“A manhã se dá a todos —
Para alguns — a Noite
A raros afortunados —
A
luz da Aurora.”
Emily
Dickinson (Morning is due to all)
As
Crônicas de Kat:
E
não sobrou nenhum
Bucareste, Romênia
5 de maio de 2016
Charlottie
Para
um vagabundo ermitão a sensação de casa pode ser como o desejo de voar.
Inalcançável, mesmo quando muito real. Desde que precisei fugir de Verdant para
o mais distante possível de Sophie, eu só senti isso – a calma sensação de
acordar embaixo de um teto, cercada por coisas que são minhas, sabendo ao
deixar o quarto eu serei recebida por pessoas importantes para mim – duas
vezes. Uma em Nova Orleans. A segunda no antigo hotel abandonado no subúrbio de
Bucareste, para onde nós finalmente voltamos.
Depois
que consigo me convencer a abrir os olhos e virar de barriga para cima na cama
confortável e quentinha, eu fico encarando o teto desbotado por um tempo.
Embaixo de mim, a casa começa a acordar, os sons preenchendo seus cantos. Somos
nós: Kat, Ellie, Sophie, Anika, Valentina, Kaylee, eu, Tatiana, Juliana,
Louise, Olívia e Pierre com o acréscimo da irmã mais nova de Juliana,
Alexandra. Estamos nos escondendo, ao mesmo tempo que descansamos e criamos
estratégias. Treinamos para as batalhas que o Destino nos reserva, enquanto lutamos
contra o futuro, nas diversas faces em que ele se apresenta. Especialmente, a
profecia.
O
pensamento faz com que eu crie coragem para me levantar da cama. Visto um
roupão felpudo e pantufas e resolvo ir lá para a sala, enfrentar a série de
pensamentos filosóficos que o dia de hoje me reserva. É só isso que eu consigo
fazer quando encaro o circo que Kat montou no andar de baixo. Pensar, pensar e
pensar. Deixo do quarto e resmungo “bom dias”, enquanto passo pelo corredor. A
maior parte de nós passa a maior parte do dia nos quartos ou nos corredores.
Evitando a sala e as informações espalhadas pela parede. Espero que alguém me
peça para trazer uma bolsa de sangue na volta, mas surpreendentemente ninguém o
faz.
No
primeiro andar, bato à porta de Sophie, mas ela não está lá dentro.
Provavelmente já foi para a cidade. Sophie é assim: se ela pode estar na
capital, é exatamente onde ela estará. Não acho que a verei em casa até o
pôr-do-sol, mas me pergunto porque ela não me convidou para ir com ela desta
vez. Finalmente, chego ao andar de baixo. Vou direto para a cozinha, onde escolho
uma bolsa de sangue na geladeira. Litros e mais litros roubados de hospitais no
caminho estão tomando a geladeira. Foi divertido, o tipo de ação que
precisávamos. Depois de me servir com uma caneca de sangue, volto para a sala
e, encostando no balcão, encaro o caos.
As
paredes estão tomadas de fotos, imagens e anotações. Como em um filme de
espião, Kat organizou tudo pela sala, com marcadores e linhas ligando
informações importantes. É uma espécie de apresentação da profecia, se
desdobrando diante dos nossos olhos. Foi a forma que Kat encontrou de nos
contar tudo, depois de semanas de estudo. Todas as aulas com Rowan não a
fizeram descobrir como lutar contra o Destino – videntes desistiram disso
milênios atrás – apenas fizeram com que ela conhecesse de trás para a frente
cada detalhe de seu futuro.
Bebo
um pouco da caneca enquanto olho em volta. Assim como eu, outros tiveram a
mesma ideia de observar o caos e tentar encontrar sentido nele: Olívia e Pierre
estão em cantos diferentes da sala, observando ou anotando. Kat dorme no sofá,
com um livro sobre a barriga e os pés sobre dezenas de papéis. Me aproximo de
Olívia e aponto para Kat quando ela olha para mim.
–
Ela nunca sai daqui? – Pergunto.
–
Nunca a menos que alguém a arraste, literalmente. – Olívia responde.
–
Ela sabe que nós preferimos que ela não enlouqueça antes de descer ao Inferno
não sabe?
–
Talvez seja tarde demais. – Olívia completa, dando de ombros.
Não
há como responder a isso. Parada ao lado de Olívia, começo minhas observações pela
parede que conta a história do que já aconteceu até agora e do que acontecerá.
Em detalhes. De acordo com um calendário lunar detalhado por uma vidente no
século passado, estamos no limbo. O próximo evento é “O Dia em que o Fogo
subirá da Terra aos Céus”. Nós devemos estar descansadas, relaxadas e bem
alimentadas para garantir que estejamos preparadas para o que quer que
signifique.
–
Algum chute? – Olívia pergunta ao me ver encarando o calendário.
–
Pode ser qualquer coisa. Alguém pode fazer uma fogueira na estrada e uma de nós
a encontramos. Pronto. O fogo subiu da Terra aos Céus. E no dia seguinte... –
Me interrompo e olho para trás.
Na
parede exatamente atrás de mim estão presos treze retratos, espalhados na forma
de uma árvore. Cada um deles possui um título pregado acima. Se o significado
do título é claro, uma folha de papel está presa ao lado do título o
explicando. Abaixo do retrato estão pregadas outras folhas de papel, arrancadas
dos diários, explicando o que cada uma das pessoas retratadas fez ou fará em um
futuro próximo. Cinco retratos possuem uma folha de papel acima dessas todas, e
um destino está faltando – a última pode ser qualquer uma das oito restantes.
Esses papéis foram escritos em vermelho e chamam atenção de qualquer pessoa que
passe os olhos pela sala. Eu encaro A Irmã e ela me encara de volta com
desafiantes olhos castanhos.
–
Você parece resignada. – Olívia diz, simplesmente.
–
Não posso lutar contra o que eu não sei o que é. – É minha resposta. – “E uma
sombra ganhará um propósito.”. Não poderiam ser menos específicos se tentassem.
–
Persephone diz que vai fazer sentido, um pouco antes de acontecer.
–
Isso é inútil. – Bufo.
Atravesso
a sala e paro diante da minha foto, olhando para as palavras que disse e as que
evitei: “E uma sombra ganhará um propósito. De tocar A Intocável, destruindo A
Irmã.”. Nenhuma palavra disso está escrita no destino d’A Intocável. Sophie. Sou um acidente de percurso, mas
meu destino chega ao fim, pelo dela. Percebo, de repente, que o fim não
importa. Ele não pode ser parado e vem quando quer. Arranco a folha sobre minha
morte da parede e a transformo em uma bola em minha mão.
Uma
profecia diz que eu morrerei antes do dia 30 de setembro. Grande coisa. Não é a
minha primeira morte anunciada.
