por perto. Não
gostamos de admitir, é claro, mas por mais poderosos que possamos acreditar que
somos, temos uma dependência absoluta aos seres frágeis que destruímos.
Quase não ouço a última frase, porque
desta vez a palavra humanos ressoa dentro de mim. E eu me sinto estúpida no
mesmo instante. É o motivo pelo qual eu não posso sair deste barracão, o motivo
pelo qual Olívia se sente claustrofóbica perto de mim, o motivo pelo qual se eu
der meu sangue para alguém e em seguida matar a pessoa, absolutamente nada
acontece.
- Kat. Nós temos sangue humano. -
Digo prendendo o cabelo em um coque - Você está olhando para cinco litros dele.
Ela franze o cenho antes de arregalar
os olhos.
- Você enlouqueceu. - Diz,
simplesmente.
- Momentos de desespero... - digo.
- Ellie, eu não vou me alimentar de
você. Nós nem sabemos se isso é seguro.
- Você está morrendo! Uma chance em
um milhão precisa ser agarrada.
- Ainda assim. Um vampiro se
alimentar do outro, é obsceno.
- Eu não sou uma vampira, Katerina
Petry. Não tenho sido há cinco meses.
- Continua sendo um ser imortal!
Para alguém que está sangrando e sem
um bom pedaço do corpo, ela consegue ser absurdamente firme no que quer. E para
uma vampira, ela consegue ser absolutamente irracional quando o assunto sou eu.
- Eu sou o que sou por causa de você
e estou aqui pelo mesmo motivo. Eu não vou permitir que você morra, não
interessa o que eu tenha que fazer a respeito.
- Ellie.
- Eles sabem o que sua morte fará
comigo, Kat. Eles temiam matar você por isso. Quer que isso aconteça? Quer que
eu me torne uma besta terrível porque você desistiu de tudo e se deixou morrer
por causa de puritanismo estupido e regras que ninguém mais respeitaria em uma
situação como esta?
Ela aperta os lábios. Quando levanto
a ponta da minha unha até uma veia em meu pescoço suas mãos correm para o meu
braço.
- Eu não poderia machucar você. - Diz
em um sopro de voz.
Pego sua mão e coloco entre as
minhas.
- Você não vai. Cada gota de sangue
que você beber será substituída no instante seguinte. Você poderia se alimentar
de mim por mil dias. Além disso, como você mesma gosta de dizer, você me criou,
Kat. Fez de mim quem eu sou. Sou sua para machucar e destruir porque devo tudo
a você.
Solto sua mão para alcançar meu
pescoço outra vez. Ela faz uma última tentativa, com um sussurro de não. Sua
expressão não aparenta tristeza, ou dor, ou nenhuma outra coisa. É uma espécie
de adoração. Já a vi olhando para mim desta forma, como se eu fosse mais um
conceito do que um ser vivo. Algo intocável. Eu não entendo. Nunca entendi. Antes,
porque não podia sentir. Agora porque não é o que sinto por ela.
- Nós já estivemos nessa situação
antes, lembra? - Sussurro quando minha unha alcança a veia saltitante em meu
pescoço. Lhe ofereço o pescoço ao invés do pulso porque ela precisa de todo
sangue que puder, o mais rápido possível. - Eu sei que você fingia daquela vez
e que estava na minha mente para garantir que meu sangue estaria a sua mercê. Mas
você sabe que não pode recusar meu sangue, Katerina. Sabe o que acontece quando
você me desafia.
Um filete de sangue escorre do meu
pescoço e eu vejo seus olhos escurecerem. Me inclino em sua direção, mas nem
preciso me abaixar por completo. Com uma força que não sei de onde vem, Kat se
senta e ataca meu pescoço como se estivesse tocando sangue pela primeira vez.
Eu me lembro da primeira vez que fui
mordida. A dor era como se duas agulhas enormes entrassem em minhas veias
rasgando tudo no caminho. O medo tomou conta de mim e eu desejava mais do que
nunca que acabasse. É completamente diferente agora. Primeiro, porque eu sei
que não posso morrer. Depois, porque eu conheço Kat. Sei o que ela é capaz e o
que ela fará. Finalmente, porque outra coisa acontece. Sou carregada por uma
sensação que conheço bem demais. Estive lá por anos e fui consciente disso por
muito mais tempo do que queria. Eu queimo, mas é muito mais que isso. Não é por
fora, não é fogo em mim. Eu sou o fogo.
Ainda sentindo os dentes de Kat em
minha pele e seus lábios sugando tudo que consegue alcançar, eu tenho um
instante de pânico. Minha alma não está mais no Inferno e ainda assim a mordida
dela me carrega para lá. Clica na mesma hora. Eu estou conectada com ela. Com a
alma dela. Enfio a mão entre seus cabelos e a pressiono contra mim com mais
força. Fecho os olhos. Ouço gritos e choro. Sinto o desespero, a dor e todas as
outras piores sensações que um humano pode experimentar. Nada vem com o impacto
que viria se eu realmente estivesse lá, se a ligação terrena não existisse. Eu
poderia afastar tudo para o fundo da minha mente, mas não faço isso. Estou na
alma de Kat. Se eu quisesse eu poderia simplesmente acessar as partes mais
obscuras e secretas da existência dela.
No momento em que penso nisso, ela se
afasta e para de joelhos à minha frente. Me observa com os olhos injetados e os
lábios sujos de sangue por um longo instante, antes de dizer:
- Eu estava tão dentro de você quanto
você de mim, Ellie. Não seja absurda.
Sorrio.
- Está melhor?
- Pergunta idiota. - Ela responde, se
colocando de pé e tentando arrumar o vestido rasgado - Você sabe que diabos
acabou de acontecer entre nós? Eu mordi você e nossas almas se conectaram.
Todas as buscas de Persephone sobre como nos conectar com a nossa alma no
Inferno. Como ir para lá sem perder nossos corpos. E a resposta era você. O
tempo todo. Você sabia disso?
Discordo com a cabeça.
- Não é como se eu permitisse que
vampiros me mordessem o tempo todo, Kat.
- “O Réquiem possui as chaves”.
- Pensei que significasse o
conhecimento sobre a saída.
- Mas é no sentindo físico da
coisa... - Sua voz morre aos poucos e ela para onde está, levando a mão à
testa.
A observo com meu corpo assumindo uma
sonolência natural. De repente, Kat volta a se ajoelhar ao meu lado e toma meu
rosto entre as mãos.
- Obrigada. - Sussurra, com a
respiração atingindo meu rosto e o cheiro do meu próprio sangue voltando para
mim. - Você é o ser mais incrível que já pisou nessa Terra e eu fico honrada
por você ainda acreditar que você é minha criação. Adoro você no sentindo mais
puro da palavra, Ellie.
Não permito que a sensação gostosa
dentro de mim se prolongue por muito tempo. Meus sentimentos são minha
maldição. Aceitá-los é decretar meu fim.
Katerina
Sendo tomada por uma languidez
delicada, Ellie pega no sono rapidamente, com a cabeça repousando sobre minhas
coxas. Seu corpo vai precisar de pouquíssimo tempo para repor o sangue que
acabou de perder, mas ela está febril e enrubescida enquanto seu sistema
imunológico trabalha.
