“E quase todas as coisas, segundo a lei, se purificam com
sangue; e sem derramamento de sangue não há remissão.”
Hebreus 9:22 (Bíblia Sagrada)
As Crônicas de Kat:
Lullaby
Piatra Neamt, Romênia
21 de julho de 2016
Anika
Ela que descende da Criadora
E possui em suas veias legado maior que as Estrelas
Criada para ir além da Abominação que a fez nascer
Toma controle daquilo que lhe foi negado
Nasce de novo, de Cinzas
A última de sua Linhagem de Sangue
E se torna Senhora
Herdeira; Princesa
Os acontecimentos do dia fazem aparecer em Ellie seu lado
protetor. Assim que chegamos à casa de Rowan ela alista Valentina e eu. Depois
de garantirmos que Tatiana vista roupas limpas e que Sophie descanse, é a hora
de conferir a situação de Alexandra. A garota ainda está desacordada no quarto
de Rowan, deitada em sua cama, pálida como um fantasma e Juliana não sai de sua
cabeceira. Não preciso olhar duas vezes para notar que colocá-la sobre a cama
foi uma ideia estúpida: é possível ver a mancha preta que se alastra embaixo do
corpo dela, sujando os lençóis cor de rosa e provavelmente o colchão. Ellie
olha para Juliana:
– Vá ver sua outra irmã. – Ordena.
Juliana olha para Ellie, surpresa. Vai discordar, mas
olhos de Ellie se aprofundam, lançando pequenas faíscas de gelo, e ela não
precisa repetir a ordem. Ainda assim, quando Juliana passa por ela para sair,
cabisbaixa, Ellie acrescenta falando bem mais baixo:
– Confie em mim.
Quando a porta se fecha, Ellie coloca a caixa de
primeiros socorros no chão e pede ajuda para que viremos o corpo de Alexandra.
Isso feito, ela começa a rasgar o vestido da menina nas costas e pede que eu
pegue o soro fisiológico na caixa. A caixa de primeiros socorros está cheia de
ervas e cristais, junto a alguns produtos médicos. Nem me surpreendo, pego o
que foi pedido e uma gaze, e assim que entrego a Ellie, ela começa a limpeza.
Ellie limpa a espinha de Alexandra com cuidado para não
causar mais secreção do líquido negro. Enquanto faz isso, a respiração da
paciente sofre algumas alterações. Em um momento, se aprofunda. Logo em
seguida, se acalma. Quando Ellie termina a limpeza e coloca a gaze
completamente negra de lado, eu e Valentina nos aproximamos para ver o que
restou. Três buracos estão espalhados pelas as costas de Alexandra, um próximo
ao pescoço, um no meio da espinha e outro já no quadril. Cada um deles tem o
tamanho de uma moeda e ameaça soltar mais secreção caso seja tocado.
– Que diabos é isso? – Valentina diz, exatamente o que eu
estava pensando.
– Digamos que é por onde o parasita saiu. –
Ellie responde.
– Eu pensei que o parasita fosse espiritual. – Digo,
enjoada.
– E era, mas ele precisava que ela sangrasse para poder
sair de sua alma. – Ellie explica.
– Isso tudo é sangue? – Valentina pergunta estendendo as
mãos. Como ela está inclinada sobre a cama para ver Alexandra de perto, suas
mãos estão cheias do liquido escuro.
Ellie concorda com a cabeça.
– Não cheira como sangue. – Comento.
Ellie encara o corpo de Alexandra como se não tivesse
certeza do que fazer em seguida.
– Sabe como seu sangue é mais escuro que o sangue de um
humano e o sangue de Pierre mais escuro ainda? – Ellie pergunta. Valentina e eu
balançamos a cabeça. – Isso – Ela indica a gaze – é o que acontece quando você
é um só com uma escória do Inferno por meses. O sangue dela é longe de
consumível no momento.
– Mas ele vai voltar ao normal? – Pergunto.
– Já está voltando, eu espero. – Seus olhos de repente se
alargam, como se tomados por uma percepção repentina. – Valentina, você teria
um punhal com você?
– Pergunta idiota. – Valentina diz, tirando da bota um
punhal de cabo vermelho esculpido com diversos desenhos.
– Anika, – Ellie chama. – Garanta que nenhuma vampira
está perto da porta no momento, por favor.
Mesmo querendo ver o que ela vai fazer, eu obedeço. Abro
a porta e não vejo ninguém por perto, mas fico lá, com a cabeça para fora da
fresta da porta, por garantia. Ouço um chiado vindo de dentro e minha cabeça
volta para o quarto como se tivesse vontade própria.
O cheiro de sangue humano toma meu nariz. Ellie fez um
corte no próprio pulso e agora esfrega sobre a pele de Alexandra, onde os
buracos estão. Valentina acompanha tudo com os olhos arregalados. O ato segue
por mais de um minuto, antes de Ellie se afastar e o corte no seu pulso se
fechar. Ela parece enjoada por meio segundo antes de se levantar e ir até a
caixa de primeiros socorros. Como se lembrasse de repente da minha obrigação,
volto com a cabeça para a abertura da porta e quase pulo de susto quando vejo
Persephone a alguns metros de onde eu estou.
– Posso falar com você lá fora? – A vidente pergunta,
solene.
Pergunto a Ellie se ela ainda vai precisar de mim e
quando recebo um sinal de dispensa, sigo Persephone até o quintal da casa. Três
de nós estão no quintal – Olívia, Kaylee e Tatiana – aproveitando os raios de
sol que surgem com regularidade por trás de nuvens pesadas e escuras. Elas
estão deitadas no meio do jardim, conversando com gravidade. Selene também está
no jardim, correndo atrás do gato de novo. Persephone se senta à porta,
distante de todas essas pessoas e eu me sento ao seu lado, esperando para
ouvir.
