“Nós somos os selvagens. Tolos
curiosos presos em um canal. Nós somos os selvagens. Criados pelos lobos, nós
uivamos para a lua.”
Bahari (Wild
Ones)
As Crônicas de Kat:
Wild Ones
Bucareste, Romênia
21 de janeiro de 2016
Charlottie
- Você é aprende rápido. - Persephone
diz, enquanto mexe em uma caixa de pedras.
Me viro com expectativa quando fecho
a porta dos armários, mas ela está falando com Miranda, é claro.
- Eu só sou morbidamente curiosa e
espertinha. - Miranda responde, sem sequer dar um sorrisinho orgulhoso.
Eu acho que um dos motivos pelos
quais Miranda foi a vampira que mais se aproximou de Persephone nas últimas duas
semanas é que tudo que ela tem demonstrando pela bruxa vidente é curiosidade em
seu sentido mais puro. O resto de nós têm uma espécie de respeito que beira o
medo por ela, com a possível exceção de Kat.
- Isso é tudo que basta para que
alguém não só adquira conhecimentos, como saiba usá-los. - Persephone responde,
sorrindo.
Suspiro.
- Você vai precisar de mim para mais
alguma coisa? - Pergunto, sem a mínima delicadeza.
Ela literalmente me encheu de
perguntas e me fez correr atrás de coisas o dia inteiro para quando eu termino,
encher Miranda de elogios. Não que eu precise da afirmação dela para alguma
coisa, mas não também não preciso ficar aguentando esse tipo de coisa agora.
- Não, Charlottie. Você pode ir. -
Ela diz, sem olhar para mim ou agradecer.
E eu que não tenho alma. Pego meu
casaco e deixo a casa dela sem dizer muita coisa, decidida a ir andando até
nossa casa para poder pensar.
As últimas semanas foram bastante
intensas. Persephone começou o que ela havia anunciado dois dias depois de nos
encontrarmos. Nós normalmente passamos por treinamento físico e meditação
profunda por horas a fio, começando às onze da noite. Ela acredita que quanto
mais exaustas e fracas estivermos, mais perto estaremos de nossas almas no Inferno.
Ela também nos proibiu de nos alimentarmos, exceto por uma bolsa de sangue a
cada semana. Considerando que o que aconteceu no Natal deixou todas nós com o
pé atrás sobre desobedecer a regras, ninguém fez nada para discutir ou escapar de
nenhuma das ordens dela.
Na segunda semana, Amelie desembarcou
em Bucareste com uma lista de vampiros espalhados pelo mundo, que ao receberem
a notícia, deveriam espalhá-la e enviar sua resposta de volta para nós. Esta
última semana então foi usada para espalhar a notícia e responder às respostas.
Persephone disse que cada vampiro que quisesse sua alma de volta precisava
enviar uma amostra de seu sangue e qualquer coisa que pudesse ajudar na guerra e
agora sua sala de trabalho começa a parecer um pequeno laboratório de exames de
sangue. As respostas - que começaram a chegar menos de um dia depois das
informações terem sido divulgadas - também nos fizeram perceber que corremos
perigos novos. Nem todos os vampiros do mundo estão satisfeitos com nosso plano
de soltar almas do Inferno e muitos deles acreditam que estamos colocando suas
vidas em perigo ao nos enfiarmos em uma guerra dessa dimensão. Por isso, e já
que todos sabem onde estamos, o treinamento físico continua, mas ao invés de
ser comandado por Persephone, agora é comandado por Amelie. A líder dos
Apreciadores tem um corpo esguio e surpreendentemente forte. Lidar com vampiros
a ensinou uma coisa ou outra sobre lutas corpo a corpo.
Enquanto treinamos, Sophie, Ellie e
Persephone se sentam a alguns metros de nós, conversando e compartilhando
conhecimentos. Sophie e Ellie são quase indestrutíveis, então não precisam
treinar com tanta avidez. Sophie está convencida de que precisamos encontrar
uma forma de nos mantermos vivas que não seja o sangue para que entremos no
Inferno com segurança, mas ainda não conseguiu pensar em qual. Elas passam
horas em cima de anotações e de livros, pesquisando feitiços antigos.
Como os treinamentos físicos
acontecem à noite, quando Persephone se sente mais segura, temos os dias
relativamente livres. Digo relativamente porque Persephone não nos deixa
descansar de jeito nenhum. Normalmente, ela chama algumas de nós para fazermos
serviços para ela ou, depois de descobrir nossas origens, nos enche de
perguntas sobre as situações que enfrentamos. Considerando que vivi como
vampira por 52 anos antes de me juntar ao Exército, ela tem muita coisa que
arrancar de mim. De acordo com Kat, todas essas situações são apenas Persephone
tentando nos quebrar. Vai existir um momento, possivelmente uma noite, em que
tudo que ela está fazendo fará sentido e ela finalmente vai revelar o que
planeja com isso tudo. Provavelmente vai acontecer antes do que espero, mas já
não aguento mais esperar.
Enquanto isso tudo acontece, nos
perguntamos porque nenhum tipo de ataque do Inferno aconteceu. Sophie diz que
eles estão preparando o bote, que devem saber de algo que ainda não sabemos,
então precisamos estar prontas para qualquer tipo de ataque e a qualquer
momento. Mas eu não paro de pensar no que Persephone disse sobre uma ruptura,
sobre os fenômenos que continuam acontecendo, mesmo depois da saída de Ellie.
Penso em todas as coisas ruins que habitam o Inferno e em como o mundo parece
cada vez mais sombrio - e a conclusão que chego é a de que o Inferno tem coisas
maiores para se preocupar do que treze vampiras adolescentes.
25 de janeiro
Sophie
Independente de qualquer coisa que
Persephone tenha dito, eu continuo tentando acessar o interior das pedras todos
os dias. Não consigo parar de pensar que estão nas pedras a essência das nossas
almas, que elas já eram magia representativa muito antes daquela noite. Eu só
preciso saber a profundidade do feitiço para ter certeza de que estou certa.
Por isso, assim que o jantar - mais
uma cerimônia ou uma reunião, já que só Pierre, Amelie, Persephone e Selene
comem - termina, aproveito um momento de desatenção para ir ao meu quarto. Com
as luzes apagadas e a cortina da janela aberta, coloco a pedra, ainda presa ao
meu pescoço contra a luz da lua minguante e sussurro palavras que roubei de
anotações de Persephone. Quase pulo de animação quando percebo que deu certo:
sou atraída para o interior da pedra em meio segundo.
Inicialmente, a escuridão faz jus ao
nome. Não consigo ver nada. Mas, como em um sonho, consigo sentir. O desespero
vem de dentro de mim, rugindo como um leão. Me faz tremer, suar e finalmente
causa uma dor física, como se meu coração estivesse sendo tomado. Quando eu
começo a acreditar que vou morrer, as imagens vêm. Uma atrás da outra, uma
sequência infindável de mortes, as mais violentas, sendo gravadas em minha
mente como fogo. O cheiro de sangue e de carne queimada repentino faz com que
minha garganta se feche. Tudo parece tão familiar que eu sinto o horror do que
sou. A próxima coisa que eu sinto é um tapa na mão direita com toda força.
- O que eu disse sobre tentar acessar
o feitiço? - Persephone resmunga, indo fechar as cortinas.
- O que eu disse sobre me dar ordens
e entrar no meu quarto? - Rebato.
Ela apenas parece surpresa.
- Isso é o que eu chamo de
recuperação rápida.
Eu estou escondendo o pingente de
lápis-lazuli sob o suéter, então preciso levantar os olhos para voltar a
encará-la.
- O quê? Você acha que isso me
abalou?
- Eu espero que tenha abalado ou eu
vou começar a acreditar que você continua sem alma.