21 de maio
Kaylee
Acordo
sentindo algo peludo acariciar meu pé. Estou sonolenta demais para compreender
a situação e reagir, mas sinto o movimento novamente e me sento na cama. Grito
quando vejo algo se mexendo sob minha coberta, mas assim que me levanto e puxo
a coberta da cama, o bolinho de pelos já está se metamorfoseando em vampira
novamente.
–
Sério, Kat? – Reclamo. – Eu achei que fosse um rato.
–
Poderia ser um rato. – Kat diz, fazendo um sinal amplo para o quarto.
Resolvo
ignorar isso. Kat olha em volta e percebe meu robe pendurado uma cadeira, vai
até ele e o veste. É tão longo que arrasta no chão. Kat passa o dedo pela
crosta de poeira sobre o assento a cadeira de onde pegou o robe e eu reviro os
olhos.
–
O que você está fazendo aqui? – Pergunto. – Eu disse que não queria ninguém
aqui.
–
Não, você disse que não queria nenhum vampiro, bruxo ou humano atravessando
aquelas portas. – Kat corrige – Eu precisei encontrar uma brecha.
Reviro
os olhos novamente. Só ela faria algo assim.
–
E o que você quer tão desesperadamente que precisou fazer isso tudo para me
ver? – Pergunto.
–
Alguém tinha que ver se você ainda estava viva. Ficamos todas preocupadas com
você. – Kat se aproxima e me olha com os olhos brilhando – Kaylee. O que você está fazendo?
–
Descansando, como você e Persephone ordenaram. – Me defendo.
–
Quem você quer enganar? – Kat pergunta, mas tem os olhos preocupados – Você
parece exausta. Eu sei reconhecer um comportamento obsessivo depressivo quando
eu o vejo, Kay.
–
Eu não estou deprimida...
–
Você está enfiada aqui há mais de uma semana. – Kat me interrompe. – E proibiu
qualquer ser vivo de interagir com você. Ellie não ouve o barulho do chuveiro vindo
da sua suíte há pelo menos cinco dias. Olívia e Anika disseram que ouviram
barulhos suspeitos vindo daqui de dentro.
–
Eu estava vendo Game Of Thrones. –
Justifico. – Por que todo mundo tem o direito de fazer o que quer e eu preciso
ser pressionada sobre meus atos?
–
Porque eu conheço você. – Ela responde. – O suficiente para saber que você não
está bem e nem saudável.
Limpo
minha garganta, sabendo que não posso mais negar.
–
E daí? Você não é uma terapeuta. – É quase um desafio.
–
Li o suficiente sobre psicologia moderna. – Kat dá de ombros e se senta sobre a
minha cama. Quero reclamar, mas acabo me sentando do seu lado. – Eu não quero
tratar você ou fazer você falar. Só que a ideia de você enfiada aqui,
subsistindo, sem querer sequer tomar banho, me paralisa, Kaylee. Quero que você
fique bem. Me importo com você.
–
Você não entende. – Digo. – Você não sente.
–
Eu vou sentir. – Ela lembra. – Em breve. E se eu me conheço, sentimentos ruins
vão fazer com que eu me isole também. Consegue imaginar isso? Eu, completamente
sozinha, depois de quase duzentos anos?
Suspiro,
odeio a retórica de Kat.
–
Vir para cá para descansar me tirou o treinamento. – Digo. – Me tirou o
propósito. Fez as coisas ruins emergirem.
–
Bem, você ainda sente sua magia? – Ela pergunta.
–
Claro que sim.
–
Então não tem motivos para ter parado de treinar. – Ela diz. – Continue treinando.
Faça plantas crescerem, coloque fogo em coisas ou sei lá o quê. Apenas não
pare.
Concordo
com a cabeça, mais para fazer ela parar de falar do que qualquer outra coisa.
–
Eu realmente achei que você fosse me dar um conselho maluco sobre enfrentar o
que aconteceu e seguir em frente. – Eu digo.
O
rosto de Kat fica obscuro por um momento. Mais uma vez, ela opta por ser
sincera comigo.
–
Você sabe o que vai acontecer lá na frente. Talvez o passado seja o lugar ideal
para estar no momento.
3 de junho
Tatiana
Acontece
de novo. Eu acordo, no meio da noite, com o coração disparado e suando, graças
a um pesadelo do qual eu não me lembro. Como aconteceu nas noites anteriores,
eu me sento na cama e estico as pernas sob o cobertor. Controlo minha
respiração devagar e em seguida fecho os olhos tentando me lembrar de alguma
coisa. Nada volta, então, como um fantasma, eu visto meu robe e vou até a
janela, abrindo-a e sentindo o cheiro do orvalho enquanto espero o nascer do
sol. O tom de vermelho vivo que o nascer do sol tem na hora em que eu acordo me
lembra da profecia.
Depois
que encontramos o pingente de Naomi despedaçado no chão e nenhum sinal dela,
Louise e eu quisemos procurar por ela na cidade. Um pressentimento
(literalmente), avisou a Kat de nossos planos e ela ligou ordenando que não procurássemos por sua prima. O sumiço de Naomi
estava escrito na profecia e nós não poderíamos fazer nada a respeito. A última
coisa que Kat precisava é que outra de nós entrasse em contato com as Bátori. Qual
a história se passou entre este clã – do qual Kat nunca falou nada, mesmo que o
Exército tenha vivido em Graz por grandes períodos de tempo – e as Petry, é um
mistério que apenas Kat e Naomi conhecem. E nenhuma de nós se acha no direito
de descobrir o que aconteceu.
Apesar
disso, eu não consigo esquecer Naomi e focar na minha parte da profecia. Ela
era A Prometida, aquela que viera para que o destino do clã de Kat fosse
completado... E então, ela desistiu. Foi embora. Como se nada mais tivesse
acontecido. Sei que existe algo que Kat sabe e não está dizendo. Algo escondido
nas frases enigmáticas da profecia, que eu ainda não consegui decifrar. Talvez
Naomi ainda tenha algo a fazer na guerra e por isso esteja viva e bem. E talvez
ela esteja se destruído tão completamente que não exista mais nem no Inferno.
Um
movimento de algo na estrada faz com que a luz do sol reflita diretamente nos
meus olhos. Isso acontece sempre que eu fico na janela por tempo o suficiente,
mas dessa vez evoca algo diferente, um lampejo do sonho que eu tenho
frequentemente. Por um milésimo de segundo, tudo é fogo. Luminoso, quente e
colorido fogo que toma o espaço de tudo que eu posso ver. É lindo, atraente e
encantador. E não queima. Por mais quente que seja, o fogo não dói. É tão bonito.
Meu coração dispara pela atração que ele exerce sobre mim.
E
então, acaba. O milésimo de segundo chega ao fim repentinamente e eu estou no
meu quarto, fresco e limpo, tomado agora pela luz da manhã. Olhando novamente
para o ponto cuja luz refletiu sobre mim, eu percebo que a árvore lá embaixo
está queimando. Galhos, folhas e tronco completamente Tomados por Fogo.