Persephone fica calada, por muito tempo. Olha para a
frente, como se observasse sua irmã, mas eu percebo que seus olhos estão sem
foco. Eu permaneço parada, esperando. Consigo perceber que o que quer que ela
tenha a dizer é importante.
– Eu finalmente li a profecia, quando vocês voltaram a
Bucareste. Não pela vontade de Rowan, mas eu precisava saber. – Ela diz, quando
eu já estou esquecendo porquê estou aqui. – Tenho um pedido a fazer a você.
– Se for possível... – Digo, me garantindo.
Persephone ainda não olha para mim, mas de repente
dispara:
– Tome Selene como sua herdeira. –
É seu pedido. – Sei que você não
morrerá, mas a trate como fez com Miranda e Valentina. A treine, prepare para o
mundo, faça dela tudo que ela precisa ser.
– Persephone...
– Me escute. – Ela interrompe, finalmente olhando para
mim – Eu não pretendia contar a nenhuma de vocês sobre o meu Destino. Vocês não
merecem e não entenderiam porque eu faço o que faço. Mas você vem das mesmas linhagens
que eu, Anika, e precisa entender. Eu preciso garantir o futuro de Selene
depois que eu me perder... É minha obrigação.
– Eu ainda não decidi se vou assumir o legado de Deyah. –
Digo, porque é a verdade.
– Não importa. – Persephone
decide. – Você vai assumir. Está
escrito e todas as bruxas em Piatra já esperam por você. Querem você como líder
e senhora. Eu não me importo mais que Selene não herde o meu legado, mas faça
dela sua representante mortal. É a única coisa que eu peço, por tudo.
Olho bem para Persephone. Não adianta discutir com ela
sobre o que está escrito, não adianta dizer que quero controlar meu destino.
Mas não faço promessa alguma, ao invés disso foco no que ela disse:
– Você não estará aqui para garantir o futuro de Selene? –
Pergunto. – Mesmo que eu assuma
o legado, você tem conhecimento, dinheiro, uma família inteira.
Os olhos de Persephone ficam mais escuros.
– É isso que eu preciso contar. –
Ela explica. – Quando eu tinha
um ou dois anos, comecei a apresentar alguns comportamentos preocupantes. Ações
repetitivas que beiravam a obsessão, frases sem nexo demais até para um bebê,
feitiços fora de hora, pesadelos intensos. Eu dizia coisas que assustavam as
crianças ao meu redor e era a única criança na cidade sem amigo algum. Conforme
eu fui crescendo, esses comportamentos diminuíram. Não porque os impulsos do
meu cérebro pararam, mas porque eu comecei a entender minhas visões e o que
elas significavam. Entendi porque eu tinha aqueles comportamentos, o Destino
era mais violento comigo do que com outras crianças videntes.
Ela faz uma pausa como se pensasse em como me dizer a
verdade.
– Cada pessoa que presenciar nossa
batalha final sairá dela com marcas profundas, Anika. – Ela continua – Mas a alma de vocês já está lá e
vocês estão prontas. Vocês fizeram tanta coisa e viram tanta coisa. Eu, não. Ir
ao Inferno ou ser um portal para o Inferno não vai simplesmente me deixar
abalada como Kaylee ou emocional como Ellie. Vai me destruir, Anika. Vai
destruir minha mente e quem eu sou. Eu sei disso desde que eu nasci, mas eu
pensei que tivesse entendendo... Que pudesse impedir a loucura de chegar e
manter minha cabeça no lugar... Mas desde que Valentina roubou aqueles ossos,
eu me sinto me perdendo aos poucos. E a data na profecia está chegando cada vez
mais rápido.”
– “E aquela que Tudo Sabe, perde a si mesma quando a Lua
voltar para o mesmo lugar.” – Recito, da profecia. Talvez eu tenha lido tudo
mais vezes do que Kat.
Persephone suspira.
– Meu décimo nono aniversário. 1º de janeiro de 2017. – Diz,
baixinho.
Não digo mais nada e nem ela. Selene vem correndo com o
gato no colo e pede que a irmã pegue um pouco de leite para ele. Me coloco de
pé antes de Persephone.
– Eu pego. – Digo, dizendo com o olhar tudo
que me recuso a dizer.
Bucareste, Romênia
2 de agosto
Juliana
Ela que foi Fio solto de uma
Linhagem
Estrela solta de Constelação
distante
Pedaço intacto de Árvore partida
Ressurge como Muda de uma Erva
extinta
E Senhora daqueles que vieram com
Ela e Antes dela
Receptáculo, Ramo
– Não, não. Não dá. Eu desisto. – Alexandra diz, jogando
o caderno de lado.
– Está dentro de você em algum lugar. – Louise insiste. –
É só tentar buscar nas profundezas de sua mente.
– Só porque o parasita sabia, não quer dizer que eu sei.
– Se a sua língua já falou romeno antes, ela
consegue falar romeno novamente.
As duas estão conversando em francês – a
única língua além do inglês que Alexandra foi ensinada desde que era um bebê.
Minha mãe sempre disse que quem não sabe francês é aculturado. Que falar apenas
inglês, a língua mais fácil do mundo é coisa de crianças mal-educadas. Ela
tinha mais medo de que fossemos burras, do que de que estivéssemos mortas.
– Desista, Louise. – Digo, me levantando – Se
nada der certo, nós a abandonamos na cidade e deixamos que ela tente até
conseguir se comunicar sozinha.
Alexandra parece ofendida pela sugestão, mas
Pierre vai em sua defesa:
– Se a maior parte da população fala inglês,
eu não vejo sequer um bom motivo para aprender romeno.
– Significação cultural? Necessidade de compreender
as expressões idiomáticas? – A voz de Kat sobressalta todo mundo no quarto.