Reviro os olhos e faço um sinal para
acender as velas pelo quarto, provando que minha alma está regendo meu corpo
perfeitamente bem.
- Pareceu um sonho bem vívido e foi aterrador
por um momento, mas eu tenho uma consciência muito clara de quem somos para me
permitir ser abalada por uma mera visão de nossas almas.
Persephone morde o interior da
bochecha, parada de costas para minha janela, agora com as cortinas completamente
fechadas. Me observa como se eu fosse um estudo, antes de seus olhos se
afastarem de mim, em direção à chama da vela mais próxima.
- Eu sempre esqueço que você também
esteve no Inferno por um tempo. - Ela diz, ainda olhando para a vela. - Me
pergunto o que você viu.
Dou de ombro.
- É mais sentir do que ver. Você só vê algo se
estiver lá por tempo o suficiente para existir além das sensações.
- Como você consegue falar sobre isso
como se tivesse acontecido com outra pessoa? - Ela continua olhando para a vela,
sem deixar mostrar o que sente.
- Já acabou. Machucou enquanto durou,
mas agora não está mais acontecendo.
- E você não tem medo de acontecer
outra vez?
- Eu não tenho medo. Nunca.
Ela finalmente olha para mim. Com
desdém.
- Isso é impossível.
- O que eu tenho a temer, além de
situações que minha própria mente cria? Você mesma disse e mais de uma vez: Eu
provavelmente sou a criatura mais poderosa do planeta. Me destruir é o mais
perto do impossível. E por ser a bruxa que está viva por mais tempo, sou a
bruxa com mais conhecimento. Qualquer medo que eu possa ter não é nada além de
ideias etéreas e eu não tenho nenhuma intenção de permitir que elas cresçam
dentro de mim.
Uma pausa se segue. Eu sinto que
Persephone quer se aproximar de mim, mas fica onde está. Ela é o tipo de pessoa
que prefere expor a vulnerabilidade dos outros, do que demonstrar a própria.
- Certo. - Ela diz com um movimento
de cabeça. - Você não tem medo por você. E quanto às outras pessoas? Àquelas
que você chama de irmãs?
- Você está sugerindo algo?
Ela bufa.
- Quantas vezes eu tenho que dizer
que não posso saber o que vai acontecer com exatidão?
- Você ainda quer dizer que eu devo
temer por elas.
- Sentir medo é bom, Sophie. Garante
a autopreservação e a consideração pelos outros.
- Não quando medo é tudo que você
sente, Persephone. - Ela fecha a cara, então eu volto a falar sobre mim: - Eu
queimei meu maior medo quando eu tinha 12 anos e depois disso não voltei a
sentir medo de nada.
Ela sequer pisca, continua me
observando com o semblante sério.
- Imagino como estar em sua mente por
um dia, Sophie Hass. Talvez nós fiquemos próximas o suficiente para que eu
entenda você.
Sorrio.
- Você não tem medo de descobrir o
que existe dentro de mim?
- Ah sim, bastante. Mas o medo em mim
é combustível.
- E eu é quem sou peculiar.
Antes que Persephone possa responder,
ouvimos o relógio começar a bater as onze. Suspiro, nada feliz em ter que
começar tudo outra vez. Mas ela finalmente sai de onde estava e deixa o quarto,
sem dizer nada para mim, mostrando que absolutamente nada a impedirá de fazer o
que precisa. Definitivamente não o medo.
1º de fevereiro
Katerina
Eu consigo ouvir a risada dela
cortando o ar a centenas de metros de distância. O som continua me deixando
nervosa, mas agora porque ele faz com que tudo pareça ser muito real. A
existência dessa risada faz com que meus planos sejam viáveis e palpáveis - e
coisas físicas são mais fáceis de destruir.
- Você está bem? - Olívia pergunta
andando do meu lado e vendo minha expressão.
- Cansada, frustrada, com sede e com coceira
em cada parte do meu corpo. Bem não é
exatamente a palavra que eu usaria. Você?
- Fico repetindo para mim mesma que
poderia ser pior; poderia estar chovendo.
Estamos enfiadas em uma floresta ao
norte de Bucareste procurando por uma erva que Persephone diz que só cresce
nessa época do ano e pode ser útil para nos manter mais fortes. Ela mandou
cinco de nós na busca, enquanto as outras oito se dividiram entre ajudá-la a
organizar as amostras de sangue na sala de trabalho e pegar mais amostras de
sangue no correio. Pierre veio conosco porque não suportava mais ficar em casa
nos observando fazer coisas.
Eu acredito que tudo isso não passa
de outro dos planos dela para nos deixar cansadas e mais suscetíveis a soltar
alguma coisa importante durante uma das leituras de mãos que ela agora resolveu
fazer todos os sábados. Ela disse que precisa saber tudo sobre nós para que nos
aproximemos de nossas almas, mas até o presente momento não chegou perto da
exposição simples e clara que Bianka fez em 1917. A única razão pela qual eu
continuo fazendo tudo que ela manda e incentivando as meninas a fazer o mesmo é
porque eu preciso entender a mente de Persephone para poder falar com ela a
altura. Além disso, eu sei reconhecer que quem possui mais conhecimento deve
dominar o poder e eu posso saber muito sobre coisas que já aconteceram, mas o futuro
continua sendo um território inalcançável para mim, que Persephone domina.
- Gosto do seu ponto de vista
otimista. Queria que ele fizesse com que terminássemos isso logo. - Respondo
para Olívia dando alguns passos para a frente.
Um
grito pelo meu nome vindo de nossa frente me faz adiantar muito mais o passo.
Ellie segue bastante adiantada junto com Pierre, Anika e Juliana. Não foi por
vontade própria que fiquei para trás com Olívia e Naomi, eu estou cansada demais para andar
tão rápido quanto as outras conseguem. A rotina estabelecida por Persephone e
mantida por Amelie, me fez descobrir qual é a sensação de estar doente. Me
sinto enfraquecida e dolorida em cada parte do corpo, como se tivesse sido
espancada constantemente por dias consecutivos - o que na verdade é uma
descrição bem precisa do que está acontecendo.
Não é como era quando estivemos
presas em Cianne: a languidez fazia com que a dor fosse quase imaginária,
produto de ficar muito tempo parada. A sensação de estar sendo puxada para o
Inferno vinha como um sonho. Extremamente perturbador, mas um sonho. No
momento, a dor é a coisa mais real que sinto e a sensação é a de estar entrando
no Inferno pela porta da frente, tendo conhecimento de todas as coisas ruins
que esperam lá dentro. O que, pensando agora, faz bastante sentido. Eu não sou
uma pessoa feita para atividades físicas intensas e definitivamente não sem
tomar sangue há dias. E algo me diz que o fato de Persephone saber disso é o
que tem feito com que ela tenha desenhado seu treinamento da forma que ele é.
- O que você acha? - Ellie pergunta
quando paro ao lado dela.
Eles acharam uma clareira, ou melhor,
uma saída da floresta para um rio de água corrente e agora estão parados no
limite entre a floresta e o lugar.
- O que eu deveria estar vendo? -
Pergunto, soando mais ofegante do que queria.
- De acordo com Persephone, as ervas,
mas você não está e pode adivinhar o porquê?
Olho para ela pronta para reclamar
que isso não é hora para charadas e perguntinhas, mas seus olhos são da cor do
rio e quando eu olho para eles, entendo tudo na hora.
- O rio corre em cima das ervas. Por que
ela não disse nada?
- É Persephone. - Anika responde -
Ela nunca diz coisa alguma a respeito de nada do que vai fazer, mesmo sabendo o
que vamos fazer muito antes que o momento chegue.
Naomi e Olívia nos alcançam neste momento.