O sangue dela dentro de mim queima
como se fosse ouro direto de uma caldeira, mas eu me sinto como se estivesse
viva outra vez. Parte de mim acredita que eu posso sair por aquela porta e
enfrentar cada um dos vampiros de guarda com meus próprios punhos, mas outra
parte sabe muito bem que isso é apenas insanidade causada pela proximidade que
estou de minha alma. Estou cheia de uma raiva infernal e meu corpo deseja fazer
qualquer coisa que faça a dor parar. Isso é o estado natural de um vampiro, mas
agora eu consigo vê-lo com clareza. Não existe sede me impedindo de ver o que
está acontecendo. Eu queimo. O sangue do Réquiem criou uma ponte entre mim e
minha alma e somos quase uma só novamente, mesmo que por um pequeno espaço de
tempo. Quem diria que a resposta que Persephone busca está na veia que pulsa a
centímetros de meus dedos?
Ellie se encolhe quando toco a veia
onde mordi. Não por dor, é apenas uma reação involuntária que ela tem quando
alguém perturba seu sono. A própria Morte considerou Ellie minha maior fraqueza
e em momentos assim, eu consigo entender porquê. Nós entendemos as fraquezas e
delicadezas uma da outra, nossos temperamentos e gatilhos. Fomos tudo que a
outra tinha por tempo demais. O sangue que corria entre nossas veias era como
um laço. E mesmo ela não sendo mais vampira, o laço não parece ter se afrouxado
- não que eu saiba por qual motivo. Ela é como um pedaço estranho de mim. A
parte de mim que continuaria vivendo e sendo indestrutível, mesmo depois que eu
fosse embora.
Fico feliz pelo que ela fez hoje. Sei
que é Felicidade, o sentimento - isso é quão próxima estou da minha alma. Me
envergonho por ter estado perto de desistir, mas tenho orgulho de ter
conseguido criar algo que me salvasse. A parte estranha é a certeza que tenho
dentro de mim de que se estivesse com uma versão humana com qualquer outra das
minhas doze vampiras agora, eu continuaria sangrando até a morte, por horas e
mais horas. Não que duvide do respeito que elas têm por mim ou da admiração,
mas o laço entre Ellie e eu é completamente diferente.
Pego a esmeralda descansando sobre
meu peito. Ela está verde e límpida agora o que significa que nenhuma das
meninas está sangrando. Suspiro aliviada, mas sei que isso não tira o risco que
elas estão correndo. Não muda o fato de que elas estão sendo procuradas por
cada um dos vampiros do Clã Romeno e que mesmo que elas nos achem, serão
recebidas por um acampamento pronto para matar cada uma delas antes de matar
Ellie. Nós precisamos arranjar uma forma de prepará-las. De avisar sobre o que
está acontecendo.
A sensação de inutilidade me fere por
dentro. Estou presa aqui e tive sorte de ter carcereiros tão sádicos. Eles
podiam ter me matado rapidamente hoje cedo e não haveria sangue de Ellie que me
salvasse, mas não fizeram porque queriam que eu sofresse. Me pergunto o que
farão quando procurarem por mim amanhã e descobrirem que sigo viva e
respirando. Apesar da ideia ser perturbadora, a ideia de ação me conforta.
Preciso sentir que estou fazendo algo. Bocejo, com a adrenalina no sangue abrindo
espaço para a satisfação. Coloco a cabeça de Ellie no chão delicadamente e me
deito ao seu lado, me aconchegando na curva que seu corpo encolhido faz, para
pegar no sono assim como fazíamos quando Pierre ainda era um bebê entre nós.
Piatra Neamț, Romênia
Kaylee
Quando as pedras voltam ao seu tom
normal e puro, estamos todas sentadas em um círculo no primeiro andar. Um
silêncio perturbador tomou conta da sala e cada um dos presentes parece tomado
por algum tipo de encanto. As pedras sangraram durante todo o dia. Nós fomos
acordadas pela sensação de formigamento no pescoço, que foi seguida pelas
pontadas na barriga algumas horas depois. Ficamos nessa sala, observando a
passagem do tempo e esperando por algum sinal do que estava acontecendo e onde
estava acontecendo. Quem quer que tenha sagrado sangrou durante todo dia e
agora parece ter parado de sangrar aos pouquinhos. Não tem como isso ser um bom
sinal.
- Agora é um bom momento para seus
poderes mediúnicos funcionarem, Persephone. - Sophie diz, finalmente quebrando
o silêncio desolado.
Olho para a falante com cuidado e a
pego roendo as unhas. Sophie não é uma pessoa que demonstra nervosismo com
facilidade, com sua fama de nunca sentir medo, mas os onze dias desde o
sequestro de Kat e Ellie e o fato de que durante todo esse tempo não
encontramos nenhuma pista de onde elas estão, está fazendo um estrago nos
nervos dela. Acho que ela preferiria que as meninas estivessem definitivamente
mortas e isso pudesse ser provado, porque aí ela poderia fazer outras coisas.
- Ah, eles estão. - Persephone diz,
com um suspiro - Só não sei se vocês vão gostar de ouvir o que eles têm a
dizer.
- Elas...? - Anika começa arregalando
os olhos.
A bruxa balança a cabeça.
- Não, não. Até onde sei, elas estão
vivas, apesar de eu não ter entendido completamente como. Elas provavelmente
nunca serão absolutamente honestas a respeito de como sobreviveram, mas isso
não é importante agora. O problema é outro e é bem mais complicado que isso. -
Ela se cala e observa a audiência.
Além de nós onze, que estamos no
mesmo círculo que ela, Amelie, Pierre e Selene observam tudo sentados em um
canto em silêncio. Apesar de serem considerados apenas acompanhantes nas
loucuras que estamos envolvidos, eles têm ajudado da forma que podem na busca
por Kat e Ellie, mesmo quando isso significa apenas ficar fora do caminho.
- Será que dá para você falar de uma
vez e parar de criar tensão desnecessária? - Charlottie reclama, antes que a
irmã o faça.
- Eles descobriram como capturar e
destruir a alma de Ellie. - Persephone diz. É possível sentir no ar que a sala
vai explodir em cochichos nos próximos três segundos, então Persephone levanta
as mãos antes que isso aconteça. - Mas antes de fazer isso eles precisam
destruir toda ligação física que Ellie possui na Terra.
- E o que isso significa? - Pergunto,
no silêncio que se segue.
- Eles estão vindo atrás da gente. -
Sophie responde, as feições obscuras. - Precisam matar todos nós. A começar
pela linhagem sanguínea principal de Ellie. - Pierre engasga e ela sorri. - É,
inclusive você. Depois eles vão destruir todo mundo que está ligada a ela de
outras formas. Ou seja, todas as doze.
- Mas você... - Charlottie interpela
- Não têm como matarem você.
- Eu sei, mas eles podem deixar para
se preocupar com isso depois que tiverem matado eles cinco. - Ela faz um gesto
amplo apontando Anika, as gêmeas, Tatiana e Pierre. - A prioridade agora é
manter vocês vivos. Precisam ir para um lugar seguro. Já que Persephone avisou
a tantas bruxas do norte onde ela está, vocês precisam ir para o sul o quanto
antes. Existe uma chance, nada pequena, de que eles estejam nos observando
durante todo esse tempo e de que possamos sofrer um ataque ainda esta noite.
E a explosão de cochichos deixa de
ser controlada. Segurança é a única coisa que gostávamos de fingir ter depois
de virmos para Piatra Neamț e ela deixou de existir agora que o clã que jurou
destruir Kat também pretende nos destruir
- Não existe lugar seguro próximo. -
Anika reclama - E se o risco é de que um clã de vampiros sanguinários atravesse
aquela parede de vidro agora e mate nós cinco, nós precisamos de um lugar
seguro imediatamente.