Pierre se levanta da minha cama como se ela
estivesse pegando fogo, Alexandra abaixa a cabeça e se aproxima da
escrivaninha, dominada pela presença de Kat. Louise e eu nos entreolhamos e
sorrimos.
– Quando visitamos um lugar queremos mais do
que apenas nos comunicar, Pierre. – Louise responde – Queremos explorar,
entender.
Pierre revira os olhos.
– Quem de nós foi criado por Kat mesmo? – Ele
pergunta.
– Tecnicamente, todo mundo neste quarto
exceto por Alexandra. – Respondo.
– Ela é jovem – Kat responde – Ainda há
tempo.
Todos rimos, exceto por minha irmã mais nova,
que fica introspectiva. Atrás de mim, na janela, o vento parece ficar mais
frio. Tem algo de cansado em Alex desde que o parasita deixou seu corpo e ela
perdeu todo aquele sangue. Mesmo depois de dias de cama, boa alimentação e até
uma sugestão de que tomasse sangue de vampiro (Ellie que impediu que isso
acontecesse), ela se sentiu forte o suficiente para voltar para Bucareste, mas
mesmo que agora esteja próxima de seu antigo eu, ela não é a mesma pessoa. Não
sei porque esperava que fosse.
– Como está a busca pelo céu que sangra? –
Louise pergunta quando as risadas diminuem.
– Na mesma de sempre. – Kat reclama. –
Persephone não tem ajudado muito porque não acha que seja uma boa ideia
depender tanto da profecia.
– E ela é a
vidente. – Resmungo.
– Eu ainda acho que é sobre o pôr-do-sol. –
Alex diz, mais baixo do que diria se Kat não estivesse aqui – Vocês já viram a
cor do céu quando o sol está se pondo aqui? Parece pegar fogo.
– Pegar fogo não é a mesma coisa de sangrar.
– Digo, enfiando a mão no cabelo para me ajudar a pensar – O tom do céu que
sangra tem que ser menos chama e mais... Bem, sangue.
– Sim, mas o sangue de quem? – Kat interpõe. –
Só nessa casa existem pelo menos quatro tons diferentes de sangue. Talvez o céu
por onde entraremos no Inferno sangre preto.
Essa frase faz com que todo mundo olhe para
Alex ao mesmo tempo e ela se encolhe com um arrepio. As outras pessoas na sala
percebem isso e desviam o olhar, mas eu o mantenho, até que Alex olhe para mim.
– E como nós saberemos que o céu está
sangrando preto em uma noite sem lua? – Pergunto para Kat, ainda olhando para
Alexandra.
– É isso que precisamos descobrir. – Kat
responde – O quanto antes.
7 de agosto
Sophie
Ela que não pode ser Tocada
Destruída ou Apagada
Que nasceu como Força, independente de
Dominação
Infinita como as Estrelas
Perde entre seus dedos aquilo que não
Controla
E se torna uma só com o que despreza
Intangível; Intocável
Depois de me pegar buscando a lua pela janela durante a
noite inteira, eu escapo pela porta dos fundos assim que param de prestar
atenção em mim. Ando pelo campo aberto atrás de nossa casa, até onde uma
floresta começa, para deixar de ouvir os sons vindos do Exército. Festejam meu
aniversário como eu sempre fiz, me enchendo de presentes e dançando a noite
inteira. Se deixam perder por pequenos prazeres. Não percebem que não vejo
motivos para festejar até o fim da guerra e que não podem me dar a única coisa
que eu quero...
Quando me sinto completamente sozinha e o único som ao
meu redor é o vento, eu olho para cima. As nuvens cobrem o céu quase que por
completo, mas a lua crescente brilha por cima delas em seu zênite, como nunca
brilhou. Posso sentir a tempestade que nunca vem como se ela estivesse em
minhas veias. A energia de cada uma das criaturas que escapou pela ruptura toma
o céu e o escurece. O céu não é o campo de batalha, mas a fumaça sempre chega
até lá no fim da guerra.
Olho para a lua como se pudesse olhar para dentro do
Inferno pela fresta e ergo o nariz presunçosamente. Sinto vontade de gritar
"ME TOQUE! ME DESTRUA! PROVE QUE É UMA FORÇA MAIOR QUE EU E QUE TEM
CONTROLE SOBRE TODAS AS COISAS MALDITAS DO UNIVERSO!", mas as palavras
nunca saem. Elas estão presas no meu coração, o enegrecendo e sobrecarregando.
A tempestade. Eu não quero a morte, eu quero paz. Essa guerra tem durado tempo
demais e já tirou demais de mim. Estou cansada de ser lapidada pela minha
própria indestrutibilidade. E definitivamente me cansei de palavras vazias
sobre uma guerra qualquer.
Não se tira algo de mim duas vezes e permanece incólume.
Se a imortalidade é minha maldição, eu estou disposta a ser a última de pé. Se
eu sou poderosa demais para ser tocada por você, eu sou poderosa o suficiente
para causar o fim do mundo. E se isso é o que é necessário para conseguir minha
vingança, é exatamente isso que eu farei.
12 de agosto
Eleanor
Ela que é Canção
Que Entende, que Vê,
que Indica
Tranca das Estrelas
Subjugada pelo peso
de seu próprio Coração
Ama almas condenadas
a só entender a Adoração
E se torna
prisioneira de suas próprias Feridas
Chave; Réquiem
– Nós precisamos contar a elas, não
precisamos?
Não respondo de imediato. Permaneço com os
olhos fechados e o rosto virado para o céu. Deixo que os raios de sol tomem meu
corpo, o aquecendo. Não me importo que esteja suada ou que esteja tão quente
que fico um pouco tonta. A sensação é boa. O calor me deixa confortável. Meus
dedos se entrelaçam na grama embaixo deles e me impulsionam um pouco para cima,
me deixando centímetros mais perto da luz e do calor. Eles fazem com que eu me
sinta mais viva.