15 de junho
Katerina
A
porta abre violentamente deixando uma corrente de ar frio invadir a sala
quente. Uma sombra esguia cobre a luz da lua por alguns instantes antes que
Sophie entre na sala, rindo sozinha e cambaleando.
–
Parece que alguém está bêbada. – Comento, do sofá.
Sophie
dá um salto, surpreendida pela minha voz na sala que ela imaginava vazia.
Quando vê o caderno antigo sobre meu colo, a luz discreta do notebook no sofá e
as fotos que eu estava encarando antes da porta abrir, ela me lança um olhar
desaprovador.
–
Parece que alguém está obcecada. – Reprime.
–
Estou me preparando para o futuro. – Eu digo. – É como fui criada.
Sophie
cruza os braços, já tendo ouvido essa frase. É a resposta que eu dou para
qualquer uma que tente me tirar da sala sem um bom motivo. Desde que voltamos
para Bucareste, em maio, e eu transformei a sala de nossa casa em um centro de
estratégias de guerra, as tentativas de me arrancar daqui para descansar são
frequentes. Mas não vai acontecer.
–
O resto de nós também está se preparando, você sabe. – Sophie diz. – Mas a
gente não vai conseguir salvar ninguém ou mudar o Destino presas em uma sala
escura, encarando as previsões do futuro.
–
Então você vai esperar – bebendo e se divertindo – que o destino venha buscar
sua irmã? – Pergunto.
Penso
que posso ter ido longe demais, mas o rosto de Sophie nem se abala.
–
Você esqueceu gastando dinheiro e dançando. – Ela completa, dando de ombros. Em
seguida, suspira e atravessa a sala para se sentar ao meu lado. – Eu estou
tentando, Kat. Mas não posso gastar todas as minhas energias preocupada com as
sombras. Preciso estar forte no dia em que elas se voltarem contra Charlottie.
Sophie
tem algo de vulnerável quando diz isso, repentinamente sóbria.
–
Você entende porque eu fiz isso, não entende? – Pergunto, sinalizando a sala
inteira, com suas paredes cheias de fotos e textos com linhas ligando uma
informação à outra.
Sophie
não está olhando para mim, mas percebo que seus olhos violeta se escurecem.
–
Você queria ser sincera conosco. – Ela responde. – Queria que soubéssemos o que
está acontecendo. Para que o que aconteceu com Naomi não se repita.
– Foi um erro? – Pergunto.
–
Não sei. Mas não era o que nós queríamos, Kat. Nenhuma de nós queríamos saber,
apenas você. Nem Persephone não leu a profecia e ela é a nossa vidente.
–
Persephone não tem interesse algum de lutar contra o Destino... – Começo.
Sophie
finalmente se vira para mim.
–
E nem nenhuma de nós. – Ela interrompe. – Você precisa entender: Nós buscamos
isso. Durante todos esses anos, nossos anos. É muito mais do que apenas nosso
sangue, nosso suor, nossas lágrimas. É muito mais que a glória, Kat. Não
importa se nós sairemos disso vivas ou mortas. Se o Destino dita que sairemos
vitoriosas, é tudo que importa.
–
Sua irmã... – Tento voltar a falar.
–
Eu só queria poder olhar para ela e não ter que pensar que ela vai morrer a
qualquer segundo, Kat. – Sophie diz. – Não ter medo até de mim mesma.
–
Você acha que eu deveria parar então? – Pergunto, com sinceridade – Que não
tenho chance de vencer contra o Destino?
–
Eu aprendi a não duvidar do que você pode ou não pode fazer antes mesmo de ser transformada.
– Sophie diz. – A pergunta é, por que você quer?
–
Eu quero manter todas vocês protegidas. – Digo. – Não quero que seis de nós
sejam perdidas por minha culpa.
–
Então faça algo útil. – Sophie responde. – Pense em formas de proteger quem
você quer protegida. Não tente lutar contra algo tão abstrato quanto o Destino,
quando existem pequenas coisas que você pode mudar aqui agora. Existe um espaço
cinza entre aceitar calada e se rebelar contra tudo, Kat.
O
cansaço das últimas semanas recai sobre mim. Lembro do que eu disse a Kaylee,
sobre não parar e percebo que o mesmo conselho não se aplica para mim.
Concordando com Sophie, eu fecho o caderno que está em meu colo e começo a
recolher as fotos espalhadas pelo sofá. Estou distraída, pensando em beber uma
bolsa de sangue e ter uma boa noite de sono, e quando Sophie me segura pelo
pulso, eu quase tenho a reação involuntária de mordê-la.
Sophie
arranca a foto que estou segurando da minha mão e com um simples sinal com a
mão acende as luzes da sala. Ela encara a foto como se tivesse visto um
fantasma e eu me inclino sobre ela para descobrir o que ela observa com tanta
intensidade. Na foto em preto e branco, uma família posa na frente de uma
árvore no que parece um jardim de uma casa. Não reconheço as pessoas na foto ou
o local. Qualquer coisa que tenha chamado a atenção de Sophie, não está ligada
a mim. Depois de mais de um minuto de observação silenciosa, Sophie pega o
computador que estivera entre nós duas por todo este tempo e começa a digitar
algo.
–
O que você está pensando? – Pergunto, ansiosa.
–
Você já ouviu falar em rowans? – É
tudo que ela diz.
A
mistura das línguas me confunde, imaginando que ela se refere ao oráculo.
Quando olho novamente para a foto, percebo a árvore atrás da família e entendo.
–
A árvore que os celtas usavam para se proteger contra bruxas?
Sophie
concorda com a cabeça:
–
Eu queria me lembrar da rima... – Ela diz, frustrada.
–
"Rowan tree and red thread / make the witches tine their speed". –
Canto e mesmo sem precisar, traduzo: – Tramazeira e linha vermelha / Faça com
que as bruxas percam seu propósito.
Os
olhos de Sophie faíscam.
–
Sua velocidade, Kat. – Ela diz, tomada de conhecimento repentino. – Faça com que as bruxas percam sua velocidade.
Videntes eram consideradas bruxas até o século XII. Suas previsões eram
feitiços e maldições.
–
Os frutos eram usados para parar o Destino. – Completo seu pensamento. – Impedir
sua velocidade.
Sophie
ainda está encarando o notebook e me indica uma parte do texto na tela com a
ponta da unha.
–
A mitologia grega diz que as tramazeiras foram feitas do sangue das águias que
foram recuperar o cálice de Hebe de demônios. O céu que sangra e leva até o Inferno. – Seu rosto se ilumina
quando ela volta a olhar para mim – Uma pista, Katerina. Precisamos encontrar
tramazeiras.
–
Não precisamos. – Respondo. – Eu sei exatamente quem possui uma maldita
plantação delas.
24 de junho
Eleanor
–
Que cheiro é esse? – Digo, assim que desço as escadas.
Vejo
logo várias caixas abertas cheias de frutinhas vermelhas e não preciso de
resposta, mas ainda assim, Valentina – usando um ramo atrás da orelha para
decorar o cabelo – me responde saltitante:
–
As tramazeiras que Rowan enviou chegaram.