Incitados pelas palavras dela, todo
mundo encara a parede de vidro, onde nada além de um pôr-do-sol alaranjado
encara de volta. Como estou olhando para o lado dela, percebo quando Amelie se
levanta e limpa a garganta como sempre fazia antes de discursar aos
Apreciadores.
- Existe um lugar seguro próximo.
Estamos na barreira dele. - Ela diz, fazendo todas a encararem.
- Nós não podemos entrar em solo
sagrado, Amelie. - Digo, cuidadosamente.
- Podem, se as bruxas da cidade
concederem a proteção a vocês.
- VOCÊ SURTOU?? - Persephone rebate,
quase vermelha. - Nós não podemos simplesmente conceder proteção a vampiros
depois de 100 anos.
- Sua família inteira se preparou
para nos ajudar com nosso propósito durante todo esse tempo, Persephone. -
Sophie diz - Você vai deixar tudo se perder por causa de um bando de vampiros
selvagens simplesmente porque não quer conceder proteção a nós?
- Não é questão de querer, Sophie.
Piatra Neamț é uma das poucas cidades completamente seguras para bruxas na
Romênia. Deixar um vampiro entrar é abrir precedentes.
- Nós não vamos matar ninguém da sua
família, Persie. - Miranda diz, cuidadosamente.
- Anika estava ameaçando Selene não
faz 3 dias.
- Anika! - Sophie exclama. Todos os
outros olhares acusam a vampira.
Ela dá de ombros.
- Eu estava entediada. Não quer dizer
que eu realmente faria algo que colocasse todo nosso plano a perder. Ao
contrário de Persephone.
A bruxa vidente bufa de frustração e
olha para Miranda em busca de ajuda. Por mais próximas que elas pareçam estar,
ela parece não se dar conta de que quando a vida de Miranda está em risco, ela
não vai levar em consideração princípios dos outros. Persephone para de repente
e empalidece com uma noção repentina. Então balança a cabeça e encara Sophie,
compreendendo que ela é nossa líder.
- Um dia. Apenas por esta noite e o
dia de amanhã. Então nós vamos enviar vocês para um lugar ao sul ou descobrir
uma forma completamente segura de destruir todo clã romeno.
23 de fevereiro
Valentina
Não foi apenas um dia. Chegamos a uma
casa segura no centro de Piatra
Neamț no dia 18 à noite e na manhã do dia 19, todas as bruxas da cidade queriam
nossas cabeças arrancadas em praça pública. Como Persephone permitia vampiros
na cidade mais sagrada da Romênia? Com muito tato, a bruxa responsável por nos
colocar em Piatra Neamț conseguiu convencer as bruxas de seu clã a conversarem.
Persephone e Sophie ficaram responsáveis pela diplomacia e nós fomos proibidas
de pisar fora da casa enquanto elas não resolvessem as coisas. Como resultado,
estamos presas aqui há cinco dias. E sem nenhum avanço na situação Kat e Ellie.
Não sei dizer qual de nós está mais
impaciente, estando presas e encontrando uma bruxa de cara feia cada vez que
colocamos a cara na janela. Pelo menos estamos seguras, mesmo que seja da pior
forma possível. Estou na sala de estar, ouvindo música com o celular para
bloquear os sons dos passos sem rumo das outras meninas da casa e de Miranda brincando
com as facas que encontrou na cozinha e passou horas afiando. É óbvio na
postura dela que ela torce para errar a mira e quebrar a janela. Tenho os pés
sobre as costas do sofá, o corpo atravessado no assento e o pescoço balançando
perigosamente no fim dele. As facas passam sobre minha cabeça tão rápido que
tudo que eu consigo ver delas é um flash, quando sua lâmina é atingida pelo
fecho de luz da janela. Quase desejo que uma delas caia sobre mim para que eu
tenha uma desculpa que seja para beber uma gotinha de sangue.
Mas Miranda é boa demais nisso - com
mais de cem anos de treinamento. Mesmo quando me levanto abruptamente, com uma
cambalhota, ela simplesmente move a mão que está segurando a faca alguns
centímetros para cima e a lâmina passa muito longe de mim, apesar de eu
conseguir ouvi-la. Ela me encara com as mãos na bainha da última faca, erguendo
a sobrancelha.
- Não tem nada que você queira me
contar sobre as coisas que você tem feito com Persephone? - Pergunto, esperando
a revirada de olhos.
E ela vem junto com um bufo.
- Você
quer saber sobre minhas descobertas?
- Eu alcancei um nível completamente
novo de tédio, Miranda.
Ela faz uma careta antes de jogar a
última faca, entre o espaço do braço que tem a mão na cintura.
- Você deu azar. Faz cinco dias que
estamos presas nessa casa sem nada que não seja completamente mundano e
absolutamente entediante. Não tem como descobrir coisa alguma.
- Tem que ter algo que você não tenha
me contado.
- Duvido muito.
- Por favor, Miranda. Se eu não for
distraída com uma história agora, eu vou ser forçada a pegar uma dessas facas e
me ferir mortalmente só para poder sair e me alimentar.
- Você está blefando. - Ela diz,
cruzando os braços. Mas percebe no meu olhar que eu não tenho nada a perder e
completa: - Não vão deixar que você saia para se alimentar assim.
- Também não deixariam que eu
sangrasse até a morte. Especialmente quando uma de nós pode ter tido o mesmo
fim.
- Valentina!
- O que? Por que todo mundo fica
fingindo que não é uma possibilidade? Kat pode perfeitamente ter morrido
naquele dia e se isso aconteceu nós precisamos seguir em frente sem ela.
- Persephone disse que elas estão
vivas.
- Persephone também sempre diz que
não tem como ter certeza de nada.
Miranda faz uma pausa e me observa
com cuidado. Estamos as duas de pé no meio da sala de estar, na mesma altura,
com rosto quase idênticos. Somos gêmeas. Entendemos uma à outra como ninguém e,
se estivermos próximas, conseguimos nos comunicar sem palavras. Mas quando nos
afastamos, quando temos interesses diferentes, as diferenças entre nós ficam
óbvias demais.
- Você acha que nós conseguimos fazer
isso sem Kat? - Ela pergunta, depois de um minuto.
Pondero.
- Eu sei que nós temos a bruxa mais poderosa do mundo do nosso lado.
Além do Réquiem, que, se Kat realmente estiver morta, tem fúria o suficiente
para destruir o Inferno sozinha sem quebrar nenhuma unha. Persephone disse que
nós não precisamos ser treze para terminar o que começamos e se Kat escolheu
cada uma de nós é porque sabe que poderíamos fazer isso.
- Ela não escolheu nós duas.
- Não desistiu de nenhuma das duas
também.
Ela balança a cabeça e desvia o
olhar. Sinal claro de que quer me contar algo, mas não sabe como. Espero, mas
logo perco a paciência. Estou prestes a gritar que diga logo, quando ela fala:
- Persephone disse que seremos dez quando
descermos ao Inferno. E sete quando tudo acabar. Também disse que mudanças
drásticas acontecerão no Exército antes do equinócio de primavera.
Ergo a sobrancelha.
- Por que ela te conta esse tipo de
coisa e não ao resto do Exército?
- Ela disse que confia em mim. Eu
pareço me importar com ela e com o que ela tem a oferecer, ao invés de
simplesmente vê-la como uma ferramenta para nossos planos.
- Ela sabe que você é uma vampira que
na verdade só está buscando uma forma de ter poderes depois que receber a alma
de volta né?
Ela bufa e passa por mim para se
sentar no sofá.
- Duvido que ela saiba dessa última
parte. Mas também duvido muito que ela não tenha os próprios motivos para
confiar essas coisas a mim.
Me viro de vez para ela, finalmente
entretida.