Observo o rio, cujas águas correm muito rápido. Que eu saiba, a única de nós
que nada bem é Kaylee e ela não está aqui.
- Vamos testar a profundidade. -
Ellie anuncia, arrancando um galho de uma árvore próxima.
Todos nós a acompanhamos até a beira
do rio e observamos enquanto ela enfia o galho, de cerca de um metro e meio
(quatro centímetros menor do que eu) na água. Sua mão toca a água e continua
seguindo até o cotovelo.
- E ainda não chegou ao fim. - Ela
anuncia, se esforçando muito para que seu braço não seja puxado pela
correnteza.
- Ah, ótimo. - Resmungo - Precisamos
mergulhar mais de um metro e meio numa correnteza terrível para conseguir uma
erva que Persephone precisa e nem fomos informadas sobre.
- Pelo menos a água é cristalina e
podemos ver que a erva realmente está lá.
- O que não adianta nada porque
nenhuma de nós sabe nadar bem o suficiente para chegar lá embaixo e não ser
carregada. Como diabos nós vamos conseguir essas ervas?
Um silêncio se segue enquanto Ellie
se levanta. Claro que nenhum de nós sabe como faremos isso, beira o impossível.
De repente, Anika encara um Pierre de cabeça baixa, evitando o sol.
- Nós sempre podemos mandar a cobaia.
- Diz, apontando para ele com o dedão.
Pierre se assusta e dá um passo para
trás.
- Eu sou o pior nadador entre vocês!
- Reclama - E eu tenho uma intuição sobrenatural de que essa erva não se dá bem
com demônios.
- Nós não temos como ter certeza
disso sem testar, não é? Você é o mais atlético de nós e pode perfeitamente
ficar em alguns minutos embaixo d’água sem muitos danos.
- Além disso, se tudo der errado,
seria a perda menos significativa. - Olivia completa, objetiva.
- Vocês tiveram melhores
oportunidades de se livrar de mim. Não fariam isso me jogando em um rio.
- Pierre está certo. - Ellie diz,
provavelmente pela primeira vez na vida - Ele é o pior nadador e não vai servir
de nada perder ele agora. O mais lógico é que a pessoa mais alta e com menos
chances de morrer desça.
Quase engasgo.
- Ellie!
- É a opção que faz mais sentido,
Kat.
- Não vejo você nadar há décadas.
Isso é insano.
Ela não responde a isso. Olha em
volta e eu a observo considerando todas as possibilidades.
- Não temos corda, nem cipó. Eu
realmente precisava de algo para me manter no lugar. - Ela passa as mãos pelo
corpo e percebe que está usando um cinto sobre o vestido indiano.
Arregalo os olhos.
- Ellie, isso é ridículo.
Ela interrompe o movimento de remover
o cinto e olha para mim. A Ellie que eu transformei, enfiaria o filho pelo pé
aos gritos na água para que ele pudesse remover a maldita erva. Ela colocaria
sua autopreservação acima de tudo e eu gostava disso porque não teria que me
preocupar com ela. A Ellie na minha frente não só é estranhamente altruísta,
como está cansada de ser protegida. Ela sabe o quanto é forte e sabe que não
pode ser morta facilmente, então ela simplesmente quer ir em frente e se
arriscar. Mesmo que esse rio a leve até o mar.
- Kat, uma de nós tem que fazer isso
e eu prefiro que seja eu.
Ranjo os dentes. Detesto como ela me
deixa frustrada e como eu adoro sua teimosia. Ela está se transformando mais em
um paradoxo a cada dia.
- Quer saber? Tudo bem. Mas se você
ousar não voltar, Ellie, eu juro por tudo que há de mais sagrado ou maldito que
vou atrás de você até no Inferno.
Ela tira o cinto e sorri.
- O fato de eu não estar mais lá é o
que faz disso possível.
O cinto de Ellie não passa de um
metro e vinte de comprimento. Quando ela o prende no tornozelo, ele perde a
circunferência de sua perna. Ela observa o rio outra vez. Ele é muito
cristalino e realmente podemos ver as ervas crescendo no fundo, mas não dá para
ter certeza da profundidade. Então olha para trás e vê uma pedra grande. Nem
precisa falar nada e todo mundo começa a arrastar a pedra até a margem do rio.
Quando isso termina, levantamos a pedra para colocar o cinto em cima. Para
garantir a segurança, o cinto acaba perdendo mais espaço. Respiro fundo. Repito
para mim mesma que eu não vou conseguir parar Ellie e que uma de nós precisa
fazer isso.
Pierre, Naomi, Olivia, Anika, Juliana
e eu nos sentamos sobre a pedra para aumentar o peso e Ellie olha para cada um,
antes de parar os olhos nos meus. Espero ver medo em sua expressão para poder
dizer que ela não pode e não vai fazer isso. Mas o gelo deles é cristalino. Se
qualquer tipo de sentimento a domina agora, certamente não é o medo. E no
segundo seguinte, ela entra no rio, com todo cuidado possível. Juliana e
Olívia, que de onde estão podem ver o rio, olham para baixo. Mas eu não posso.
Tento, mas não consigo. Espero que ouvir a reação dos outros me dê alguma ideia
do que está acontecendo.
Sinto um puxão no cinto abaixo de mim
e algo em minha barriga parece ser puxado junto. Eu odiaria perder Ellie e definitivamente
odiaria perder ela de uma forma tão ridícula. Sei que ela é quase impossível de
matar, mas eu ainda prefiro que ela esteja protegida. Ellie é... Eu preciso
parar de pensar nisso. Preciso parar de me deixar levar pelo que desejo dela ou
até mesmo esperar que ela faça o que eu desejo. Ela não é mais minha. Ela não é
mais algo que eu moldei. Ela é apenas dela agora e eu sou apenas a influência
externa dos fatos que a levaram a ser o Réquiem.
Distraída por esses pensamentos
soltos a respeito de Ellie, só lembro do que está acontecendo quando ouço o
cinto se soltar. Dou um pulo junto com um palavrão, mas logo em seguida ela
emerge e eu preciso ajudá-la a subir.
Eleanor
Estou secando o cabelo enquanto observo
as gêmeas correrem na chuva quando ouço baterem à porta e achando que é Kat, digo
que entre. É só o silêncio depois que a porta é aberta que me faz me virar e
descobrir que o recém-chegado é Pierre.
- O que você quer? - Pergunto,
surpresa.
Ele não responde imediatamente,
parece tentar buscar uma resposta enquanto me observa. Permanecemos parados,
ele na soleira da porta, eu na janela por um tempo ridículo. Estou prestes a
escorraça-lo do quarto quando ele finalmente abre a boca:
- Você me defendeu hoje. Por que você
fez isso?
- Não defendi você. Usei a lógica. Eu
tenho menos chance de morrer, então eu que deveria enfrentar o risco de vida.
- Não aja como se eu fosse idiota. Eu
sou quase tão imortal quanto você e ainda não se ouviu falar em vampiros
morrendo afogados. Você era a mais alta do grupo; te dou essa razão. Mas eu sou
o mais atlético, como Anika disse. Eu tinha menos chance de ser carregado pela
correnteza - e se fosse, tenho um GPS mágico que me liga a Sophie.
- Que diferença isso faz agora? Eu
não fui carregada pela correnteza, que aliás era muito menos perigosa do que
parecia de fora.
Ele faz uma pausa. Caramba, ele se
parece bastante com Alec. Mas ele definitivamente tem a minha postura. Algo
nele dá a impressão de que poderia explodir em pedacinhos de gelo a qualquer
momento.