Dedos frios tocam meu braço, onde eu sei que
uma veia se destaca, e de repente eu me torno consciente do meu redor. Da
presença de Kat. Do olhar de Kat. Seu olhar adorador que vê na minha imagem
algo que eu não consigo compreender e não poderia descrever. Seu olhar me deixa
fria. Faz com que correntes geladas atravessem meu corpo. Eu queria que ela
entendesse o que me faz sentir. Queria que nos sentíssemos do mesmo jeito.
– Precisamos.
– Digo, sem abrir os olhos. Seus dedos contra minha pele já indicam como ela
olha para mim, não preciso ver seus olhos.
– Você acha que elas vão entender? – Kat
pergunta, a voz falhando – Que fará sentido para elas?
– Depois de tudo que aconteceu? – Digo, me
segurando para não tremer com um calafrio. – Duvido que se importem.
Kat tira a mão de mim e suspira. Aproveito
para me deitar contra a grama macia e relaxar à luz do sol.
– Sei que estou sendo paranoica. – Ela diz,
muito tempo depois – Mas Ellie, eu continuo vendo os designíos do Destino se
desenrolando na minha frente e isso tem me dado uma sensação de impotência como
nunca experimentei antes. Eu não quero perder mais ninguém. Não quero que o
Exército se separe quando tudo terminar, justamente por consequência da guerra.
Uma leve irritação atravessa meu corpo. O
desejo cortante de ficar sozinha, com meus próprios pensamentos, misturado à
raiva de ter que ajudar Kat novamente. Eu não quero ajudar Kat, não quero dizer
que vai ficar tudo bem, não quero tirar dela medos e dúvidas. Tenho meus
próprios medos e dúvidas, muito mais intensos que os dela, naturalmente. Quero
dizer tudo isso a ela, mas qualquer sentimento ruim evapora quando abro os
olhos e ao se adaptarem a luz a primeira coisa que eles veem é ela. Olhando
para mim de cima, com o rosto inclinado na minha direção e os cachinhos caindo
sobre a bochecha.
– Cada uma de nós está lutando contra os
próprios demônios. – É o que respondo, quase sem me mexer. – E algumas podem
perder.
– Eu queria poder destruir todos eles com as
próprias mãos. – Ela diz, suave.
– Katerina, se você pudesse vencer todas as
guerras sozinha, não precisaria de um Exército.
Kat suspira novamente. Então se deita ao meu
lado e abre um sorriso na minha direção.
– E quanto a você? Quais são seus planos para
depois da guerra?
– Não tenho plano algum. – Minha voz soa
firme.
– Nenhum?
– Não.
– Então não me deixará? Nunca?
Como responder a isso? Com o que desejo? Com
a verdade? Com o que ela quer ouvir?
– Não está
escrito que farei isso. – É o que consigo dizer.
– Arg. – Kat resmunga, franzindo o nariz. –
Não suporto mais esta frase.
– Então paremos de falar sobre o futuro e
sobre o Destino. – Peço. – Pense no aqui e agora, Kat. Hoje é um dia lindo,
você não tem coisa alguma a fazer e mais de um mês até que a batalha final
aconteça.
Kat concorda com a cabeça e fecha os olhos
aproveitando o sol como eu fazia há alguns minutos. Fico a observando de olhos
fechados, como um anjinho de afresco, inocente como quando dorme. Meus
sentimentos por ela mudam quando ela está assim. É algo na vivacidade de seus
olhos e sua expressão, a maturidade de quase 172 anos além do que aparenta ter
que me fascinam e atraem. Toco seu rosto e afasto um cacho para o lado. Ela
abre os olhos, não por causa do toque, mas por meu pulso estar tão próximo de
seu faro.
Aqui está. Meu pequeno demônio. Minha Katerina.
21 de agosto
Valentina
Ela que é Sol, Areia
Que percorre o Topo ao Fundo de uma ampulheta
Dona de pureza amedrontada, derrama Sangue sobre as
Estrelas
Sem nunca errar o Objetivo que almeja
E se torna a Dominante
Lado Escuro, Yang
Eu posso sentir a caixa vibrar quando
atravesso o portãozinho até a entrada a mansão.
– Bruxa idiota. – Resmungo, realocando a
caixa para trocar a campainha.
Persephone abre a porta e toma a caixa de mim
antes que meu dedo alcance o botão.
– Ei, calma aí. – Reclamo, a seguindo para
dentro da casa.
– O que você ainda quer? – Ela pergunta sem
se virar para mim, andando pelo longo corredor, agarrada à caixa de sapato como
se fosse um objeto vivo que precisa proteger a qualquer custo.
E ela é quase
isso.
– A confirmação da sua parte do combinado. –
Respondo.
Persephone se vira e seus olhos faíscam roxo
na minha direção.
– Venha comigo. – Diz.
A sigo até a sala de estudos no fundo da
casa. Uma pontada corta meu corpo ao entrar ali. É a primeira vez que volto à
sala desde que Miranda morreu. Aquele lugar era o preferido dela em Bucareste,
foi onde ela descobriu tantos dos segredos que me contou... Segredos que me
fizeram roubar o corpo da mãe de Persephone e estar aqui agora, fazendo a
última coisa que preciso fazer antes da batalha final.
Persephone
vai até uma cômoda do outro lado da sala e pega um chaveiro. Segue então para
um armário e faz sinal para que eu me aproxime, tudo isso sem largar a caixa de
sapatos. A segura com tanta força que partes de seu braço perdem a cor. Queria
poder dizer que me importo em ter causado tanto sofrimento a ela. Mas não. Eu
não sinto nada. E não vou sentir de novo. Essa parte eu aceito sem dificuldade.