Sorrio
para ela e atravesso a sala para me sentar entre Kat e Sophie.
–
Vocês já sabem o que fazer com isso? – Pergunto.
–
Rowan disse que ela usa como placebo. – Sophie explica, sem olhar para mim. Ela
está entrelaçando alguns ramos escuros no formato de uma coroa e olha para eles
com cuidado. – Dê isso a alguém e a pessoa se acredita protegida de algum
destino horrível até que ele chegue.
–
E vocês acham que isso funcionaria de alguma outra forma além de um placebo? –
Digo, cética também.
–
Eu estou lendo histórias sobre o uso de tramazeiras há mais de uma semana. –
Kat responde, ela olhando para mim – Foi usada para afastar bruxas, para se
proteger de feitiços e maldições, para evitar ataques de criaturas malditas e
até mesmo para se proteger do inferno. As referências à proteção contra o
Destino estão encobertas, cheias de enigmas...
Kat
para de falar, mas eu a conheço bem demais:
–
E você acredita que isso significa que a Força Regente possui sua fraqueza
nessas florzinhas. – Completo.
–
Tudo tem uma fraqueza, Ellie. Tudo é destrutível em algum ponto.
Suspiro
e olho para Sophie. Ela está colocando a pequena coroa de folhas e frutos que
teceu na cabeça da irmã e as duas riem de algo que não ouvi.
–
Eu pensei que Sophie tivesse convencido você a não lutar contra o Destino. –
Digo, mais baixo. – Ele não é nosso inimigo, Kat. O Inferno é.
–
Eu sei. – Kat diz, olhando a mesma cena que eu. – Mas o Destino é a Força
Regente e é ele que dita que o Inferno leve Charlottie no dia seguinte ao Dia
em que O Fogo subirá da Terra aos Céus. É dele
que eu preciso proteger Charlottie. – Quando eu concordo com a cabeça, ela
suspira e completa: – No pior dos casos, rowans
são conhecidas por protegerem pessoas de sombras.
1º de julho
Juliana
Eu
posso sentir no ar que hoje é um dos bons dias. Eu sempre sei. Os dias ruins
me deixa indecisa: Devo continuar na cama e evitar tudo ou devo sair daqui o
quanto antes e garantir que ela fique bem? Mas os dias bons me fazem saltar da
cama com vontade e correr para preparar tudo para ela.
Alexandra
fica no quarto do lado do meu, que costumava ser de Miranda. Assim que voltamos
à casa, Valentina tirou todas as coisas da irmã do quarto que era dela e disse
que Alex poderia tomar o espaço vazio e decorar como quisesse. Quando está em
posse de si mesma, minha irmã quase não tem forças para comer, quanto mais sair
pela cidade escolhendo coisas para decorar seu quarto. Desta forma, seu quarto
é mais uma enfermaria do que um quarto de verdade.
Bato
na porta do quarto com delicadeza e a abro com cuidado quando não recebo
resposta. Alex ainda está dormindo, fazendo aquele ruído estranho – que não é
nem bem um ronco e nem o chiado que doentes fazem – que ela sempre faz quando
dorme profundamente. Começo a recolher as roupas sujas espalhadas pelo quarto.
Roupas que eram minhas, que compramos no aeroporto ou compramos em Bucareste.
Alex estava presa na clínica de fachada, usando há meses a camisola da
enfermaria. Ela fedia e o robe estava colado em sua pele. Seus cuidadores se
preocupavam apenas em impedir que o parasita se manifestasse, não pensavam em
seu bem-estar.
O
parasita quase nunca se manifesta. Ele parece descansar constantemente, apenas
puxando a energia de Alex, consumindo sua alma, fazendo com que ela se sinta
doente, cansada, irritada. Ele é, afinal de contas, um parasita infernal. Quer
consumir o corpo de sua hospedeira até destruí-la. Quer apenas se manter vivo.
– Juliana?
– Ouço a voz frágil de minha irmã perguntar, depois de um tempo.
– Sou
eu. – Respondo, enfiando as roupas na cesta e indo até ela.
Alex
sequer abre os olhos. Está pálida e suada, mas ainda parece melhor do que
estava ontem.
– Você
pode trazer mais algumas daquelas frutinhas para mim? – Ela pede.
Sabia
que hoje era um dos bons dias. Meu coração quase pula de felicidade. É
estranho. Eu sei que por consumir pouco sangue – e não tomá-lo de ninguém à força – eu estou cada dia mais
conectada com a minha alma, mas a volta de sentimentos tão puros quanto essa felicidade
pelo bem estar dos outros não parece natural.
– Você
não quer ir comer lá embaixo? – Peço. – Tomar um pouco de sol?
Alex
abre os olhos amarelados e percebe que eu estou quase suplicando.
– Talvez
mais tarde. – Ela responde. – Comer vai me deixar mais forte.
Concordo
com a cabeça e digo que já volto, deixando o quarto. As frutinhas em questão
são as tramazeiras que Rowan mandou. Foi Sophie quem sugeriu que Alex comesse
algumas, já que mal não poderia fazer. Desde então, é tudo que minha irmã quer
comer e as frutas têm mesmo parecido deixá-la mais forte.
Os
dois corredores de cima estão vazios e no andar de baixo, só Kat, Ellie,
Charlottie e as duas bruxas estão sentadas, mexendo nas caixas de tramazeiras,
lendo e fazendo anotações coordenadamente. Pego uma caneca grande na cozinha e volto
para a sala, pedindo por algumas.
– Como
ela está? – Ellie pergunta, conforme enche a caneca de frutinhas para mim.
– Bem.
– Respondo, suspirando. – Apenas cansada, como sempre. Pierre esteve por aqui?
Queria que ela descesse hoje e Pierre é o único que a convence de fazer esse
tipo de coisa.
– Pierre
foi para Bucareste logo cedo. – Sophie diz. – Ele continua não suportando o
cheiro das plantas.
É,
acho que isso faz sentido.
– E
onde está todo resto da casa? – Pergunto.
– Algumas
já saíram, outras estão dormindo. – É a vez de Kat responder. – Acredito que
Louise ainda esteja lá em cima.
Sua
sessão de estudos é tão metódica que até mesmo suas respostas são coordenadas.
– Certo.
Irei atrás dela. – Digo, começando a fazer o caminho de volta, mas elas já
estão com a cabeça nas frutinhas novamente.
Começo
a fazer o caminho de volta, mas ao passar por uma das paredes, noto colada nela
uma página de um diário que eu li e que evocou todo tipo de fúria em mim.
Arranco a página da parede violentamente e carrego ela para o andar de cima.
Alex se senta na cama quando eu abro a porta outra vez. Ela nota que estou
abalada, mas apenas aceita as frutas em silêncio. Ela não consegue evitar
encarar a folha de papel na minha mão, à qual eu mesma olho, mas sem vê-la de
verdade.