- Não vou entrar em jogos com você,
Ellie. Eu conheço você e eu tenho observado você muito de perto nos últimos
meses. Você ainda é cruel e consegue agir sem misericórdia ou culpa em algumas
ocasiões. É claro que seus sentimentos te dominam, mas sua lealdade continua
sendo sua característica mais tangente. Você me defendeu hoje. Impediu as
meninas de me usarem como cobaia, mesmo que você já tenha permitido e feito
parte das brincadeiras muitas vezes antes. Por quê?
Suspiro. Pierre - junto a Alec - é o
personagem principal dos meus piores pesadelos ultimamente e sinceramente eu já
teria acabado com ele há muito tempo, não fosse pelo que Kat me disse em Nova
Orleans e pelo fato de que Persephone está convencida de que ele pode ajudar em
alguma coisa. Ainda assim, eu poderia tortura-lo por algumas horas o fazendo se
afogar diversas vezes e a parte mais perversa de mim estaria satisfeita. Mas,
por algum motivo obscuro, eu senti que não deveria fazer isso. E eu me recuso a
acreditar que tenha sido instinto de preservação sobre ele, então dou uma
explicação qualquer:
- Kat. A razão é Kat. Ela se importa
se você está vivo ou não.
Pierre engole isso, mesmo com o
discurso sobre meus jogos.
- E você se importa com o que Kat se
importa. - Ele afirma, com a expressão de quem entendeu tudo.
Dou de ombros.
- Você acabou de falar sobre minha
lealdade.
- Porque dizer a palavra que eu
estava pensando poderia fazer com que você me matasse.
Bufo.
- Pierre, eu não sou idiota. Eu amei
antes de me tornar vampira, especialmente as crianças do orfanato. É óbvio que
eu amo as meninas do Exército. Óbvio que quero protege-las.
- Não é sobre o Exército num geral
que eu estava falando, Ellie. É sobre Kat. Ninguém nunca entendeu porque você é
tão leal a ela. - Quando eu aperto os olhos, ele prossegue: - Você é mais forte
que ela. É mais poderosa. E agora você sabe disso. Você não quer fazer parte da
guerra, está fora do alcance do Inferno e continua aqui. Por Kat.
Olho para ele como se fosse a
primeira vez que o visse. Em momentos assim, eu me dou conta de que fui eu quem
trouxe Pierre ao mundo. Não de propósito e não sem alguma resistência, mas fui
eu quem o criei, de qualquer forma. Ele é um pedaço de Inferno que cresceu
dentro de mim e eu odeio ver partes de mim nele. É como uma exibição de arte
das minhas próprias características infernais.
- O que você espera? - Pergunto. - Me
quebrar dizendo coisas que eu já sabia? Eu passo tempo demais sozinha com a
minha própria mente para ser surpreendida pelas observações de outras pessoas.
- Ele começa a falar, mas faço questão de interromper. - Mas eu não sou cega. E
nem nenhuma das outras 12 vampiras do Exército. Todo mundo sabe, Pierre.
Especialmente Tatiana.
- Não interessa. Eu sou esperto o
suficiente para saber que não faz sentido.
- E eu não? Não é só porque meus
sentimentos andam abundantes que eu não sei o que fazer com eles.
Eu percebo que estou falando alto
demais quando me calo e o silêncio toma conta do quarto. Só o som da chuva
parece existir e eu começo a me perguntar quem ouviu meu surto, calculando
mentalmente quem está em casa e agradecendo aos céus pelo quarto de Kat ficar
no andar de cima.
- Eu só espero estar bem longe do seu
raio de ataque quando seu coração for partido. - Pierre completa, simplesmente.
Sorrio com um orgulho que me torna
uma espécie de aberração. É sempre bom ser o que causa medo em um demônio.
- Você faz muitíssimo bem em se
proteger. O que aconteceu hoje foi uma situação rara. Meu ódio pode ser muito
feroz as vezes. Não esqueça que sou controlada por meus sentimentos.
Ele parece pronto a sair, mas me olha
dos pés à cabeça antes disso.
- Só precisamos descobrir se é pelos
sentimentos mais imediatos ou pelos sentimentos mais profundos.
7 de fevereiro
Kaylee
- Kay?
- O que?
- Seja sincera comigo.
- Não faço promessas sem saber em que
estou me metendo.
- Quais são as chances e eu
sobreviver a isso tudo?
Eu olho para Amelie de lado. Ela sabe
quais são as chances que ela morra, ela não seria burra de se enfiar em uma
guerra desse tamanho com o Inferno sendo uma humana frágil sem saber que seria
a primeira a ser morta em uma ofensiva direta. Não entendo porque ela quer que
eu diga isso diretamente.
- Eu ficaria surpresa se você
sobrevivesse outro mês. - Respondo.
Ela faz a mesma careta que faz quando
estamos treinando e eu a soco no estômago.
- Ruim assim?
Dou de ombros.
- Foi você quem pediu sinceridade.
Mas não se preocupe, você bebeu sangue de vampiro o suficiente para transformar
as próximas 10 gerações da sua família.
- Você realmente acha que eu continuo
querendo que minha alma vá para o Inferno sabendo agora o que eu sei sobre
vampirismo?
- Você viu as cartas. Tem muita gente
que prefere que sua alma continue no Inferno.
- Mas eu não quero.
- Então reze para morrer antes de
nossa ida ao Inferno.
Noto que ela engasga com minha
sinceridade, mas sei que grande parte dela já está acostumada a mim. Antes que
ela possa dizer qualquer coisa, Persephone entra na sala de estudos,
acompanhada de Miranda, sua pupila favorita.
- Eu acho que deveríamos ao menos
tentar. É uma ideia muito boa para ser jogada fora. - A bruxa comenta para a
vampira distraidamente.
Os últimos dias tem sido o maior
espaço de tempo que eu vi Miranda longe de Valentina. As gêmeas continuam
grudadas em casa e se comunicando de formas que a gente passa longe de
entender, mas Valentina simplesmente não tem o mesmo animo de Miranda para
passar horas presa na sala de estudos de Persephone, conversando e estudando,
sem ser apta a fazer feitiços.
- Continuo achando que a resposta está
aqui. - Miranda responde - Se tem a ver com sangue, está na Romênia.
As recém-chegadas parecem perceber só
neste momento que estamos na sala de estudo, em banquetas na fileira da frente.
Miranda abre um sorriso tranquilo, mas Persephone nos observa com atenção. Amelie
está a centímetros de mim, escrevendo a resposta para uma carta, enquanto eu
parei de catalogar as amostras de sangue que recebemos no dia anterior, para
observar a entrada delas. O olhar de Persephone me deixa nervosa
automaticamente. Às vezes eu me dou conta de que ela pode ver o futuro e cada
célula do meu corpo sente vontade de sair correndo para o lugar mais distante
possível.
- Como vai o trabalho? - A bruxa-vidente
finalmente pergunta, parada onde estava.
- Tudo certo. - Respondo - Mais 100
amostras chegaram ontem. Kat e Ellie já foram para Graz?
Ela concorda com a cabeça.
- Hoje cedo. Foram de carro para
chamar menos atenção. Devem estar perto da Hungria agora, talvez já dentro.
A família de Persephone é enorme e influente.
Além de bastante rica. Tendo escondido os corpos dos pais pelos 7 dias entre a
morte deles e seu aniversário de 18 anos, Persephone assumiu a guarda de Selene
e toda a herança da mãe dela, o que inclui a casa enorme e dois carros. Ellie,
Sophie e eu aprendemos a dirigir há alguns anos, enquanto Persephone nunca teve
tempo, então acabamos sendo quem usa os carros com mais frequência.
- E você realmente acha que o
grimório de Jocelyn vai ajudar? - Pergunto.
Amelie para de escrever e olha para
Persephone com tanta curiosidade quanto eu. Até mesmo Miranda, que tinha ido
para o armário de poções procurar por algo, se vira e encara a bruxa.