- O que você quer dizer?
Miranda suspira.
- Você ouviu sobre Deyah. Conhece
Anika. Conheceu Bianka. Todas elas têm a mesma característica de nunca fazer
nada sem segundas intenções. Cada uma de suas vontades seguem princípios, cada
uma de suas ações exigem algo de volta. O fruto não cai longe da árvore, duvido
que Persephone não aja da mesma forma.
- E que você acha que ela quer? -
Pergunto, me sentando.
- Não é exatamente querer. É algo que
ela sabe e tem me escondido por algum motivo. Charlottie se aproximou dela com
a mesma velocidade que eu, e ao contrário de mim, Lottie será uma bruxa quando
completarmos nossos planos. Persephone tinha mais razões para tratá-la como
pupila do que a mim.
- Você tem alguma teoria sobre o que
ela sabe?
Ela discorda com a cabeça.
- O que é um dos motivos pelos quais
eu fico na cola dela o tempo todo. O que quer que ela saiba sobre mim pode
servir como minha forma de conseguir o que quero um dia.
Eu rio.
- Você definitivamente é pupila dela.
Miranda simplesmente dá de ombros e
nós duas caímos na gargalhada. Ainda estamos rindo quando a porta da frente é
aberta com agressividade e duas bruxas frustradas e uma garotinha entram na
sala, suadas e cansadas como se voltassem da guerra.
- Vou concordar com a teoria de
Miranda sobre a ligação com o Inferno estar na Romênia, mas vou corrigir para o
próprio Inferno é na Romênia. - Sophie resmunga assim que nos vê - Eu sinto que
acabei de ter três dias de debates com o próprio diabo.
- Bruxas romenas são ditas de serem
descendentes diretas de Lilith, então faça as contas. - Persephone completa,
parecendo tão exausta quanto a parceira.
Quando ela fecha a porta atrás de si
o ruído da chegada das outras vampiras que estavam espalhadas pela casa já é
próximo e algumas delas já estão na sala. Sophie e Persephone se sentam ao
nosso lado e a dona da casa pede que a irmã mais nova pegue um copo d’água para
ela. Quando Kaylee completa o grupo, chegando ao lado de Amelie, Persephone solta
um suspiro alto antes de dizer o que todas esperam:
- Vocês podem ficar. Por enquanto e
com algumas condições.
Selene chega com a água e Persephone
para de falar fazendo com que Sophie assuma:
- Nós prometemos que só manteríamos
vampiras na segurança da cidade até termos Kat de volta. Que nem todas vocês
ficarão aqui dentro. E que... - Ela faz uma pausa e fecha os olhos se
preparando para as reações - Nós destruiríamos o Clã Romeno.
Surpreendentemente, o Exército não
começa a falar como louco. Nós nos entreolhamos em um silêncio mortal. Estamos
cansadas, preocupadas e desesperadas por um pouco de ação. Destruir um clã de
centenas de anos parece algo extremamente estúpido a tentar se fazer, mas a
essa altura ninguém se importa mais. Sophie abre os olhos no silêncio,
surpresa. Ela busca pela irmã na sala e a vampira suspira:
- Como você pretende fazer isso?
- Ainda não tenho certeza. - Ela
responde, sincera - Nosso primeiro passo é mover as da linhagem direta para
algum lugar mais seguro. O conselho de bruxas decidiu que manter todas vocês
aqui é um risco para a cidade, já que os vampiros buscarão uma forma de atacar.
Quando a linhagem de Ellie estiver protegida, o resto de nós ataca. Por
enquanto, a prioridade é manter Ellie viva e isso significa manter a linhagem
em segurança.
- Qual o plano? - Anika pergunta,
sabendo que é a primeira a morrer.
- Sophie vai levar as gêmeas até um
lugar seguro no oeste. - Persephone diz, olhando para todas nós sem olhar para
ninguém especificamente. - Depois levará Tatiana para um lugar seguro no sul.
Pierre vai para Graz amanhã cedo - ele é suficientemente difícil de matar para
não ter problemas para viajar em segurança. Anika é a única que o conselho
permitiu que ficasse mesmo sendo a primeira a ser atacada. As outras vampiras
do Exército podem ficar aqui só até todas estarem seguras, depois tem que sair
para cumprir as outras partes do trato.
- Vocês vão me deixar sair do país
sozinho? - Pierre pergunta, completamente surpreso.
- Para um lugar seguro. - Sophie
sibila. - Mas você está à vontade para se colocar em perigo. Sabe que eu tenho
como encontrar você.
Ninguém diz nada. Que evolução.
- Uma coisa de cada vez, então. -
Sophie diz, batendo as mãos na coxa como se se preparasse para algo. - Amanhã
de manhã eu e as gêmeas deixamos Piatra Neamț. Eu vou usar um feitiço de
camuflagem antigo o que quer dizer que teremos que viajar da forma antiga. São
cinco dias andando até o lugar seguro.
- Ótimo. - Reclamo - Nada como passar
meu aniversário andando por uma estrada romena.
Sophie, que está ao meu lado, me
cutuca com o cotovelo e me lança um sorriso, não querendo dizer nada na frente
de Persephone. Sei o que significa no mesmo momento. Vamos encontrar uma forma
de comemorar a data no meio do caminho.
- Enquanto estamos viajando, seria
uma boa ideia que vocês fossem pensando em formas de ataque e em outras formas
de descobrirmos o paradeiro daquelas duas. Não é possível que o acampamento do
Clã Romeno não tenha chamado algum tipo de atenção. A Romênia não é um país tão
grande assim.
- Pode deixar. - Charlottie responde,
encabeçando as vampiras que não são da linhagem de Ellie.
Um silêncio se segue enquanto
procuramos algo mais a dizer, mas quando fica claro que nada mais precisa ser
dito, Persephone se levanta.
- Agora que está tudo definido seria
uma ótima ideia que vocês todas fossem dormir. Precisam estar descansadas.
Ninguém reclama e alguns boas noites
são trocados com todas deixando a sala no maior silêncio possível. Suspiro e
cutuco minha irmã, para que façamos o mesmo. Nos levantamos ao mesmo tempo, mas
Persephone toca o braço de Miranda antes que ela dê qualquer passo. Me viro
junto porque nossa conversa mais cedo definitivamente me deixou com vontade de
prestar mais atenção nesses momentos. Persephone olha para minha irmã com uma
espécie de admiração e algo mais, irreconhecível.
- Eu provavelmente não a verei mais,
então aceita um conselho de alguém que tem motivos bons para confiar na própria
intuição? - Parece ser algum tipo de piada interna, porque Miranda apenas sorri
e a bruxa-vidente continua - Escolha o fogo. Como meio e como fim.
Vatra Dornei, Romênia
26/27 de fevereiro
Eleanor
Já é noite alta e eu estou deitada no
meio do barracão, de braços abertos e encarando o teto quando o fantasma
aparece e tudo que consigo fazer é suspirar. Não é Deyah, mas sim uma faladeira
vampira que morreu há muito mais tempo do que eu poderia imaginar. Às vezes eu
queria que Kat não fosse tão firme sobre só conversarmos apenas na língua do
país onde estamos. Se eu não fosse fluente em finlandês poderia apenas desligar
a mente do falatório desenfreado do fantasma, mas entendendo tudo que ela fala
fica um pouco difícil. Kat ouve meu suspiro e ri.
- Tem ficado um pouquinho entediante
agora que eu não sou arrancada daqui para ser torturada todo dia não é? - Ela
pergunta do canto onde está.