Ninguém
nunca vem aqui. À exceção de Pierre, que possui uma amizade inusitada com minha
irmã, e Louise que gosta de mim demais para não vir ao lugar onde eu passo mais
tempo, nenhuma das outras moradoras da casa se arrisca a entrar no quarto de
Alex. Isso me surpreendeu no começo – eu achava que a atração da curiosidade seria
violenta e que eu precisaria afastar todo mundo de perto de Alex. Depois,
começou a fazer sentido.
Não
existe bizarrice que o Exército já não conheça ou maluquice exótica que
surpreenda qualquer uma de nós. Não existe um bom motivo para que qualquer uma
que não seja eu e Louise procure uma cura para Alex e eu sei que a ajuda de
Kat, Ellie, Sophie e Kaylee é por boa vontade. Tem muita coisa acontecendo e
muita coisa ainda está por vir. Ninguém precisa de mais uma preocupação, algo
que não diz respeito ao Destino delas. Então, eu entendo o motivo de ninguém
querer vir até aqui.
É
por razões parecias que eu nunca quero ir lá embaixo.
17 de julho
Olívia
Com
um puxão pela gola da camisa, Louise me levanta e me atira no chão. Dói, mas
não tanto quanto costumava doer. De repente, percebo que estou entediada.
Dolorida também é claro, mas principalmente entediada e é isso que me faz dizer
“Chega” a Louise e terminar nossa
brincadeirinha violenta.
– Não
existe chega em uma batalha, Olívia. – Louise responde, suada e cansada, mas
ainda em posição de batalha. – Se você
pede pelo fim, o que você recebe é a morte.
– Senhor, sim, senhor. – Zombo. – Eu estou
ficando terrivelmente entediada desse jogo repetitivo. Você é mais alta e mais
forte do que eu, sempre consegue me derrubar.
– E
você ainda não aprendeu a usar seu peso e altura a seu favor, e é por isso que
não pode parar agora. – É a resposta disso até agora.
– Nem
para beber alguma coisa? – Pergunto, com um sorriso amarelo.
Louise
pondera.
– Se
fizermos uma pausa agora, continuaremos depois até depois que o sol se pôr. –
Ela responde. – Até você conseguir me derrubar.
– Ei,
eu já consegui derrubar você! – Rebato, mas já estou andando de volta para a
casa.
– Uma
vez! Semanas atrás. Foi mais por despreparo meu do que por preparação sua.
Não
posso nem discutir com isso. Tudo que sei é que não vejo essas sessões de
treinamento com os mesmos olhos que Louise. Ou talvez, veja. Louise vem para cá
para fugir dos estrategistas de guerra, do caos do parasita infernal e de
discussões sem sentido. Eu, venho para fugir do tédio e de uma guerra que me
deixa confusa. Preciso fazer alguma coisa, mesmo que não ache que algum dia
estarei pronta para um embate físico.
Conforme
nos aproximamos da casa, notamos um movimento incomum. Para começar, três
carros iguais estão parados na entrada dos fundos. Isso já indica que não são
visitantes comuns – o que nunca temos. O que quer que seja, nem eu, nem Louise
fomos informadas com antecedência. Assim que chegamos à entrada, encontramos
Kat e Ellie carregando os carros com alguns dos nossos pertences e com as caixas
das tramazeiras que ainda sobraram.
– O
que aconteceu? – Louise pergunta quando paramos ao lado do carro onde Ellie
arruma as coisas.
– Aí
estão vocês! – É a resposta dela. – Corram para pegar o que consideram
importante, nós vamos voltar para Piatra Neamţ.
Começo
a fazer exatamente isso, mas Louise me segura pelo ombro.
– Você
não respondeu à minha pergunta. – Insiste para Ellie.
Ellie
lança um olhar desamparado em nossa direção, mas Kat acabou de sair da casa de
novo com uma pequena maleta na mão e entende a cena que está acontecendo na
mesma hora.
– O
parasita se manifestou novamente e começou a clamar por Persephone. – Kat
responde. – Disse que apenas ela pode salvá-lo. Ele está morrendo, Louise, e
vai levar Alexandra junto. Além disso, quando ligamos para Persephone, ela
disse que já sabe o que vai acontecer e quando vai acontecer. Temos que voltar.
– Você
está falando da morte de Ch...? – Começo, mas Kat me interrompe:
–
Temos até o dia depois da próxima lua cheia. Três dias. Precisamos ir.
Via E81, Romênia
18 de julho
Charlottie
Saímos
antes do sol nascer, os três carros cheios dos nossos pertences e de nós
mesmas. Kaylee, Ellie e Sophie são as únicas que sabem dirigir e os carros
seguem enfileirados pela estrada, feitiços poderosos de camuflagem nos
protegendo pelo caminho de volta, como fizeram na ida. O carro de Ellie está
com Anika, Valentina, Tatiana e Olívia e eles parecem ser o grupo que segue com
mais tranquilidade e silêncio. No carro onde estou, de Sophie, estamos além
dela, eu e Pierre, junto com três caixas de tramazeiras no banco de trás.
Pierre e Sophie não param de discutir, e quando parecem que estão terminando,
Sophie encontra algo a dizer e a briga recomeça. Eu acho que ela só não quer o
silêncio. No carro de Kaylee, estão Kat, Juliana, Alexandra e Louise.
Mesmo
que um carro inteiro se coloque entre nós, ainda é possível ouvir os gritos do
parasita. Ele fala em línguas mortas, depois xinga em romeno, inglês, francês,
português e mais outra dezena de línguas que conhecemos. Clama por algo, chora,
se desespera. Diz que vai morrer e repete o pedido pela vidente. Se alguém
tenta se aproximar ou deixar o corpo da hospedeira mais confortável, solta um
chiado, os olhos de Alex escuros e seu nariz sangrando. Então repete gritos e
lamúrias, falando em alguma língua que só os demônios entendem. Pierre tentou
se comunicar quando ainda estávamos em Bucareste, mas o demônio gritou ainda
mais alto, fazendo a garganta de Alexandra falhar. É enlouquecedor. Ninguém
sabe se tirar o parasita de Alex vai ou não matá-la, qual a condição de sua
alma no momento ou o que é exatamente é esse monstro consumidor. Ninguém
procurou saber, porque todo mundo estava preso no seu próprio mundinho ou
tentando salvar a mim.
Um
arrepio sobe pela minha espinha, e enquanto eu fecho o vidro da janela do
carro, eu percebo que o carro finalmente está silencioso depois de duas horas.
Sophie colocou uma música tranquila e a ouve baixo para não perder a atenção na
estrada ou no feitiço que faz constantemente. Olho para trás e Pierre está
dormindo, a cabeça balançando contra o vidro da janela para ficar o mais
afastado possível das caixas de rowans.
–
Me diga que você não apagou Pierre com um feitiço. – Digo para Sophie.
Sophie
ri.
–
Bem que eu queria, mas Kat nunca deixa e eu me acostumei a não fazer. – Ela responde
– Acho que o cheiro das frutinhas embalou ele ao sono.