- Não tenho como saber. - Persephone
responde, com sinceridade. - Mas a verdade é que Jocelyn era extremamente
esperta. Ela enganou a Morte por quase 10 anos, fazendo com que parecesse que a
intenção de se tornar vampira era exclusivamente de Kat. Ela fez de tudo para
que Kat nascesse numa janela e que por isso seu nascimento tivesse significado.
O nascimento de Kat teve tanto detalhes complexos e calculados, que mesmo que
Kat não fosse entregue ao Inferno, ela seria uma bruxa amaldiçoada. A bruxa que
fez esse tipo de coisa definitivamente sabe algo sobre como sair e entrar do
Inferno intacta.
-
E se ela não souber? - Amelie pergunta - E quanto aos outros grimórios
que estão em Graz? Os livros das bruxas de Cianne?
Amelie recebeu uma cópia dos diários
de Kat, atualizado e organizado por Olívia e o leu em dois dias. Agora ela
simplesmente segue a norma e nos enche de perguntas.
- Não sei, mas uma coisa de cada vez,
certo? - Persephone diz, indo até Miranda no armário de poções. - Se eu
acreditar que as bruxas Petry tiveram o conhecimento que eu preciso, eu vou
pessoalmente à cabana em Graz, fazer as pesquisas necessárias e pegar os
objetos certos. Quanto às bruxas de Cianne... Não me entenda mal, Kaylee, mas
elas agiam como amadoras.
Dou de ombros.
- Elas morreram graças a uma epidemia
não controlada de tifo. Posso ver o amadorismo delas com toda clareza.
- Eu digo em relação ao que pretendiam
fazer à própria cidade. A existência de um vampiro deve-se primariamente a
energia infernal. Tentar canalizar essa energia por tanto tempo, sendo que a
união dos clãs estava em risco... É o mesmo que convocar o Inferno para tomar
conta da cidade.
- O Inferno faria um trabalho melhor
em manter Cianne intacta do que elas fizeram.
Persephone me olha enquanto pega um
kit com poções e traz na minha direção.
- Você as ressente?
- O que você acha?
- Não sabia que vampiras podiam
guardar ressentimentos.
Dou de ombros.
- Não é bem um ressentimento. É só
que, se eu pudesse matá-las outra vez, de forma mais dolorosa, eu o faria.
Amelie empalidece ao meu lado e eu
finjo não perceber.
- Você acha que elas saíram pelas
janelas? - Persephone pergunta, com sorriso e olhar conspirador.
- Talvez. - Respondo sinceramente -
Eu não as subestimaria, nem as superestimaria. Elas possivelmente seriam
capazes de encontrar a janela, mas não posso dizer com certeza que seriam
inteligentes o suficiente para saber o que acontece com almas na dimensão
física.
Persephone concorda com a cabeça.
- Talvez Cianne seja literalmente uma
cidade fantasma agora.
- Espero nunca ficar tão entediada
que queira voltar lá para conferir.
Persephone ri e finalmente deposita a
bandeira de poções sobre a bancada à minha frente. Miranda a acompanha, fazendo
a mesma coisa com outra bandeja de poções. As poções são guardadas em tubinhos
de ensaio bem parecidos com os que contém o sangue que eu estava catalogando.
Não fosse a diferença dos armários e a catalogação, eles poderiam facilmente
ser confundidos.
- Amelie. - Persephone chama, depois
que a garota já voltou a escrever. Amelie olha para ela e ergue a sobrancelha.
- Se você pudesse escolher um sentimento, ou melhor qualquer reação humana, e
engarrafa-la para não voltar a senti-la nunca. Qual seria?
Amelie pisca.
- Medo. Bem, aquele medo desesperador.
- A resposta de uma lutadora. -
Persephone diz. A seu lado, Miranda está com um sorriso misterioso que mostra
que ela sabe de tudo que Persephone pretende. - Quanto tempo você acha que
sobreviveria sem sentir medo de nada?
Amelie ri e me lança um olhar.
- Pouco. Se eu não tivesse medo de
morrer me enfiaria em coisas muito mais perigosas do que já faço agora. O que
eu realmente queria era não ter medo de enfrentar as coisas que eu sei que
terei que enfrentar um dia. Não ter medo das consequências dos meus próprios
atos.
- Isso explica porque você se batizou
com sangue. - Miranda comenta, enquanto Persephone fuça a bandeja de poções que
a vampira trouxe.
Persephone finalmente alcança um
potinho com líquido escuro e o ergue na direção de Amelie.
- Isso inibe o medo por mais ou menos
36 horas. Beba uma vez só, no momento em que sentir mais medo, especialmente se
isso acontecer durante uma lua cheia.
- Isso é bem específico. - Amelie
diz, encarando o tubo, sem coragem de pegar.
- Sei o que eu digo. - Persephone
completa. - Sua vez, Kaylee. Se você pudesse trazer um sentimento de volta,
qual seria?
Ela fala isso tão rápido que me
desconserta. Quando consigo processar o que ela disse, fico confusa.
- Por que eu iria querer apenas um
sentimento de volta?
- Porque em breve, você terá todos
eles. Considere um teste.
Me calo. Não gosto disso, não mesmo.
Sei que estou lutando para ter minha alma de volta, mas tenho me concentrado em
lidar com os efeitos dela depois que recebê-la de volta.
- Qual é, Kaylee? - Miranda diz, me
incentivando - Qualquer sentimento mesmo. Até mesmo a felicidade pura.
- O que tem de puro na felicidade
induzida por poções? Além disso, não sou estúpida. Se aprendi qualquer coisa
observando os outros sentindo é que qualquer sentimento possui nuances do seu
exato oposto. Sentir é paradoxal. Não é possível amar sem medo, odiar sem
tristeza, adorar sem repulsa. Quando minha alma voltar eu pelo menos terei
diversos sentimentos para equilibrar, uns neutralizando os outros. Jogar um
sentimento no vácuo completo da minha alma... Não, obrigada.
Persephone e Miranda se entreolham
por um instante. Começo a me perguntar quanto tempo elas têm passado juntas, já
que elas conseguem se comunicar com o olhar. Miranda volta a olhar para mim,
com os olhos brilhando.
- Sophie estava certa sobre você. -
Diz, delicadamente.
- O que Sophie tem a ver com isso?
- Ela acha que você será a primeira a
receber sua alma de volta. - Persephone é quem responde. - Simplesmente porque você
não quer.
Reviro os olhos.
- Sophie precisa parar de achar que
sabe de tudo.
Miranda ri e Persephone dá de ombros.
- Eu acredito que quando a pessoa
está certa, ela tem todo direito de deixar isso claro.
Antes que eu possa responder, Amelie
ofega e nós três olhamos para ela.
- O diamante. - Ela diz meio
engasgada.
Olhamos para o colo de Miranda, onde
a pedrinha azul repousa. Ela só continua azul por alguns segundos, porque o que
fez Amelie engasgar é o fato de que uma mancha escura está crescendo e tomando
conta da pedra. Puxo o pingente de rubi debaixo da blusa para descobrir que a
mesmíssima coisa está acontecendo com minha pedra. Miranda me encara.
- Está sentindo isso?
Concordo com a cabeça.
- É como uma dor. Como algo atravessando
meu corpo abaixo do estômago. Mas é leve como uma lembrança, como a dor que
você sente com o sonho.
Eu ainda estou segurando o rubi,
então quando ele fica mais pesado, eu sinto e o deixo cair.
- Que diabos é isso, Persephone?
Os olhos de Persephone estão sem foco
e sua pele está tão pálida quanto papel. Nunca a vi tão frágil ou tão dominada
pelo próprio medo. Ela sabe de algo. Não vai admitir em voz alta, mas sabe, não
só do que está acontecendo, mas também do que vai acontecer.