Me sento e olho para ela,
enxergando-a com clareza de uma lua cheia que só agora começou a diminuir.
- Só um pouquinho. - Respondo,
sorrindo.
No dia seguinte ao ataque oficial a
Kat, eu me coloquei em frente à porta assim que ouvi passos dos vampiros do Clã
se aproximando. Quando a porta foi aberta violentamente eu perguntei no mesmo
instante se eles queriam ter o mesmo destino dos dois que vieram antes. Foi um
ataque fraco, eu sabia muito bem que o que fizera no dia anterior tinha sido
graças a um surto de adrenalina motivado pela raiva profunda que eu passei o
dia fermentando. Eles também perceberam isso e estavam prestes a retrucar
quando viram Kat sentada alguns metros atrás de mim. Eu poderia jurar que eles
empalideceram, se não fosse tão improvável. O que quer que eles acreditavam
sobre o Réquiem pareceu ter sido comprovado na forma como olharam para a
vampirinha que sustentou o olhar como se sua existência fosse o milagre que
eles acreditavam ser. Eles sussurraram um para os outros e saíram, nos deixando
em paz pelos dias seguintes. Dois guardas voltaram a vigiar o barracão a todo
tempo, mas de uma distância maior do que a que mantinham antes e sem falar nada
o dia inteiro.
- A parte mais difícil é tentar não
me obcecar pensando em como as meninas estão. - Digo, depois de alguns minutos.
É a vez de Kat suspirar.
- Elas têm Persephone e Sophie -
bruxas poderosas e boas estrategistas. Além de Persephone conseguir prever
perigos. As pedras não escureceram, elas estão bem.
- E por quanto tempo? E quão
prejudicial isso pode ser para os nossos planos? Não estamos perdendo diversas
janelas, presas aqui enquanto as meninas não têm como nos encontrar e não podem
vir sem se colocar em perigo?
Kat limpa uma mancha de poeira no
joelho, mesmo que nós duas estejamos completamente sujas. A situação dela está
ainda pior, com o vestido destroçando e vários nós tentando mantê-lo no lugar.
- É exatamente a vontade deles,
Ellie. Usar seus joguetes para nos distrair e fazer perder diversas janelas
importantes. Mas não significa que não teremos como entrar depois disso.
Precisamos de segurança, precisamos nos manter sãs. Quando acabarmos com as distrações
o ataque será direto.
- Nosso ou deles? - Pergunto.
Seus olhos faíscam.
- Depende de quem achar onde a
ruptura está primeiro.
Em resposta a isso, um trovão faz com
que o barracão estremeça e eu reviro os olhos quando ela ri. As tentativas do
Inferno de ficar lembrando que pode nos ouvir conseguem ser irritantes. Não
adianta saber nossos planos e não conseguir fazer nada diretamente para
impedi-los. Acreditem, eu saberia sobre conhecimento sem poder. E nesse ponto
eu sei bem que o Inferno é mais palavras que ação.
- Você tem alguma ideia de que dia é
hoje? - Pergunto para Kat, depois de um tempo.
- Não. Só sei que faz mais de duas semanas
que estamos presas aqui. Talvez já tenha completado três.
- Isso significa que talvez tenhamos
perdido o aniversário das gêmeas. - Digo, de alguma forma realmente chateada.
Kat, que tem estado nos melhores dos
humores desde que passou pela experiência quase morte, ri alto outra vez.
- Valentina vai cobrar caro por isso.
- Ela diz, ainda sorrindo - Culpa sua que não deixa de mimar suas meninas.
- Elas merecem, são vampiras maravilhosas.
- E obedientes. - Ela diz em uma clara provocação.
- Se isso foi uma referência a eu ter
criado as vampiras da minha linhagem como filhas, eu vou ignorar você. Vou
ignorar você completamente.
Outra risadinha se segue a isso e eu
volto a me deitar. Kat fica em silêncio por um instante e eu fecho os olhos
pensando em Anika, Valentina e Miranda. Junto com Pierre e Tatiana, elas são as
primeiras a serem mortas caso queiram mesmo me matar - o que faz delas as pessoas
que mais precisam estar seguras agora. Eu realmente me importo com aquelas
três, mesmo que a relação que tenho com elas seja tão diferente da que eu tenho
com Kat e Sophie. Especialmente as gêmeas - elas precisaram conquistar seu
lugar no Exército, já que só foram aceitas porque Kat não queria perder Anika.
De volta ao tempo em que ela se importava muito com respeitar os desejos de
Deyah.
- Sabe quem mais fazia aniversário
dia 27 de fevereiro? Deyah. - Kat diz, como se estivesse ouvindo meus
pensamentos - Ela nunca comemorava no dia, só na lua nova seguinte. Hoje eu
desconfio que ela tivesse muitos motivos para isso, mas na época eu acreditava
que era simplesmente porque eram as noites mais escuras. Ela sempre pedia de
presente histórias, coisas sobre nós que ela ainda não sabia ainda, informações
que ela pudesse usar. Nos reuníamos em um círculo, fazíamos uma fogueira e
contávamos as histórias com a promessa de que quando a fogueira apagasse, tudo
voltava a ser segredo, ninguém pensaria mais sobre as histórias dos outros. É
claro que Deyah pensava e às vezes falava sobre. Os segredos eram o presente
dela.
- E foi graças a eles que eu descobri
onde ficava a Casa da Morte.
Eu estava deitada com os olhos
fechados e as palavras de Kat vinham tão carregadas de nostalgia que eu
conseguia ver as imagens com clareza e era carregada para a imagem onírica que
elas transmitiam. Quando eu ouço a voz de Deyah, tão distinta quanto a de Kat
no silêncio da noite, eu me sento no mesmo instante, ouvindo meu coração
disparar pela emoção de ver a única fantasma que eu precisava.
- Deyah! - Exclamo, notando com o
canto do olho que assusto Kat - Por favor, me diga que você ainda está sã o
suficiente para nos ajudar.
O espectro revira nos olhos e cruza
os braços.
- Estou sã o suficiente para não
fazer isso de graça.
- Preciso que você encontre Sophie e
diga onde nós estamos.
- Desde quando Sophie me ouve?
- Ouvirá sabendo que você é a única
forma que temos de nos comunicar. Nós estamos presas aqui há semanas e sem
direito a feitiços de localização.
Ela arregala os olhos, parecendo
perceber agora o estado em que nós nos encontramos.
- Nossa. Você passa alguns dias na
França e quando volta tudo mudou. Como vocês se meteram nessa?
- Seu antigo clã encontrou Kat.
Deyah franze o cenho.
- Isso é algo que eu preciso saber
mais sobre.
- E você tem todo direito de fazer perguntas,
depois que nós sairmos daqui. Encontre Sophie e diga onde estamos. Peça que
venha com todo o Exército exceto Anika, Tatiana e as gêmeas, que precisam ficar
em segurança.
Ela balança a cabeça afirmativamente,
mas não desaparece.
- Você não está esquecendo nada?
Esfrego as têmporas com frustração.
- O que você quer? Um pedido de por
favor?
- Felicitações. - Kat diz, mesmo que
só esteja acompanhando uma via da conversa - Feliz 1227º aniversário, Deyah.
Apesar de você ter deixado de envelhecer há um tempo absurdo atrás e morrido há
mais de 100 anos.
Me surpreendo quando a fantasma sorri
e diz antes de desaparecer:
- Diga a Kat que agora ela me deve um
segredo.
Rodovia 17B, Romênia
27 de fevereiro
Sophie
- Eu ainda não acredito que vocês
realmente fizeram isso. - Miranda reclama pela milionésima vez.