Com
a menção às frutas, eu faço o que faço constantemente e puxo uma frutinha do
arranjo que não tiro do cabelo. Encaro a frutinha como se ela viesse de outro
mundo. Tramazeiras possuem frutos vermelhos em forma de lágrima, com uma marca
em forma de um pentagrama na base. São firmes e agridoces, mas cedem quando eu
aperto com força. Eu faço isso mais uma vez, estouro a frutinha em minha mão e
o liquido dentro dela escorre pelas aberturas dos meus dedos, caindo no meu
vestido.
–
Charlottie. – Sophie diz, ao notar minha expressão encarando a bagunça que fiz.
– Não faça nada estúpido. Não vou desistir de proteger você ou sair do seu
lado, mas você precisa confiar em mim.
Solto
uma risada cruel, mas não digo nada. Sophie sabe que isso não é o suficiente e
geme, imaginando o que eu devo estar planejando. Mas eu não estou planejando
coisa alguma, estou apenas com frio, mesmo que seja meio do verão, e estou
pensando em como os gritos do parasita soam como “dois dias, dois dias, dois
dias”.
Via DN2/E85
Olívia
É
quase meio dia quando acontece. Um vulto atravessa a estrada e o carro de
Kaylee freia bruscamente. Ellie precisa desviar de repente, assim como Sophie,
e os dois carros deslizam pela estrada. Eu posso sentir o feitiço de camuflagem
se quebrar em mil pedaços, mas não existe outro carro na estrada.
De
onde estamos, não é possível ver a frente do carro de Kaylee e descobrir porque
ela parou, mas nós não deveríamos parar de jeito nenhum, então Ellie e Sophie
trocam olhares através dos para-brisas do carro. Sophie sai de seu carro ainda
ligado e Ellie se vira para conferir se estamos bem antes de fazer o mesmo. Mal
eu faço um sinal com a cabeça do meu canto, o carro balança com o impacto de algo
grande atirado sobre seu teto.
Ellie
nem pensa, apenas acelera em direção à floresta às margens da estrada. Dirige
apressada, sem olhar para trás, passando por cima de plantas rasteiras
intocadas e violentamente arrancando galhos das árvores. Dirige por quase três
quilômetros antes de estacionar o carro em um lugar seguro, escondido entre
duas grandes árvores. Quando para, fica respirando fundo, controlando algum
impulso de sentimento que possui dentro dela.
–
Ellie. – Anika chama, do meu lado. Ellie continua respirando fundo, chiando e
não diz nada, então Anika repete: – Ellie. Nós precisamos voltar. Descobrir que
diabos foi aquilo.
A
voz de Ellie soa com um fundo de ódio que eu conheço bem demais.
–
Eu sei exatamente que diabos foi isso. – Ela rosna – E nós precisaremos de muito
mais que fogo dessa vez.
Quando
chegamos à estrada, a luta está no meio. Os carros estão vazios e pegando fogo.
Três mulheres altas e musculosas tentam escapar das bombas de fogo que Sophie
lança em sua direção. Pierre está torturando mais alguns vampiros, o esforço claramente
o abalando. Charlottie escapa de tentativas de segurá-la com a leveza de uma
bailarina. Kat usa de golpes que eu nem imaginava que ela conhecia. Louise,
Juliana e Alexandra não podem ser vistas em lugar nenhum, mas eu ainda consigo
ouvir os gritos do parasita, provavelmente excitado pela batalha. Também não
vejo Kaylee.
A
pedra em meu colo está pesada, mas não apresenta os sinais de que alguém está
sangrando. Percebo que a luta corre bem e junto a Ellie, Anika e Valentina
corro para aliviar o peso da batalha de minhas irmãs. Pegando pelo pescoço uma
das vampiras que fugia de Sophie, sou atirada ao chão imediatamente. Sequer dói
e eu agradeço a Louise, onde quer que ela tenha se metido. Eu repito o ataque
uma, duas, três vezes. A mulher acha graça, como se fosse uma brincadeira de
criança. Finalmente, uso a leveza da minha mão para roubar a faca que ela tem
presa à cintura e depois de golpeá-la nas costas, consigo arrancar a cabeça da
mulher de seu pescoço com os dentes. Quando volto a mim, a batalha já está
acabando e toda estrada é uma confusão de corpos pegando fogo.
–
Bem, eu espero que agora tenhamos
acabado com o Clã Romeno. – Sophie brinca, depois de colocar fogo no último
corpo torturado, se afastando da estrada para nos ajudar.
–
Sinto dizer que eu duvido muito. – Kat responde. – Viu algum dos líderes? – Completa,
para Ellie.
Ellie
discorda com a cabeça, tensa. Ela tem sangue desde o pescoço até o meio do
joelho, sangue dos outros, e eu me pergunto quantas pessoas ela matou nessa
batalha.
Andamos
para fora da estrada e nos escondemos atrás de árvores. A contagem começa
quando Louise e Juliana saem das sombras com Alexandra desmaiada entre as duas.
Pierre assume o peso da garota na mesma hora, apesar de ainda estar um pouco
machucado. Quando a contagem termina, não encontramos Kaylee.
–
Alguém sabe o que aconteceu para fazê-la frear daquele jeito? Nós tínhamos
regras. – Kat pergunta, apesar de estar ao lado dela durante a viagem. As
outras pessoas que estavam no carro discordam com a cabeça.
–
Eu acho que ela viu alguma coisa. – Louise diz, mais baixo.
Sophie
ergue a mão para silenciar todo mundo. Passa alguns segundos tentando ouvir
algo, nervosa. Quando consegue, suspira.
–
Ou alguém. – É o que diz, simplesmente, indicando o caminho que devemos seguir.
Seguimos
pela floresta por quase quinhentos metros antes que encontremos uma clareira,
em um sentido oposto ao lugar onde o carro de Ellie está. Na clareira, ouvimos
a voz de Kaylee, lançando uma maldição em latim, um feitiço antigo. O que capto
da frase gritada, ordena que os mortos continuem mortos. Aproveitando meu
próprio tamanho novamente, passo na frente da formação do Exército e tento
descobrir o que está acontecendo. Kaylee está parada no meio da clareira e
diante dela uma figura mediana se curva no chão, tomada por dores explosivas.
–
VOCÊ NÃO PODE MATAR O QUE A PRÓPRIA MORTE NÃO QUER MORTO. – A figura em agonia
diz repetidas vezes, em inglês.
Eu
reconheço a voz e o sotaque antes de ouvir a primeira repetição. Amelie.
Próximo a Bucau, Romênia
19/20 de julho
Valentina
Eu
não consigo evitar. Mais de um dia depois, eu continuo encarando Amelie durante
todo o caminho que fazemos de volta para o carro de Ellie. Ela está sentada no
chão, tem as mãos e os pés presos. O rosto está livre, mas a mandíbula está
travada, se recusando a falar. Ela nem parece pálida. Três meses atrás estava
morta, sem coração, no chão do cemitério de Piatra Neamţ e agora está viva – ou
tão viva quanto eu estou. Eu não acho que teria voltado à vida em 1900 se
estivesse sem coração, mas,
novamente, você não pode matar o que a
própria Morte não quer morto.