- Persephone! Diga o que você sabe
agora.
Seus lábios tremem quando ela dá a
resposta mais vaga possível:
- Alguém está sangrando.
Szeged, Hungria
Katerina
Eu me consideraria acostumada a ser
acordada por minha própria dor. Quando você viaja a pé por anos e dorme em
clareiras de florestas de chão duro ou em cima de árvores, você se acostuma a
ser despertada por todas as partes do seu corpo em agonia. Em comparação à
sensação que eu tenho ao ser acordada no meio da viagem até Graz, essas dores
antigas parecem carícias.
Ellie é uma boa motorista e teve uma
boa noite de sono ontem, então decidiu dirigir direto de Bucareste a Graz, sem
medo de se cansar. Eu, por minha vez, estava exausta. A pequena excursão seria
uma oportunidade de passar 48 horas sem os treinamentos exaustivos. E
Persephone ainda me deu uma bolsa de sangue inteira, dizendo que eu precisaria
estar bem alimentada. Por isso tudo, com menos de duas horas de viagem de carro
eu peguei em um sono profundo e dormi como um anjo... Até ser acordada ao ter
uma barra de ferro atravessada na barriga.
A dor me desnorteia por um instante.
Nem entendo como posso estar acordada. Não consigo ver nada através da névoa
que se forma em meus olhos. Esqueço onde estou ou o que deveria estar fazendo.
Quando o instinto de sobrevivência finalmente prevalece e grita dentro de mim
para que eu saia dali, percebo as três coisas principais ao meu redor: Primeiro,
estamos fora da estrada agora, entre duas árvores em um campo. Segundo, a barra
de ferro enfiada em minhas entranhas entrou precisamente no meu lado do carro,
então é impossível que tenha sido um acidente. Terceiro, Ellie está chamando
por meu nome, com toda espécie de desespero na voz.
Tento responder, mas o ferimento me
impede de falar qualquer coisa. O ruído rouco que sai de mim é suficiente para que
Ellie perceba que eu estou viva e suspire de alívio. Ao invés de abrir as
janelas escuras e deixar a luz do fim de tarde entrar para poder me ver, ela
usa a luz do celular. Afasta as mechas de cabelo suado do meu rosto com cuidado
e sussurra:
- Um homem no meio da estrada estava carregando
uma barra de construção de ferro enquanto atravessava a rua. Pensei que ele
fosse chegar ao outro lado, mas ele se virou e enfiou a barra de construção
pela janela do carro. Ainda consegui dirigir uns dois quilômetros para cá, mas
ele está vindo. Precisamos sair daqui, Kat.
Abro os olhos, pretendendo gritar que
ela está louca, mas a tentativa faz com que a dor piore em centenas de vezes. Tudo
que consigo dizer, entre engasgos, é o nome de Ellie esperando que ela entenda
a súplica, demonstrando que não é hora para uma fuga.
- Kat. - Ela chama com uma tentativa
de firmeza quando eu gemo - Kat. Me escute. Eu vou puxar a barra para fora. Não
encostou no seu coração e nem está perto de desmembrar você. Te levo até o
humano mais próximo e até onde eu me importo, você pode destruir uma cidade
inteira para se recuperar, mas não podemos ficar aqui. Ele está vindo.
Começo a chorar. Eu pensaria em quão
estranho isso é se não fosse por toda dor - o motivo pelo qual eu choro. A dor
que eu sinto é tão profundamente física que deixou minhas reações biológicas
descoordenadas. Eu não chorava desde que estava viva. Quando consigo abrir os
olhos e afastar as lágrimas, Ellie está olhando para mim com toda a preocupação
do mundo no olhar. Sou eu quem não tenho alma e eu não tenho a metade da
coragem que ela tem. Engulo em seco e faço um sinal com a cabeça. Precisamos
fazer o que ela disse. Eu provavelmente vou desmaiar de um jeito ou de outro. De
qualquer forma, é tarde demais quando Ellie vai em direção à porta. Antes que
ela alcance a maçaneta o vidro do para-brisa é estilhaçado e a barra de ferro
de construção é arrancada violentamente de dentro de mim. Eu desmaio ao som do
grito de Ellie.
Acordo com gotas de sangue humano
gotejando sobre minha boca. A primeira coisa que eu reconheço é o cheiro. Se a
terra suja de sangue é minha lembrança mais primitiva, o cheiro das tochas é uma
recordação de infância. O chão aquecido pelo círculo cerimonial e pelas tochas
é como um abraço de mãe, como me deitar nos braços acolhedores de um amante. Um
movimento me traz de volta a realidade, a dor me mostra que ainda estou
machucada. Abro os olhos e descubro que um corpo com um corte no pescoço está
sendo segurado sobre a minha cabeça. Os olhos em pânico na vítima me fascinam e
eu estendo os braços para alcança-la. De repente, todas as pessoas em volta do
círculo começam a gritar como uma torcida em fúria e meus instintos primitivos
de ataque se aguçam. É como se fosse 1844 outra vez.
Eles o chamam de Cercului Semilună -
o Círculo Crescente. Ele só acontece em duas ocasiões: quando um novo líder do
clã precisa ser eleito e quando um novo membro quer entrar no clã. Eles se
reúnem na primeira lua crescente do mês, fazem um círculo com tochas e ferem o
vampiro em um lugar que ele escolha. Depois de sangrar por alguns minutos, o
vampiro é solto no meio do círculo, junto a uma presa e tem que correr atrás
dela para se regenerar, junto ao coro de gritos dos vampiros do clã. Caso o
vampiro desmaie antes de conseguir o sangue da vítima, ele fica à mercê do clã,
geralmente para ter o corpo destroçado e os ossos jogados aos lobos. Quem
consegue vencer o círculo, ganha uma cidade inteira para destruir em um
banquete. Ou ganhava. Não sei bem como ficam as coisas no século XXI.
Isso não é um Círculo Crescente
regular. Para começar, não é lua crescente - a lua é um fiapo minguante no céu.
Depois, eu não estou tentando entrar no clã, ou me tornar líder, nem escolhi
onde seria machucada. E eu duvido muito que eles costumem enfiar barras de
ferro nas entranhas de outros participantes do Círculo. Mas para ser justa, eu
fugi dos meus deveres com o clã quando fui ameaçada por ter sido transformada
sem sangue e anos depois levei Deyah, a segunda no comando, embora em um truque
que resultou na morte dela pouco tempo depois. Claro que eles não deixariam
isso barato ou me receberiam de volta como um filho pródigo que retorna para
casa. Eu deveria estar feliz por não ser um bando de ossos atirados aos lobos
neste momento.
Eu nem tenho tempo de pensar em
porque eles não me mataram. A garota que era segurada acima de mim é solta e
começa a correr pelo círculo, sendo jogada de volta para dentro sempre que
tenta escapar. Me levantar não é fácil, eu ainda estou sangrando e com um
buraco na barriga. O machucado não me mataria, mas a perda de sangue
provavelmente. Me forço a reunir todas as forças que tenho, que são poucas, e
consigo ficar de pé após algumas tentativas. Digo a mim mesma para lembrar de
agradecer a Persephone, sem o treinamento físico que ela inventou eu não
conseguiria levantar. Eu poderia planejar meu ataque, estabelecer o que
precisava fazer em alguns passos, mas quando é você, uma vítima sangrando e um
círculo de pessoas soltando gritos guturais, você se lembra da besta que é por
dentro.