É realmente complicado enfrentar uma
viagem de 5 dias com a consciência de Perspehone no meu pé de ouvido, mas ela
falou várias vezes que nós não deveríamos atacar ninguém, que Valentina não
deveria se alimentar além do que o Exército tinha combinado, etc, então eu já
esperava que fosse passar os dois dias seguintes falando sobre como não
deveríamos ter feito isso.
- Nós não o matamos, Mi. Eu apenas
queria sentir a emoção do ataque outra vez. - Valentina responde, ofegante.
Estamos andando pela rodovia e o dia já quente parece mais quente ainda.
Ultimamente os dias tem sido assim, ora quentes, ora com tempestades
incompreensíveis. - Você precisa admitir que foi muito legal ver a reação dele
quando eu surgi do nada. Nós devíamos ter aproveitado os poderes de Sophie
antes dessa maldita regra de só se alimentar com gotinhas.
- Eu não acredito que você a apoiou
nisso, Sophie. - Miranda diz, exasperada quando eu rio do que sua irmã disse -
Vocês viram o que aconteceu quando quebraram a regra de Kat e ela explicou
muito bem porque deveríamos segui-la a risca. Vocês quase colocaram a perder
meses de dedicação à nossa limpeza.
- Eu mal me alimentei! E não lembro
de ter destruído ou multiplicado coisa alguma!
- Mas esteve bem perto. Sangue quente
é viciante, Valentina. Você poderia não ter conseguido parar.
Valentina está prestes a responder
outra vez quando eu ergo as mãos em um movimento tão violento que as duas
congelam.
- Já chega vocês duas! - Digo. -
Miranda, eu devia a sua irmã um presente de aniversário. Vocês estão
completando 127 anos em uma rodovia vazia no meio do nada. Merecem um descanso
de regras que, por sinal, não foram quebradas. Você pode ter um presente agora,
pode escolher qualquer coisa.
Ela hesita. Ainda quer gritar sobre
termos atacado um homem que estava consertando o carro no acostamento, mas a
ideia de ter o que quiser de presente hoje a anima.
- Veremos alguma coisa que eu queira
quando passarmos por algum lugar habitável nesse fim de mundo. - Miranda diz
com um suspiro e continuamos andando.
O lugar habitável só é encontrando
depois de quase duas horas andando em silêncio e é apenas um posto de gasolina
com uma loja de conveniências. Decidimos entrar de qualquer forma, eu poderia
usar qualquer tipo de refresco. São um pouco mais de duas da tarde, mas a loja
de conveniências está vazia. Depois de uma rápida deliberação sobre devermos ou
não entrar com o feitiço que nos esconde, acabamos optando por entrar normalmente
o que surpreende o vendedor. Ele olha duas vezes para o posto de gasolina e
fica confuso quando não vê carro nenhum. O ignoro e entrego minha mochila para
Miranda.
- O cartão de crédito está aí.
Comprem a loja inteira se quiserem, mas façam isso com cuidado. Vocês ainda
estão em risco de vida. Vou ao banheiro por dois minutinhos. - Aviso.
As gêmeas concordam com a cabeça ao
mesmo tempo, fazendo com que pareçam mais iguais do que já são. Deixo as para
escolher a bugiganga que queiram e entro no banheiro feminino imundo
exasperadamente. Encaro o chuveiro em um dos cubículos decidindo se seria uma
boa ideia molhar o cabelo, já que estou aqui. A outra opção seria enfiar minha
cabeça embaixo da torneira, o que se mostra uma péssima ideia assim que eu abro
a torneira e vejo a água saindo amarela. Quando caminho até o chuveiro, noto
algo no espelho com o canto do olho, mas ignoro e sigo para onde ia com um
suspiro.
Depois de deixar a água cair por um
tempo e vê-la mais clara, coloco a cabeça embaixo do chuveiro com cuidado para
não molhar as roupas. A água fria contra a minha cabeça me relaxa imensamente.
Apesar de ter viajado muito a pé quando entrei no Exército e cobrir distâncias
absurdas em considerável pouco tempo, o novo milênio e seus confortos tirou de
mim essa habilidade. Sou forte demais para ficar mal por uma viagem de cinco
dias a pé, mas isso não quer dizer que eu não me sinta cansada às vezes. Pelo
menos mentalmente. Depois do que parece tempo o suficiente desligo o chuveiro e
torço o cabelo, percebendo que agora ele tem cheiro de ferrugem. Volto até a
bancada com as pias e encaro o espelho. Só depois que checo se não estou
laranja ou mais suja é que eu lembro que deveria evitar aquele espelho.
- E eu aqui pensando que me livrara
de você. - Reclamo já começando a me afastar do lugar onde estamos.
- Eu tenho uma mensagem de Ellie. -
Deyah solta, sem rodeios.
Congelo onde estou e me viro de volta
para onde o reflexo está.
- O que você disse?
- Elas estão em um acampamento a
alguns quilômetros de Vatra Dornei. Eu indico o caminho caso você não seja
orgulhosa demais para isso.
Eu me aproximo cuidadosamente do
reflexo e presto toda atenção que não prestei no mais de um ano desde que Deyah
escapou do Inferno. Trinta minutos depois, saio da loja de conveniência acompanhada
das gêmeas embaixo de trinta quilos de bugigangas, além de mais coisas enfiadas
em suas mochilas. Saímos pelos fundos, sem retornar para a rodovia, porque
Deyah indicou um caminho mais simples pela floresta que a cerca. Ellie
especificou que eu deveria levar todas as meninas, exceto, Anika, Tatiana e as
gêmeas, mas nós estamos perto demais do acampamento e de Vatra Dornei, para que
eu deixe a chance passar. O plano é manter as gêmeas escondidas em algum lugar
e usar meus poderes para tirar Ellie e Kat de onde elas estão presas sem causar
muito caos. Depois, mais fortes, voltamos para destruir o Clã Romeno, como
prometemos às bruxas de Piatra Neamț.
- Uma missão de resgate! Esse é o
tipo de emoção que eu queria de aniversário! - Miranda exclama depois de alguns
minutos na mata fechada.
- Pois nem se anime. - Aviso logo -
Vocês duas vão ficar o mais longe possível do acampamento.
- Mas por quê? - Valentina pergunta
com a voz mais mimada possível.
- Porque tudo que o Clã mais quer é
ter vocês duas na mão para matar.
- Eles precisam matar Anika antes. -
Miranda resmunga.
- Eles podem perfeitamente prender as
duas para matar assim que matarem Anika. Ellie disse que não era para levar
vocês e vocês só estão indo porque eu não quero perder a chance de encontrar as
duas por tecnicidades.
- Mas Sophie, nós podemos ajudar! -
Miranda reclama.
Eu não subestimo as vampiras mais
novas do Exército. Elas não são pessoas eternamente com 11, 12 ou 13 anos, são
vampiras centenárias presas em corpos com essas idades. Mas eu também não
ignoro o fato de que elas estão em corpos pequenos e facilmente destrutíveis,
sendo máquinas mortíferas ou não.
- Manter vocês duas vivas significa
manter Ellie viva. Então vocês ajudam muito se mantendo vivas e seguras. Não
inventem de cometer atos heroicos. A ideia é fazer tudo o mais rápido possível.
Elas suspiram ao mesmo tempo e não
voltam a dizer nada. Caminhamos entre as árvores pelo que parece tempo demais.