Estamos
sentadas em círculo próximas ao carro de Ellie, tentando descobrir como vamos
levar catorze pessoas em apenas um carro. O dia inteiro foi passado tentando montar
a dinâmica disso, mantendo Alex desacordada e Amelie presa. Em uma ligação hoje
cedo, Persephone disse que o sangue das que se foram nos deixou mais forte, por
isso uma luta física foi vencida com facilidade hoje, mesmo que os membros
restantes do Clã Romeno tenham sido treinados pela mesma pessoa que nos treinou
e conhecia todos os nossos truques.
Bocejo.
Está tarde, eu não dormi ontem e passei o dia inteiro encarando Amelie com ansiedade.
Kaylee faz o oposto disso, evitando olhar para seu sacrifício e passando o dia
inteiro conversando com Kat e Sophie sobre como levar todas nós seguramente
para Piatra Neamţ antes do dia 21 – quando Charlottie está marcada para morrer.
A lua cheia brilha ameaçadora contra o capô do carro negro e eu me distraio
olhando para esse reflexo. Aprendi a olhar para a lua com medo pelo que seus
ciclos significam para a nossa guerra. Batalhas em dias de lua cheia, gritos de
guerra em dias de lua minguante, mortes em dias de lua crescente, visitantes
indesejados em dias de lua nova. A batalha final na Lua Negra, entrando pelo
céu que sangra. Sinto falta de minha irmã. Ela saberia o que significa “o céu
que sangra”...
Acordo
de repente, a luz da manhã invadindo meus olhos. Me acostumei a dormir sentada
no chão duro e quase não me mexer a noite inteira, mas meus ossos ainda
reclamam um pouco. O Exército inteiro continua ao meu redor, algumas de nós
dormindo, outras – naturalmente, Kat, Ellie, Sophie e Kaylee – acordadas e
observantes, conversando e mantendo os olhos bem abertos.
Algo
está errado e eu não sei dizer exatamente o que é. Conto quantas de nós somos
com cuidado, mas a contagem está certa, não interessa quantas vezes eu a
refaça. Quando passo os olhos pelo círculo mais uma vez, eu noto um movimento.
Pierre não está dormindo onde estava antes. Ele agora está deitado em uma
posição estranha – quadril para cima e braços abertos, com o rosto pressionado
contra o chão – ao lado de Alexandra. Ele se mexe apenas um pouco, mas como se
convulsionando e solta pequenas lamúrias regulares. Me levanto e me aproximo
dele, movida pela curiosidade. As outras acordadas me seguem com o olhar e
percebem a movimentação estranha de Pierre.
Toco
nele com a ponta do pé e seu corpo se estica para a frente como se estivesse
sem vida. Embaixo dele, muito sangue, cujo cheiro toma conta da floresta
imediatamente. Todas as vampiras que estavam dormindo acordam ao mesmo tempo e
as já acordadas, se colocam de pé. No mesmo segundo, um grito cortante vem de
trás de mim e o parasita acorda. Conforme ele começa a falar em línguas
demoníacas novamente, o céu escurece, como tomado de fumaça de queimadas.
Pierre, apesar de sangrando e desacordado, continua gemendo. O parasita,
continua falando. Atrás de onde eu estou, ouço a voz de Ellie gritar, em
choque:
–
TATIANA!
Quando
me viro, Ellie já está ao lado da tataraneta, que caiu no chão, ficando quase
na mesma posição que Pierre. Tatiana está suada e convulsionando, com a pele
muito vermelha.
–
Ela está quente. – Ellie diz, olhando para Kat. Sua própria pele, onde está em
contato com a de Tatiana, está cheia de bolhas que se curam logo em seguida,
mas devem doer.
Os
olhos de Tatiana estão se revirando. Suas respirações são altas e ecoam pela
floresta. O resto do Exército está em choque tão absoluto que ninguém mais se
move. Em um lampejo de consciência repentino, ela agarra a gola da camiseta de
Ellie e puxa seu rosto mais para perto. Tenta falar, mas parece ter algo em seu
pulmão. Ellie tenta acamá-la, mas seus olhos escuros aumentam de tamanho e ela
consegue dizer, antes de voltar às convulsões:
–
Eles estão nos chamando.
Piatra Neamţ, Romênia
20 de julho
Katerina
–
TATIANA NÃO DEVERIA MORRER. – Acuso, assim que desço do carro em frente à casa
de vidro e sou recebida por Rowan, Selene e Persephone na varanda.
–
Olá para você também, Katerina. – Rowan resmunga, revirando os olhos. – Tatiana
não vai morrer. Não é para isso que ela foi chamada. E você tem coisas mais
importantes com o que se preocupar.
Enquanto
o oráculo diz isso, Persephone está atrás de mim dando ordens para meu
Exército. “Levem Charlottie para o banheiro, ela não pode sair de lá! Levem
Tatiana e Alexandra para o andar de cima e Pierre fica no andar de baixo! As
bruxas cuidam dos atingidos! Ellie cuida de Amelie! As outras meninas montam
guarda para Charlottie!”. Quero gritar com ela e ordenar que ela pare com isso
e me diga imediatamente o que está acontecendo antes de tomar qualquer decisão
por mim. Mas resolvo ser racional e levo em consideração o fato dela conhecer o
futuro. Olho para Rowan com o maxilar travado.
–
O que você tem a me mostrar? – Pergunto, como fazia em nossas sessões de
estudo.
Rowan
sorri e indica o lado de dentro da casa. Entro na casa de vidro com frustração
e sou seguida por ela. Assim que entro na sala, as paredes me mostram um
display do céu, escuro como estava em nosso caminho até aqui. No meio do céu, porém,
existe uma abertura. Um corte amarelado em forma de cone, que poderia se passar
pela luz do sol para quem não prestasse atenção no fato de que neste horário, o
sol está do outro lado. A luz é absurdamente clara, mas não ilumina coisa
alguma. Não aquece também, o dia está frio como no inverno.
–
Isso é a ruptura. – Rowan diz, enquanto eu olho. – Não exatamente, é claro, é
um reflexo da ruptura do Inferno em nossa dimensão. Está assim desde as seis da
manhã de hoje.
Estou
prestes a fazer uma pergunta, quando uma sombra escura do tamanho de um adulto,
corta o céu e desaparece na luz da ruptura.
–
O Inferno está convocando suas criaturas de volta. – Digo, entendendo na hora.
–
Tudo que tenha um pouquinho do inferno nas veias ou na alma. – Rowan confirma. –
O que inclui Pierre e Tatiana.
–
Você disse que ela não morreria. – Lembro.
–
Ela não vai, Kat. – Rowan diz, com um sinal da mão. – Você não entende? O Dia
em que O Fogo subirá da Terra aos Céus. Este é o título de Tatiana. O Fogo.