O armário é aberto e dezenas de frascos de
vidro com amostras de sangue se mostram diante de nós. O sangue é escuro, o
vermelho quase imperceptível sem a luz do sol para iluminá-lo. Todas as amostras
estão identificadas, mas não com nomes, com localizações. Foram obsessivamente
organizadas por proximidade geográfica e eu consigo ver muitos países que
visitei e alguns que não tive a oportunidade. Estico a mão e pego um vasinho
que diz ser do Quênia. Persephone me observa admirar a amostra antes de
suspirar com impaciência.
– Eu vou precisar beber tudo isso? – Pergunto,
colocando a amostra no lugar.
– Você com certeza já bebeu mais que isso. –
Ela responde.
– Não de sangue
de vampiro.
– Se você quiser representar todas essas
almas em sua liberdade, precisa fazer beber tudo isso de sangue de vampiro. –
Ela confirma, dando de ombros.
– E onde está a dela?
O olhar de Persephone se anuvia. A dureza que
demonstra diminui quando ela pensa em Miranda. Miranda era a única pessoa do
Exército por quem Persephone possuía carinho e mesmo que sejamos idênticas, ela
certamente não vê minha irmã em mim.
Ao invés de pegar o pote com as mãos, ela
toca o pequeno crucifixo com as doze pedras que carrega no pescoço. Uma amostra
de sangue vem voando na direção dela e para diante de seus olhos. Fico
observando ela encarar o frasco por quase um minuto, antes de soltar o
crucifixo e pegá-lo no ar. Passa ele para as minhas mãos imediatamente, como se
ele estivesse pegando fogo.
– As amostras de Naomi e Charlottie também
estão aí, apesar de eu duvidar que Naomi possa ser salva no Inferno. – Ela diz,
ansiosa para encerrar o assunto.
– O que isso quer dizer? – Pergunto,
franzindo o cenho.
Persephone vai responder, mas depois dá de
ombros. Abre a caixa que carrega apenas um pouco para conferir os ossos e então
faz como se fosse sair.
– Feixe a porta ao sair. – Ela diz, já se
encaminhando para a porta.
– Persephone. – Chamo, de onde estou – Onde
estão as outras dez amostras?
Persephone olha para mim apenas de relance
antes de abrir um sorriso misterioso para a luz do sol lá fora.
– Onde eu preciso que estejam.
28 de agosto
Louise
Ela que fez de si
Fonte
Que buscou Conhecer,
Que quis Transformar Estrelas em pó
Malditos sejam dos
Frutos de seu Poder
Indignos sejam os que
Condenam quem Fez
Da Noite se veste e A
Noite se Torna
Origem; Árvore
Quando eu finalmente consigo convencer
Juliana a deixar Alex e Pierre sozinhos e vir até meu quarto para conversar, já
anoiteceu. Eu sei que ela pode prever qual o tema da conversa. O que ela não
esperava era encontrar uma caixa de papelão cheia de coisas da minha antiga
casa sobre minha cama.
– Mon
Dieu, Lulu! – Ela pega a boneca que estava sobre a caixa nos braços e
aperta como fazia quando era um bebê.
Eu rio de como o francês sai dela
naturalmente. A boneca de porcelana está nua e descabelada, além de metade do
seu cabelo e rosto terem sido pintadas com tinta para tecido quando eu tinha
oito anos. Não sei porque Juliana era obcecada por essa boneca quando era
criança e porque continuou a falar dela quando saiu de nossa casa, mas ela pode
ficar com a boneca agora. Agora ela pode ficar com tudo.
– Foi esperto da parte de mamãe colocar Lulu
junto dessa caixa. Ninguém pensaria que isso
também estaria aqui dentro. – Pego a caixa de joias de dentro da caixa e os
olhos de Juliana se arregalam.
Todas as joias que minha mãe ganhou nos anos
de casamento estão ali dentro. Incluindo brincos de topázio que ficam lindos em
Juliana. Minha irmã está tão surpresa por ver aquilo ali que nem se move
enquanto eu coloco os brincos em sua orelha. Ela aperta minha boneca contra seu
corpo com uma mão e com a outra toca os brincos. Juliana é rica, todas nós
somos. Mas isso aqui é um tipo de riqueza diferente. Era a riqueza que ela via
de longe quando era criança, a riqueza que sua mãe cobiçava e dizia ser seu direito.
Os olhos dela estão fixos em algo atrás de mim, me viro e percebo que ela está
olhando seu reflexo em minha janela. Quando me viro de volta, ela está de pé,
Lulu foi jogada no chão e ela tenta tirar os brincos, horrorizada.
– Juliana, não. – Peço.
– Louise, isso é seu. – Ela responde, ainda
arrancando os brincos.
– Agora. – Eu lembro. – Em trinta e três
dias, nada mais será meu. Nem o que nasceu comigo.
Suas mãos param em sua orelha e seus olhos
escurecem.
– E você está resignada? – Ela diz, com uma
expressão de nojo. – Aceitou? Como Charlottie?
– É completamente diferente de Charlottie. –
Eu respondo. – Quem morrer na batalha final vai mudar todo curso da história,
Ju.
– Não a história que o Destino escreveu. –
Juliana lembra. – Ela sempre disse que tudo que está acontecendo ia acontecer.
– Não faz diferença. – Dou de ombros. – Eu
não me importo com o que está ou o que deixa de estar escrito. Eu me importo
com quem eu sou e o que eu preciso fazer. Se eu não voltar – se eu me tornar
como a escuridão da noite -, eu quero garantir você fique bem.
Juliana cai na cama com um bufo.
– Louise, eu sei me virar. – Ela resmunga.
– Sei disso, acredite. – Lembro. – Mas eu
ainda sou sua irmã mais velha e ainda prometi que te daria tudo que é seu
quando chegasse a hora. Juliana, a hora é o próximo dia 30 de setembro.