Eu vou à frente e preciso lembrar o tempo todo que as meninas não se regeneram
como eu e que eu não preciso de vampiras sangrando no momento ou eu esqueço de
avisar sobre espinhos e de quebrar galhos que poderiam machucá-las. Mesmo
estando consideravelmente perto e encontrando todas as referências que Deyah me
passou, quando vejo a casa ao longe, com fumaça saindo de uma chaminé, o sol já
está se pondo e um frio perturbador já me envolve, me deixando irritantemente
arrepiada.
- Certo. - Digo, me virando para as
gêmeas cerca de vinte metros antes do limite da mata. - Não saiam daqui. Eu vou
fazer um reconhecimento do lugar e volto para dizer o que vocês precisam fazer.
Elas concordam com a cabeça e eu vou
em direção ao fim da floresta com todo cuidado possível. Estou com o feitiço de
cobertura, mas ainda assim escondo o corpo atrás de um tronco para observar o
lugar. É uma casa de apenas um andar, construída em madeira - chamar de
acampamento foi um exagero profundo de Deyah. Em frente, dois homens fortes e
inacreditavelmente altos estão parados em guarda. A entrada da casa está tomada
por cinco carros e pelo que eu descobri sobre o Clã Romeno isso provavelmente
indica que todos ou grande parte dos os membros do clã estão no local. Ao
fundo, um pouco distante de onde eu estou, um barracão de madeira, construído
de qualquer jeito é vigiado por dois outros homens. Percebo na hora o que isso
significa.
Com todo cuidado do mundo, me
movimento ainda dentro da floresta para me aproximar o barracão e observá-lo
com mais cuidado. Depois de ter certeza de que os dois homens não se movem de
jeito algum, me aproximo do fundo do barracão e tento colar o ouvido na madeira
para ouvir algo. Minha cabeça bate em uma barreira invisível. Tento furá-la com
a mão, mas isso também é impossível. Engulo um bufo de frustração quando lembro
que não deveria fazer barulho. Resolvo ver se consigo usar a magia dentro da
barreira. Grama daninha cresce em volta do barracão e eu me afasto um pouco
para fazê-la crescer. Rapidamente ela se transforma em hera e cresce pela
parede do barracão, invadindo as frestas na madeira. Faço pequenas flores
crescerem nela, como as flores que Kat me viu fazer crescer quando descobri que
tinha meus poderes outra vez em 98.
- Sophie. - Ouço em um sussurro
embargado vindo do barracão.
A voz de Kat era tudo que eu queria
ouvir e eu sinto que meus ombros relaxam com um peso que eu nem sabia que
estava lá. Encontrei ela. Kat está viva. Não precisaremos continuar sem ela.
Antes de começar a pular de animação, lembro que ainda existe trabalho a ser
feito. Elas estão vivas, mas ainda estão presas. Não me arrisco a dizer nada e
começo a me afastar do barracão para voltar até onde as gêmeas estão. De
repente, ouço um rosnado ao meu lado seguido de um uivo que me faz tremer. Bem
atrás do barracão, presos em estacas decididamente fracas demais para eles,
estão cinco gigantescos lobos que não podem me ver, mas decididamente sentem
meu cheiro. Eu ouvi sobre os lobos do clã, mas eles assustam muito mais ao
vivo. Saio com cuidado da presença deles, quase sem respirar para não chamar
atenção.
- Eles podem ter trocas de turno e
isso deixaria o barracão sem vigia por alguns minutos. - Miranda diz quando chego
onde as deixei e explico o que vi.
- É uma possibilidade, mas como
faremos para tirá-las de lá? Existe uma barreira invisível em volta do
barracão.
Elas pensam por um minuto antes de
Miranda ter um segundo de iluminação.
- Os vampiros do clã provavelmente
entram no barracão. É a explicação mais lógica para como Kat estava sangrando
há alguns dias. E eles só precisam manter Ellie presa. Kat seria morta
facilmente se tentasse fugir.
- Onde você quer chegar? - Pergunto.
- Talvez a barreira só afete quem tem
alma. Persephone me contou algumas coisas sobre isso quando me contava sobre o
solo sagrado em Piatra. Vampiros descobriram como criar lugares onde só eles
possam entrar também.
- Mas Ellie está lá.
- Ela provavelmente foi conduzida por
um vampiro e só pode sair se for conduzida por um vampiro. E não pode ser Kat,
se ela foi conduzida lá para dentro também.
Eu ouço a sugestão na voz dela antes
que ela a formalize.
- Não, Miranda. Tem que existir uma
forma de fazer isso sem colocar vocês duas em risco.
Ela dá de ombros.
- Você pode voltar para Piatra e
estudar com Persephone uma forma de quebrar a barreira. Ou...
- Não.
- ...Nós esperamos a mudança de
turno, você me camufla e eu tiro as duas de lá em segurança. Você tem poder o
suficiente para camuflar Kat e Ellie também e nós poderemos sair como se nada
tivesse acontecido.
- Eu não vou colocar vocês em risco.
- Repito, o mais firme que consigo.
- Então escolha a outra opção,
Sophie. Volte para Piatra e deixe uma Kat já pronta para fugir para trás. Nós
duas sabemos que se você fosse optar pela segurança em primeiro lugar, teria
voltado antes de qualquer coisa.
Cruzo os braços e tento pensar em outras
opções. Tem de haver outras opções. Eu não posso colocar as gêmeas na linha de
frente. Por outro lado, Miranda está certa. Eu sou poderosa o suficiente para
esconder todo mundo. E se ninguém do clã estiver por perto para ver, seria
praticamente como teletransportar as duas dali para a segurança. Fecho os
olhos.
- Certo. Nós vamos. Mas à noite, em
uma possível troca de turnos. Você entra, traz as duas até a floresta e nós
corremos. E é você quem vai ouvir as broncas de Ellie depois.
Miranda sorri de excitação, mas
Valentina pigarreia.
- Mas e eu?
- Você foi transformada primeiro e
seria a primeira a ser morta. Ficará aqui. Em segurança. Eu já estou indo
contra cada célula de mim deixando Miranda ir.
- Se ela for, eu também tenho que ir.
- Valentina rebate, fincando o pé no chão.
- Val, por favor. Não faça a vampira
mimada agora.
- Você precisa de toda ajuda que
puder, Sophie. E se é uma questão de segurança, Miranda não pode ir também.
Solto um gemido de frustração.
- Por que vocês duas são tão
completamente impossíveis?
- Porque somos vampiras de Ellie. -
Miranda diz, sorrindo - E mesmo que ela tenha feito “recomendações”, ela sabe
que tendo a chance de salvá-la, nós faremos isso.
Eu solto um suspiro cansado e desejo
já ter terminado com isso tudo. Aponto o caminho para as duas e deixando as
mochilas para trás, andamos até onde eu observei a casa à distância. Já está
escurecendo, então esperamos em silêncio. Eu tenho usado o feitiço que esconde
nós três por tanto tempo que no momento minhas veias pulsam mais rápido. Eu sou
poderosa o suficiente para aguentar por muito mais tempo, com minha energia
sendo renovada por minha alma o tempo todo, mas mesmo para mim a magia tem seu
peso.
Quando a iluminação fica por conta da
lua, a porta da casa é a aberta e algumas pessoas carregando postes acesos com
fogo saem. Cada uma dessas tochas é fincada em um ponto, iluminando a parte de
fora da casa quase completamente. Uma delas é fincada a passos de onde estamos
e nós três prendemos a respiração ao mesmo tempo. Quando todo o espaço é
iluminado, eles voltam para dentro, mas uma das pessoas - uma mulher tão alta
quanto os vigias - se aproxima dos guardas da prisão de Kat e diz algo a eles,
fazendo com que eles a acompanhem. Ela repete a ação com os guardas da porta e
de repente todos estão dentro da casa.