–
Eles não pretendiam convocá-la. – Diz uma voz entrando na sala – Foi um erro.
Eles esqueceram que Pierre e Tatiana existiam por um instante, tão concentrados
que estavam em chamar suas criaturas de volta e fechar a ruptura.
Ellie
atira Amelie contra o sofá, soando frustrada e algo mais que eu não identifico
imediatamente.
–
Como você sabe disso? – Pergunto.
–
Digamos que eu estou um pouco lá e um pouco aqui. – Ela resmunga.
É
quando eu percebo. Seus olhos entram e saem de foco uma vez por segundo. Sua
alma está passando pela ruptura.
–
ELLIE! NÃO FAÇA ISSO! – Grito, indo na direção dela.
–
Não tente. – Ela responde, esticando a mão para impedir que eu me aproxime. –
Eles querem um acordo. Estão propondo coisas àqueles que escaparam, para que
eles voltem à proteção do Inferno, mas continuem com parte da liberdade que
queriam.
–
Não vai funcionar. – Rowan diz, de onde está.
–
Ellie, isso é loucura. – Peço. – Não faça isso.
Ellie
não me escuta. Seus olhos seguem sem foco por um tempo. Por muito tempo. Tempo
demais. Seu rosto se contorce em agonia em alguns momentos, mas volta ao normal
rapidamente. De repente, ela volta por definitivo.
–
E eles me expulsaram. – Ela bufa. – Espero que Tatiana e Pierre consigam ouvir
algo mais. Kat, eles disseram que darão propósito a cada um dos envolvidos na
guerra contra a paz na humanidade. A cada sombra que optar por continuar na
Terra.
E uma sombra ganhará um propósito. De
tocar A Intocável, destruindo A Irmã.
–
Mantenha Charlottie e Sophie presas
no banheiro. – Digo, decidida – Não deixem que ninguém saia ou que ninguém
entre de jeito nenhum. Janelas fechadas, vedem as portas e nada de luz. Tire
seus celulares delas. Se conseguirmos manter tudo bem nas próximas 24 horas,
veremos o que fazer em seguida.
21 de julho
Tatiana
O
som de vidro se quebrando é um dos meus sons preferidos no mundo. Todas as
integrantes do Exército têm seu próprio habito destrutivo e este é o meu: Quebrar
vidros e ouvir o som agudo que eles fazem ao se despedaçar. Sou acordada esta
manhã, ainda entorpecida, com o som de vidro quebrando. Aliás, pelo som da casa
de vidro inteira, se despedaçando.
Imediatamente,
todo mundo que dormia no andar de cima acorda, e busca desorientado pela fonte
da destruição. Todo mundo tem um corte em algum lugar e a dor do meu próprio
corte se mistura à dor dos outros. Um choro alto vem do andar de baixo e todo
mundo se move automaticamente na direção dele. Sou uma das últimas a chegar na
sala e preciso me esticar para ver o que está acontecendo.
No
meio da sala, em um círculo sem estilhaços estão Sophie, Alexandra e
Charlottie. Sophie chora, alto, com o corpo sangrento da irmã pressionado
contra o peito. Charlottie ainda tem os olhos abertos, sem vida, encarando o
teto. Alexandra está jogada no chão, acho que ainda respira, mas está cercada
de uma substância espessa, escura e nojenta.
–
O que você fez com ela?! – Juliana pergunta, se jogando na direção da irmã.
Sophie
simplesmente rosna, apertando a irmã com mais força. Continua chorando. Seu
choro é tão intenso e suas lágrimas tão profundas, que carregam sua dor para a
parte vazia de mim. Ela está nos enfeitiçando. Chorando de forma a fazer com
que a dor dela seja nossa também.
–
Sophie. – Ellie diz, tentando se aproximar. Seus olhos estão cheios de lágrimas
também e se Sophie não parar, Ellie logo cairá em um choro muito mais profundo
que o de Sophie poderia ser. – Deixe-a ir.
–
SAIAM. – Sophie responde. – SAIAM AGORA.
Saímos.
Não há nada que possamos fazer contra ela ou o poder que ela está emanando
agora. Ellie puxa Amelie pelo cabelo para o lado de fora, Pierre ajuda Juliana
com o corpo inerte de Alexandra e saímos todos da casa, inclusive as donas dela
e sua tia. Ficamos do lado de fora, olhando a estrutura da casa de vidro, agora
apenas vigas de ferro, uma escada e a estrutura dos pisos. Estamos assustadas,
mais do que estivemos em muitas outras situações. Não tememos o Inferno, eles
já fizeram conosco o pior que poderiam fazer. Sophie é uma força própria e ela
ainda está longe de alcançar seus limites.
Anika
e Valentina estão abraçadas a Ellie, que afaga seus cabelos como se buscasse
proteção nelas também. Kat encara o interior da casa com os braços cruzados,
desafiando eu não sei o quê. A família de Persephone está alheia em um canto,
como se não tivessem nada a ver com o que está acontecendo. Kaylee e Olívia
estão paradas ao lado delas, as mãos às costas, se movendo nervosamente. Juliana,
Louise e Pierre tentam acordar Alexandra de alguma forma. Eu, estou afastada,
assustada. As coisas que vi e ouvi no Inferno voltando a mim em pequenos
flashs. Cada vez que um deles vêm, eu me sinto cansada, mas logo em seguida,
regenerada, como se algo novo existisse em mim. Vejo algo que me faz me virar
para Pierre. Ele está me encarando, viu a mesma coisa. Sinalizamos com a cabeça
um para o outro silenciosamente. Segredo por enquanto.
Sophie
sai da casa, sem o corpo da irmã, depois de quase meia hora e nós nos movemos
quase que automaticamente na direção dela. Não sabemos o que mais fazer, então
tocamos nossas pedras, em silêncio, como reverência. Sophie tem uma expressão
de desprezo. Em um segundo, ela faz um sinal com as mãos e coloca fogo na
estrutura da casa atrás dela.
–
Sophie! – Persephone finalmente reclama.
Sophie
rosna em resposta e se aproxima de Ellie, caindo em seus braços. Ellie entende
o sentimento desesperador que atravessa o corpo de Sophie e a consola em
silêncio. Não vejo o que mais acontece; sou distraída pelas labaredas que tomam
o que restou da casa de vidro.
Grandes
colunas de fogo são necessárias para destruir por completo uma casa feita de
ferro e vidro. Colunas quentes, cuja temperatura segue aumentando, alimentadas
pelos sentimentos intensos e dolorosos de Sophie. Mesmo sabendo que o fogo está
quente e sentindo sua temperatura, eu não sinto os efeitos da temperatura em
minha pele.
Esse
pensamento e o fato de que Ellie grita meu nome com a mesma intensidade que
gritou quando eu fui para o Inferno, me despertam do transe. Eu percebo que estou dentro da casa e que
minhas roupas estão pegando fogo, mas eu não.
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