– Onde você quer chegar?
Olho nos olhos dela.
– Eu sou a Fonte, você o Receptáculo. –
Recito.
Juliana aperta os olhos, confusa, mas parece
entender em minha expressão.
– Seus poderes? – Ela pergunta.
Balanço a cabeça.
– Não é como se fosse sobrar algo em meus
ossos. – Digo. – Você deve ser a muda, deve fazer florescer o que sobrar de
mim.
– Pare com isso. – Juliana pede.
– Não tente evitar isso, irmã. É como deve acontecer.
E eu quero que você esteja pronta.
Existe algo nos olhos de Juliana que eu não
sei se interpreto da forma correta. Sei que ela não quer me perder, não quer
que eu morra, mas ela quer isso. Quer
meus poderes e meu legado. Eu me estico para a caixa e tiro alguns cadernos
antigos de lá de dentro. Todos eles têm joias escondidas em seu interior. Era
como minha mãe trabalhava: Transformava todo seu dinheiro em joias e mantinha
muitas escondidas onde poderia pegar e desaparecer no segundo seguinte.
– O legado das Delacrois. – Digo, entregando um
dos cadernos a Juliana. – Você deve estudar isso, deve entender os poderes que
terá, antes de recebe-los. Não precisa contar a ninguém que isso vai acontecer,
pode contar com cobertura minha, caso queira estudar sozinha.
– Eu me sinto roubando. Tomando algo que não
conquistei. – Juliana diz, hesitando.
– Você é a minha única parente de sangue
viva, Juliana. – Eu lembro. – Pelas leis de qualquer país, tudo que eu tenho é
seu quando eu morrer.
– Isso não é exatamente verdade. – Ela
rebate. – Você tem outras nove irmãs vivas.
– E elas tem suas próprias heranças. – É a
minha vez de dizer, cansada desse vai e vem. – Escute, quero que você use as
joias também. Todas e cada uma delas. – Tenho outro caderno no colo e puxo um
colar com pedrinhas que parecem mudar de cor dele. – Você precisa voltar para
Nova Orleans e confrontar sua mãe. Mudar o que ela tem feito com os
Apreciadores, evitar que ela tenha poder contra vampiros ou que controle
qualquer sombra que restar nessa dimensão. É uma batalha que eu quero que você
trave, por mim.
Essas palavras parecem acalmar Juliana e
fazer que ela aceite seu Destino. Ela concorda com a cabeça e distraidamente
toca a pedra de água-marinha, em uma saudação de guerra. Faço o mesmo e acabo
batendo as pedrinhas do colar que seguro contra o quartzo. O som do choque
parece ressoar por todo quarto e eu observo com atenção o colar que tenho nas
mãos. É um colar antigo com muitas pedras diferentes em toda extensão da
corrente. Elas têm tom de azul, verde e amarelo, mas todas parecem brilhar com
o tom de vermelho da maioria das pedras. O colar é uma daquelas joias
artesanais que têm nome, de tão antigo que é: Aurora.
Pulo da cama e Juliana se sobressalta.
– O quê? – Ela pergunta, mas eu já saí do
quarto e estou descendo as escadas.
Aurora. O
céu que sangra.
9 de setembro
Olívia
Ela que conhece as
Escrituras
Todas elas, Novas,
Antigas e Mortas
Ela que Cria e que
Compõe
Possui em suas mãos o
que Constitui as Estrelas
E se deixa Voar para
Longe, sem Retorno
Peregrina; Freira
O termo “América do Sul” me acorda. Não sei
quem disse e levo alguns segundos para entender onde eu estou, mas a ideia de
casa me desperta repentinamente de um pesadelo.
– Chile e Argentina. Algumas pragas têm
surgido na área nos últimos dois anos, nada particularmente Infernal, mas
assustador de qualquer forma. Porto Williams no Chile parece ter tido eventos
mais sérios, com pessoas sangrando e caindo mortas no meio da rua e esse tipo
de coisa. É a cidade habitada mais meridional do mundo, é claro que os eventos
celestes infernais atacam a cidade com mais força.
Agora eu estou completamente acordada. Dormi
na sala, em cima de um dos cadernos onde a profecia foi escrita, tentando
encontrar alguma citação aos países do sul e a aurora austral. Sophie parece
ter encontrado alguma coisa apenas agora, quando já amanheceu e a lê em seu
celular para Kat, Ellie, Kaylee e Persephone. Algo parece vibrar dentro de mim,
com lembranças.
– A cidade habitada mais meridional, talvez,
mas não o lugar. – Eu digo, sentada onde estou – Como andam as bases de
pesquisa na Antártica?
Persephone pisca.
– O que você quer dizer? – Ela pergunta.
Vou responder que não tenho certeza, mas meu
sonho passa diante dos meus olhos, sendo lembrado com clareza. Fecho os olhos e
permaneço onde estou, sem dizer nada. Vejo gelo derretendo sob gotas de sangue
quente, casacos jogados no chão, o chão tão claro que reflete o vermelho escuro
do céu. Tudo é vermelho. Gritos de vozes conhecidas tomam meus ouvidos. Então
vem a luz e o calor. É como fogo branco descendo do céu. Calor branco
destruindo o frio vermelho. Tão intenso que parece cortar o tempo e o espaço em
dois, transformando um mundo em outro.
– Que diabos foi isso?
O grito de Sophie me desperta. Eu dormi de
novo? O que aconteceu? Estou no sofá e Kat está sobre mim, conferindo minha
testa e meus sinais vitais. Acho algo de engraçado nisso e me lembro de que dia
é hoje.
– Feliz aniversário, Kat. – Digo.
Kat franze a sobrancelha e eu me pergunto se
lembrei do dia errado. Mas a lógica está voltando, aos poucos e eu sei que não,
hoje é 9 de setembro.