Salto em direção à presa. Até mesmo a
incidência do vento contra minha barriga faz com que a dor me cegue. Resolvo
usar os outros sentidos, antes que minha cabeça me falhe. O cheio de sangue vem
da minha esquerda e o movimentos dos gritos indica que a garota acabou de
tentar fugir a alguns passos de mim. Sigo os gritos. Claro que ela não está
mais lá, mas sua corrida deixou um rastro de cheio de sangue que faz minhas
veias pulsarem de desejo. Não é tão bom quanto poderia ser, já que o sangue
escapa mais rápido pelo ferimento e eu me sinto mais fraca. Mas não posso
permitir que o ferimento me domine, não devo estar tão longe. Sigo o rastro da
presa por minutos, tentando andar o mais rápido que posso.
De repente, os gritos se silenciam e
a expectativa do Círculo cresce. Imagino que devo estar perto da presa, mas se
estivesse estaria sentindo o cheiro ou o calor dela. Aguço os ouvidos. Consigo
ouvir dois corações batendo diferente do resto do círculo, mais rápido. A
ilusão sobre o começo da minha vida como vampira é quebrada. Ellie está a
alguns passos de mim, respirando e esperando. Eles não a mataram. Não poderiam
mesmo que quisessem, mas me surpreendo por ela estar ali. Pensando no que
poderia acontecer com ela se eu fosse morta esta noite, me concentro mais uma
vez em encontrar a presa. Assim descubro porque todos pararam de gritar. A
presa parou de correr e se sentou no meio do Círculo, chorando. Minha cabeça
está leve e mal sinto meus pés, mas sei que posso fazer isso. Um último salto.
A ataco no ferimento. Não tenho tempo
de mordê-la, então simplesmente sugo do corte no pescoço. É melhor do que a
primeira vez que bebi depois de quase dois anos em Cianne. O sangue dela acaba
com a dor e faz meu corpo vibrar enquanto regenera. Quando termino e seu corpo
cai ao meu lado, eu quero mais. Não bebia sangue direto da fonte há meses e há
tempo demais tinha uma presa adulta só para mim. Lanço um olhar feroz a um dos
cantos do círculo exigindo que abram espaço para que eu passe.
- Deixem ela ir. Ela voltará pela outra.
- Uma voz brada no canto oposto.
Mal o círculo se abre, eu começo a
correr. A cidade mais próxima é longe demais, mas uma fazenda se interpõe no
caminho e existe gente o suficiente lá dentro para que eu fique satisfeita.
Deus, eu tinha esquecido da sensação de ser responsável por uma destruição
completa. Só tenho conhecimento dos gritos e do sabor do sangue pelo que parece
tempo demais. Cerca de quinze pessoas e eu me sinto uma pequena praga,
destruindo todas em questão de segundos.
Quando me dou por mim, estou sentada
no chão com as duas pernas esticadas em minha frente. Sou uma bagunça sangrenta
com vestes destruídas e inutilizáveis e demora um pouco para que eu volte a meu
estado normal e me dê conta de tudo. Meu nome é Katerina Petry. Fui
transformada em vampira em 1844 em um ritual de sacrifício. Lidero um Exército
de treze vampiras na guerra para recuperar nossas almas do poder do Inferno. E
neste exato momento, o clã que jurou acabar comigo está em posse da única coisa
terrena que poderia me destruir.
Bucareste, Romênia
Louise
Uma reunião em nossa casa foi marcada
no exato segundo em que as pedras escureceram po completo. Quando todas as que
restaram em Bucareste chegam e nos damos conta de que a ferida é Kat, Ellie ou
talvez as duas, todas nós, ao mesmo tempo culpamos Persephone. É claro que
enviar Kat e Ellie sozinha para Graz em busca de um grimório era perigoso. Nós
nunca sequer saímos de casa em um grupo menor de cinco, imagina atravessar dois
países?
- Eu precisava do resto de vocês e,
que droga, elas estavam de carro e protegidas de feitiços de localização. Isso
foi tão planejado que eu não consegui prever. - Persephone responde, depois de
ser confrontada por Charlottie.
- É a Romênia! Claro que Kat estava
em perigo! - Anika devolve. - E Ellie pode ser quase indestrutível, mas ela é
uma só. E já que elas estão protegidas de feitiços de localização, teremos uma
ótima sorte as encontrando agora.
Uma nova rodada de palavras gritadas
e de acusação segue a isso. Nós ficamos completamente perdidas sem Kat, esse é
o problema. Ela não deveria ter saído de Bucareste. Naomi também é uma Petry,
ela tinha tanto direito de sangue de pegar as coisas na cabana quanto Kat. Sem
falar que eu ainda não acredito que ela fez um feitiço tão poderoso para nos
unir. Se o que quer que tenha acontecido em Kat causou aquele tipo de dor em
nós, nem posso imaginar o que acontecerá se uma de nós morrer. De repente,
Sophie ergue a mão no meio do caos e com um movimento, bate todas as portas do
andar de baixo. Todas nós nos calamos.
- Ótimo. - Ela anuncia, sorrindo. Pela
lógica, Sophie é a terceira em comando. E é melhor ela do que outra pessoa. -
Uma coisa de cada vez agora. Nos diga absolutamente tudo que você sabe sobre o
que aconteceu, Persephone.
Persephone suspira.
- Elas foram atacadas no sul da
Hungria, mas por alguém que vinha seguindo elas desde que saíram de Bucareste. Foi
alguém que Kat conhece, alguém que esteve na vida dela há muito tempo e que
levará as duas para um lugar que é seguro para eles, de volta para a Romênia. É
tudo que eu sei dizer.
- Vou deduzir que foi alguém do clã
romeno. Talvez o clã inteiro. A última vez que Ellie avisou onde elas estavam
elas tinham acabado de passar pela fronteira da Hungria. Isso foi duas horas
antes das pedras escurecerem.
- Espera. Ellie está com o celular? -
Olívia pergunta, com a voz tímida, sem vontade de interromper.
- Estava. Ela não atendeu quando eu
liguei, então imagino que tenha o perdido.
- O celular dela estava conectado à
internet?
O rosto de Sophie se ilumina.
- Sempre está. Se ela tinha área onde
estava, provavelmente está sim. Você acha que consegue rastrear?
- Sim. Vou pegar o notebook. - Ela
diz, antes de correr em direção às escadas.
Sophie volta a olhar para nós e nos
avalia em silêncio.
- Se Olívia conseguir rastrear o
celular, nós precisamos de um grupo para ir até lá e começar a rastreá-las até
o “lugar seguro” que eles irão leva-las.
Concordamos, esperando ordens dela. É
melhor isso do que começar a brigar outra vez.
- Pelo menos, as pedras voltaram ao
normal. - Amelie comenta a alguns passos de mim. - Quem quer que seja parou de
sangrar.
- Isso pode não ser um bom sinal. -
Digo - Pode significar que ela está morta.
Fazenda Előérzet, Hungria
Katerina
Preciso lembrar a mim mesma várias
vezes que Ellie é indestrutível para me convencer de que preciso de um banho e
de roupas novas antes de enfrentar o clã. A família que acabei de matar tinha
uma criança de uns 12 anos, então, consigo arranjar um adorável vestido branco
sem silhueta. Após um banho quente, prendo o cabelo em um rabo de cavalo alto.
Me olho no espelho. Não existe aparência que possa me fazer me sentir pronta
para enfrentar o clã, mas eles não precisam perceber meu despreparo.
Eu voltei à Romênia por livre e
espontânea vontade, duas vezes, após ter prometido que nunca mais voltaria.
Isso foi quase como pedir para que me perseguissem. A pior parte é que eu estou
livre. Eu poderia simplesmente fugir para o local seguro mais próximo e deixar
que Ellie escapasse do seu próprio jeito e voltasse para mim. Mas eles sabiam
que eu voltaria. Eles não são idiotas. Vou voltar, assumir minha traição e
colocar minha cabeça embaixo da guilhotina se for preciso. Só não vou abandonar
Ellie.