- Quanto tempo você acha que temos? -
Miranda pergunta.
- Não faço a mínima ideia, por isso
precisamos ir logo. Valentina fica aqui vigiando e pode gritar caso veja algum
sinal deles. Nós duas vamos agora.
Valentina concorda com a cabeça e eu
e Miranda saímos para as luzes das tochas. A primeira parte é fácil. Caminhamos
com cuidado até o barracão. Penso nos lobos e tenho medo que eles notem nossa
chegada, mas como eles já estão uivando enlouquecidamente e sendo ignorados pelo
clã, eu imagino que não serão muito problema. Quando paramos na porta do
barracão, eu testo outra vez se consigo tocar a madeira, mas minha mão atinge a
barreira invisível com força outra vez. Para a minha surpresa a mãozinha de
Miranda alcança a porta sem problemas e depois de enviar um olhar de “Eu
avisei” para mim, ela entra no barracão com todo cuidado. Tiro a camuflagem
dela quando ela está dentro.
- Miranda! - Ouço Ellie exclamar - O
que eu diss...
- A gente não tem tempo! - Miranda
rebate. - Me dê a mão e vamos sair daqui imediatamente.
Kat é a primeira a sair e eu a incluo
na camuflagem para que possa me ver. O peso invisível cai das minhas costas de
vez quando ela sorri entre toda a sujeira que toma seu corpo. Miranda e Ellie
saem de mãos dadas logo depois.
- Venham - Sussurro - Com cuidado.
Mas assim que começamos a andar os
rosnados dos lobos aumentam. Eles estão ali para vigiar Kat, provavelmente já
conhecendo o cheiro do sangue dela muito bem. A saída dela os desperta e
transforma seus uivos sem sentido em um plano de ataque.
- Vá na frente, Kat. - Ellie diz, o
mais baixo que consegue. E quando Kat hesita: - Agora.
Kat corre na direção de Valentina. Como eu
tinha previsto, as estacas que seguravam os lobos eram fracas demais para efetivamente
segurarem eles. Ellie e eu nos colocamos entre eles e Kat em uma tentativa
ridícula de segurá-los. Dois deles pulam por cima de nós, enquanto os outros
parecem entretidos por mim e por Ellie. Me viro e coloco fogo nos lobos atrás
de mim, que estão indo em direção a Kat. O feitiço que eu mantive o dia inteiro
já caiu, não há mais camuflagem.
- Fogo! - Miranda exclama parecendo
então se dar conta de tudo.
Sequer tenho tempo de vê-la correr:
Um lobo ataca meu braço e a dor me cega por um instante. Rapidamente ele queima
também e sai de perto de mim para viver a dor que sente. Me viro para Ellie,
que tem outro lobo em seu encalce e pouco para fazer além de tentar correr.
Outro movimento com as mãos faz com que esse também queime. Falta apenas um
lobo que eu não consigo encontrar em lugar algum. Me viro para onde Kat correu,
mas antes que possa ver qualquer coisa o grito de Valentina corta o ar.
Ellie e eu corremos até a entrada da
casa e somos recebidas pela pior cena possível. Miranda está entre o último
lobo e cinco vampiros que acabaram de deixar a casa. Ela está parada na
varanda, tem uma tocha nas mãos e a aponta em direção ao lobo para impedir que
ele a ataque. Antes que eu possa gritar a avisando sobre os vampiros, eles
arrancam a tocha das mãos dela e atiram no chão. Miranda grita percebendo o que
está acontecendo. Eu tento o primeiro feitiço de ataque que vem na minha cabeça
e em seguida diversos outros, mas uma risada cruel me indica que dentro dos
limites da casa, magia não funciona.
Os vampiros cochicham entre si. O
mais alto está segurando Miranda pelos cabelos. Eu cometo um erro que sinto que
vai me perseguir para sempre, vejo o desespero em seus olhos. Uma espécie de
medo que só os muito conscientes têm. Ela sabe onde sua alma está. Sabe para
onde vai quando morrer. Tudo isso acontece em um milésimo de segundo; os homens
dão de ombros e atiram Miranda no chão - não sem antes fazer o tipo de machucado
que atrairá a atenção do lobo. Eles voltam para dentro da casa, deixando
Miranda ser atacada pelo mostro no mesmo segundo.
Ellie tenta correr até onde ela está,
mas eu sou forçada a segurá-la quando Miranda grita não, a obrigando a ficar
exatamente onde está. Ela luta e é forte como nunca foi. Está sendo consumida
pelo ódio naquele exato momento.
- EU NÃO TEREI COMO TIRAR VOCÊ DE UM
LUGAR SEM MAGIA E TE PRENDER OUTRA VEZ É EXATAMENTE O QUE ELES QUEREM. - Grito,
segurando Ellie mais força.
- ELA PRECISA SAIR DE LÁ! - Ela grita
de volta, com uma dor que eu nunca ouvi antes.
- Sophie! - Ouço a voz de Miranda e
me volto para a varanda. A última sílaba do meu nome soa aguda, doída - Fogo.
Fico confusa, mas seus olhos se
voltam para a tocha e eu sei o que ela quer. Em seguida tudo que sai de seu
corpo são gritos de dor. Solto Ellie e ela fica tão atônita que não se move.
Alcanço a tocha que está no chão e dou uma última olhada em Miranda. Mas ela já
se foi. Seus olhos estão estranhamente escuros, mais do que eram em vida e eu
consigo ver as luzes refletidas neles como estrelas.
- Nós vamos salvar você. - Eu
sussurro antes de atirar a tocha em seu corpo.
O lobo que se alimentava dela uiva
quando o fogo também o atinge e vai em direção à porta fechada por ajuda. Seus
arranhões desesperados derrubam a porta e ele corre para dentro, deixando um
rastro de fogo pelo carpete. Dou alguns passos para trás. Meu sangue pulsa com
a força do sangue derramado de Miranda e sei que um sacrifício por nós acabou
de ser feito. Digo três palavras - apenas três palavras - e santifico o solo
onde o sangue de Miranda tocou. Foram eles que quiseram derramar sangue na área
protegida. Um sangue conectado ao meu, um sangue que também era meu. Eles
criaram sua própria danação. Agora não podem mais sair.
A casa é tomada pelo fogo que começou
no pelo do lobo. Não me movo - meus olhos ficam presos na entrada da casa.
Gritos não me assustam, o cheiro de carne queimada não me dá ânsia. Sei que
Kat, Valentina e Ellie se juntam a mim, mas não digo nada. Sei que Ellie chora,
porque consigo ouvir. Mas nada disso faz diferença. Quando eu acessei o feitiço
que nos ligava, olhando pela pedra contra a luz da lua, eu pensei estar vendo o
Inferno, onde as almas de minhas irmãs descansavam. Mas eu estava vendo aquele
momento. Uma previsão tão clara do futuro quando as que Persephone afirma ter.
O Inferno é pior do que qualquer coisa criada por mim. A certeza de que eu
estava enviando quem enviou Miranda para lá para o mesmo destino fazia com que
minha alma se sentisse um pouco menos pesada.
Todas nós estamos olhando para a casa
com a mesma obstinação, mas de repente eu sinto o olhar de Kat sobre mim. Nem
preciso olhar de volta para saber no que ela está pensando. Eu disse a ela que
na primeira vez que matei alguém, mesmo gostando de saber que ela queimava, não
fiquei para assistir. Mas isso é diferente e eu sou alguém diferente agora. Eu
preciso ficar até o último grito ser ouvido. Estarei olhando quando a última
chama apagar.
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