– Isso vai soar estranho. – Persephone diz,
aparecendo atrás de Kat. – Mas eu acho que você acaba de receber um presente de
Deus.
15 de setembro
Kaylee
Ela que foi
Abandonada, Traída, Rechaçada
Se veste de Vingança
e Trai aqueles a quem queria permanecer Fiel
Amaldiçoando a si
mesma e as Profundezas de quem É
Transformando-se em
sua Própria Ruína
Dona de sua própria
morte
Angústia; Amaldiçoada
Começo a fazer as malas apenas para não ter
que ficar lá embaixo, planejando a viagem. Como as meninas podem estar tão
animadas para ir para a Antártica para uma guerra que vai matar algumas das que
sobraram de nós? Entendo que este é momento que muitas esperaram por mais de um
século e agora ele está apenas a quinze dias de distância. Mas isso é assustador
e é assim que eu fico, assustada. Não ansiosa, definitivamente não ansiosa.
Respiro fundo enquanto estou colocando uma
blusa na mala. A porta do meu banheiro é chutada e eu salto, antes de me
encolher. Lembro de um conselho que Ellie me deu: Atrair toda a raiva que tenho
por ela estar viva, transformar a raiva que tenho da Morte em raiva dela,
porque tudo que ela é no momento é um soldado da Morte. Eu não preciso ter medo
ou me sentir culpada. Se ela tem raiva de mim é isso que eu preciso ter dela
também. Raiva.
– O que você quer? – Pergunto, me aproximando
da porta, mas sem abri-la.
– Sair daqui. – Amelie sibila do outro lado
da porta.
– É, não vai acontecer. Eu estou pensando no
que fazer com você antes de ir para a Antártica.
– Antártica? – Ela pergunta, o tom raivoso.
– É onde a batalha final vai acontecer. Vamos
para lá amanhã. – Não sei porque estou contando isso a ela, mas não me incomodo
em dizer.
Ela está presa no banheiro por muito mais que
algumas fechaduras. Ser uma bruxa e ter mais duas bruxas do seu lado é de
grande servetia.
– Me leve com vocês. – Ela parece ter se
aproximado mais da porta e agora a esmurra.
– Você enlouqueceu? – Pergunto.
– Não, mas você está enlouquecendo e sabe
disso. – É a resposta cruel dela. – Me deixe ir, Kaylee. Deixe a Morte fazer
parte disso.
– Cale a boca.
– A Morte deseja você do lado dela. Quando a
guerra acabar e você não tiver para onde ir. Venha comigo. Não se deixe se
perder ou viver em angústia.
Percebo que vai ser impossível ficar no
quarto. Resolvendo que compro as roupas que precisar em algum aeroporto, enfio
as roupas que estão sobe a cama na mala de qualquer jeito e pego a bolsa com
itens pessoais. Amelie parece notar que eu estou deixando o quarto e diz, assim
que eu abro a porta, alto o suficiente para todo o prédio ouvir:
– Ainda não acabou. Não acaba até a Morte
dizer que acabou.
Ilha do Rei George,
Antártica
30 de setembro
Tatiana
Ela que foi morta
pelo Fogo, sem que Queimasse
Que nasceu de Chama
que tentaram conter
Se Transforma,
Renasce, Se torna Nova
Não como Fênix por
não ser Cinzas
Mas como Estrela que
Queima por Milênios
Vê tudo que Estava
Escrito
Sem ter como
Reescrever
Olho; Fogo
Quando a noite chega, o vento para. É assim
que sabemos. Às seis da tarde do dia mais escuro, do ano mais escuro, o céu que
sangra se torna mais denso e o vento para como se o frio estivesse suspenso
naquele momento.
As onze – Kat, Ellie, Sophie, Anika,
Valentina, Kaylee, eu, Juliana, Louise, Olívia e Persephone – deixamos o abrigo
assim que isso acontece, Alexandra e Pierre permanecendo seguros. Nos
surpreendemos. Está quente. Não quente o suficiente para derreter o gelo sob
nossos pés, mas quente o suficiente para que tiremos os casacos. E fazemos
isso, deixando todo eles caídos na entrada do abrigo no qual moramos por quase duas
semanas.
Caminhamos em silêncio, introspectivas, em
formação. Persephone vai à frente, testando o solo. Um trovão ressoa no céu e
todas nós paramos ao mesmo tempo, no lugar certo. A formação é tão precisa que
não precisamos reagrupar nada. Já estamos onde deveríamos estar. Persephone,
Sophie e Kaylee formam um triangulo ao redor de nós e Ellie está parada no
meio, com as sete que irão ao Inferno viradas para ela. Ela olha para cima, o
vermelho do céu está se aprofundando e toda aurora parece se reunir em uma
simples linha.
– Chegou a hora. – Ela diz, a Kat.
As bruxas começam um canto, de olho fechados
e mãos erguidas, evocando alguma força ou feitiço que não entendo. Uma a uma,
nos aproximamos de Ellie para tomar um pouco de seu sangue. Conforme ela é
mordida, ela diz algo a quem a morde.
– Eu estarei aqui quando você voltar. – Diz a
Kat.
– Você foi feita para isso. – Diz a Anika.
– Diga a Miranda que sinto sua falta. – Diz a
Valentina.
– Não as guie para a ruptura. A janela é a
saída mais segura. – Diz a mim. – Isso inclui as almas de Valentina.
Me pergunto porque ela disse mais a mim do
que às outras. O que ela espera que eu faça? Por que deposita tanto em mim?
Antes que eu chegue a uma conclusão, já precisei me afastar e Juliana se
aproxima, para beber e ouvir o que Ellie tem a aconselhar.
– Você vai ficar bem.
Louise se aproxima e o ritual se repete:
– Foi uma honra conhecer você.