Procuro por algo que possa me ajudar,
mas é claro que provavelmente nada no mundo me ajudaria a vencer o implacável
clã romeno. Soltando o cabo do gás de cozinha, coloco fogo na casa de fazenda,
assim que deixo ela, sem olhar para trás. É algo que já fiz diversas vezes, mas
que ainda não tinha feito neste milênio. Parece estranho, depois dos meses de
desintoxicação, ter matado quinze pessoas de uma vez só. É bom, mas não tão bom
quanto seria se eu não ficasse pensando sobre como acabo de fazer exatamente o
que o Inferno achava que eu faria eventualmente.
Sigo o caminho de volta que fiz me
orientando por meu próprio cheiro. São quase três quilômetros e eu sigo
devagar, pensando no que fazer. Todos os pensamentos me levam para a mesma
conclusão: O melhor que posso fazer é enfrentar a morte de cabeça erguida.
Quando alcanço o círculo, ainda com as tochas acessas de forma dramática, a
primeira coisa que vejo são os lobos, que parecem agitados como se tivessem
acabado de comer. Aperto o passo, pensando no improvável, mas assim que invado
o círculo vejo Ellie de pé, com os braços cruzados, entre dois brutamontes. Ela
tem uma mancha enorme de sangue na camiseta e está bem suja de terra, mas
parece intacta.
- Kat! - Ela solta, quase como um
clamor e todo mundo percebe que eu cheguei.
O silêncio toma conta do grupo de
vampiros e apenas as mordidas e rosnados dos lobos podem ser ouvidos. Eu sempre
achei perturbador usarem lobos para se desfazer dos corpos dos mortos. Mas
considerando que qualquer membro do clã romeno morre violentamente, um funeral
tão violento faz bastante sentido. Observo os vampiros que permanecem em
círculo ao meu redor. Com uma olhada rápida, consigo contar doze homens e dez
mulheres, de diversas etnias e tamanhos. Alguns rostos são conhecidos, mas a
maioria deles não é. O clã romeno é bem diversificado, mas consegue permanecer
uniforme em noites como a de hoje. Me pergunto quanto tempo eles passaram
planejando este ataque e por quanto tempo nos seguiram antes de colocar ele em
prática. Estamos fora da Romênia, em um território desconhecido da Hungria. É
improvável que tudo seja feito aqui. Como ninguém faz nada por um bom período
de tempo, resolvo tomar a dianteira:
- Então, onde está o líder do clã?
Imagino que tenhamos o que conversar.
Uma risadinha toma conta do grupo e um
espaço é um homem de quase dois metros de altura toma a dianteira. Suspiro,
reconhecendo seu rosto. Serkan é um dos homens mais violentos que já conheci.
Ele era conhecido por desmembrar vítimas e se alimentar dos membros arrancados,
na frente da vítima viva. Depois apenas deixá-las sangrar até a morte. Perto
dele, os assassinatos que cometi em Paris parecem brincadeira de criança.
- O que aconteceu a Micah? - Pergunto
quando ele para na minha frente.
- Conflitos de opinião. - Serkan
responde com a voz rouca e um sorriso psicótico no rosto - Sete séculos como
vampiro e ele não aprendeu que não se
questiona o Inferno.
- Isso é discutível. Mas
definitivamente não se deve mexer com adoradores cegos do Inferno. Eles podem
ser terrivelmente teimosos em suas crenças absurdas.
Risadas irônicas e rosnados são ouvidos.
Eles veem minhas palavras como o esperneio de uma criança, a frágil tentativa
de defesa de uma presa qualquer. Prefiro nem me permitir afetar por isso.
- Você ficará satisfeita em saber -
Serkan prossegue - Que ele hesitou em matar você quando ficou sabendo que
voltara à Romênia. Acreditava que estava destinado a grandeza e que você
poderia ser a chave para isso. Ele achava que o prestígio no Inferno tinha
ficado ultrapassado e que fazer o Inferno tremer era mais importante que o
legado de sangue que tinha criado.
- Tão triste que justo quando Micah
entendeu tudo, ele tenha sido morto. Espero que eu me lembre dele quando
estiver negociando os acordos.
- Você realmente acredita que esse
seu plano vai levar a algum lugar?
- Não dediquei mais de cem anos a
nada, Serkan.
- Você costumava ser um membro tão
importante do clã, Katerina. Uma vampira tão violenta, tão talentosa. Você
nasceu para ter prestígio no Inferno e era admirada por todos. Uma garotinha,
nascida para ser vampira e realmente uma vampira em todos os sentidos mais
plenos. Por que abrir mão disso?
Suspiro. Poderia responder a ele com
todos os detalhes sobre toda a minha existência e como ela foi injusta desde
que minha mãe planejou me conceber. Mas eles não precisam ouvir isso ou saber
disso. Porque mesmo que apresentasse os argumentos mais convincentes, o máximo
que despertaria neles era fúria. O clã romeno é um grupo extremamente ligado a
seus carcereiros - exatamente os vampiros que o Inferno queria.
- Seu plano é me entediar até a morte?
Não sinto nostalgia dos tempos de clã, Serkan. Meu Exército me ensinou o que a
palavra realmente significa.
Me forço a não tirar os olhos de
Serkan para olhar para Ellie, que noto se mover onde está. Quero enviar
segurança para ela, mas me recuso a perder meu momento de firmeza. Serkan cruza
os braços.
- Eu estou... Ganhando tempo, na
verdade.
- Para quê? O clã romeno não é
exatamente conhecido por evitar a tortura, só por prolongá-la.
Mais risadinhas e rosnados seguem
isso.
- Você está certa. Nós não esperávamos
que você sobrevivesse ao Círculo, mas mesmo sobrevivendo já estaria morta
agora... Se não tivesse vindo acompanhada por
ela. - Ele aponta para Ellie com o dedão e eu finalmente me atrevo a olhar
para ela.
O lábio inferior de Ellie treme por
um milésimo de segundo, mas o resto de sua linguagem corporal demonstra a
segurança que eu duvido que ela tenha. Nunca foi minha intenção ser morta de
forma violenta na frente dela, mas eu fico satisfeita por ter sido ela a vir
comigo. Se alguém pode fugir, esse alguém é ela.
- Ellie? - Pergunto, com curiosidade.
- Ela matou quatro de nós e feriu
todo o resto em um ataque de fúria quando você correu do Círculo. Sem piscar.
Sou até puritano demais para falar sobre as coisas que saíram da boca dela, as
ameaças. O que ela prometeu fazer às nossas almas caso encostássemos os dedos
de você. Eu poderia agir como se fossem promessas vazias, como quando você as
faz, mas eu não subestimo o Réquiem. Você não enfurece alguém que pode te matar
sem mover um dedo. E a sua morte pode fazer com que ela cause uma destruição
sem precedentes.
Envio um sorriso orgulhoso a Ellie e
um princípio de sorriso cruza o rosto dela, mesmo ela parecendo abalada demais
para sentir satisfação pelo que fez.
- Algum tipo de inteligência continua
em sua cabeça, veja só. E você ainda subestima meu poder de fazer coisas
incríveis.
- Mesmo? Você pega os créditos da
existência do Réquiem para você?
Dou de ombros.
- Fui eu quem a batizei.
Serkan balança a cabeça.
- Você é exatamente como Micah e terá
o mesmo fim, em breve.
- Você acaba de dizer que não vai
enfurecer Ellie, então não podem me matar. Acabe com as ameaças vazias enquanto
a noite ainda está alta e vocês podem retornar para onde vieram nas sombras.
As risadas e rosnados que se seguem
são ainda mais altos e é como se o clima do Círculo se reinstalasse.
- Ah, Katerina. - Serkan diz com a
voz soando ainda mais rouca - Nós vamos matar você. Só precisamos descobrir
como matar Ellie antes.
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