E então é a vez da última, Olívia.
– Obrigada por entender. – É o que Ellie diz.
Não entendo, mas Olívia sim. Ela balança a
cabeça e se afasta com orgulho no olhar. O canto aumenta e Ellie abaixa os
braços cortados para a neve. Seus ferimentos não fecham e o sangue começa a
manchar a neve branquinha, deixando Céus e Terra da mesma cor. A voz de
Persephone se difere do canto das duas outras bruxas. Quando ela faz isso, o
sangue de Ellie se arrasta pela leve e alcança nossas pernas, subindo por elas
e nos agarrando ao chão.
Louise é a única de nós sem sapatos. Suas
pernas começam a queimar quando o sangue a alcança, mas ela não grita. Fecha as
mãos em punho e parece erguer algo. Um soluço corta a noite e eu vejo Juliana
chorar, pela primeira vez. Seu choro tão alto que parece um grito infinito. Louise
ergue as mãos para o céu, concentrada. Seus olhos também se erguem e o azul
delicado é tomado completamente pelo vermelho escuro.
– Os
Sinos do Inferno chamado o vampiro à casa para o sono da morte. – Ela recita,
tendo escolhido suas últimas palavras. É Anne Rice. – Ah, a beleza enternecedora do céu, a beleza da visão dos campanários
sombrios. E um curioso pensamento me ocorreu: O de que a luz do fogo do inferno
deveria ser tão brilhante quanto a luz do sol, e seria a única luz do sol que
eu veria de novo.
Uma lágrima grande e dolorosa de sangue escapa
dos olhos de Louise e escorre até seu nariz, antes de pingar na neve. Minha
respiração seguinte acontece já dentro do Inferno.
Demoro a me adaptar e as coisas que
aconteceram entre um instante e outro voltam a mim como um sonho. Um raio luz
branca e quente tomou o espaço e o tempo e o dividiu em dois, exatamente como
Olívia descreveu depois de ter uma visão. Como descrever a sensação de estar
dentro do Inferno? De ser minha alma, ao invés de um corpo controlado à
distância? Eu deveria conseguir, afinal essa não é minha primeira vez aqui.
A primeira vez foi no dia em que O Fogo subiu
da Terra aos Céus. O dia em que eu
subi da Terra aos Céus. Mas quanto mais os dias passam, menos eu lembro do que
aconteceu naquele dia e a essa altura, só me lembro que voltei cansada e quente
e que depois disso não podia mais queimar, mesmo que colocasse fogo em minhas
roupas e meu cabelo. Eu me sentia indestrutível.
Do que eu estou esquecendo? Estou esquecendo
de algo, sei disso. Estar no Inferno é diferente de estar na Terra. Não sou corpórea,
sou como uma massa de lembranças, um amontoado de desejos, uma confusão de
sentimentos. Não é sobre ver, é sobre sentir. E eu estou no Inferno, eu estou
em agonia constante, queimando e sendo assombrada pelas almas amaldiçoadas e
pelos erros que cometi... Ou eu deveria estar. Não me sinto assim, me sinto
tranquila e em paz. Como se finalmente reconhecesse uma parte de mim que foi
removida, para em seguida ser transplantada de volta, mas restaurada,
diferente. Eu não estou queimado. Eu sou o Fogo. Eu não sou Queimada. Queimo.
É isso.
Sinto as energias ao meu redor e consigo
identificar todo mundo. Todas as dez. Não. Não são dez. São nove. Naomi não
está aqui. Onde está Naomi?
“Não
importa.” É Kat, é a energia de Kat. A voz é minha porque é minha alma e minha
cabeça, mas estamos nos comunicando.
“O quê?”
“Não
importa onde Naomi está agora, Tatiana. Tire quem você puder daqui, por favor.
Ache a saída.”
“A saída está logo ali”, penso. “Ali, no fio
vermelho em meio a todo branco e preto. A brisa em meio a todo calor.” Noto que
as energias estão todas violentamente agitadas. Em agonia, elas estão em
agonia. As nove energias que reconheço estão em agonia e mais milhares de
milhões de energias ao meu redor também estão em agonia. Em uma agonia
crescente. Eu sinto, mas não sou afetada por essa agonia.
“Os
vampiros estão vindo.” Soa a energia de Valentina. “São muitos, Kat. Não tem como passar todos pela janela.”
“Use a
ruptura.”
“NÃO”, grito. É como se tudo fosse o grito
agora. Como se toda minha existência houvesse se transformado no grito. “NÃO. ELLIE DISSE PARA NÃO USAR A RUPTURA.”
“Ela
precisa, Tatiana. Se Valentina não libertar todos, sua alma vai ser destruída.”
Uma energia entra e sai do meu campo de
conhecimento. É Persephone. Era Persephone. Não sei se ela ainda está aqui ou
como o tempo funciona aqui. Tento me concentrar.
“Mas é
perigoso, Kat. Eles têm sombras controlando a ruptura. Se Valentina for até lá
ela pode ser destruída também.”, eu digo.
Uma das energias para. Congela como se
tivesse se tornado de ferro. Como se tivesse queimado. Todas nós parecemos
perceber isso ao mesmo tempo. As outras almas se acalmam como se a morte
tivesse as fortalecido para ver além da agonia. Três almas escapam pelo buraco vermelho.
Reconheço quem ficou, Kat, Valentina e eu.
Miranda e Charlottie também estão aqui.
“Ellie
sente sua falta, Miranda.” Penso. “Sophie
sente sua falta, Charlottie.”
Elas não escutam porque sentem dor demais.
Estão sendo queimadas e torturadas há tanto tempo. Elas merecem paz.
“Elas
merecem paz. E eu vou dar exatamente isso a elas.”
Valentina se move em direção à ruptura
carregando centenas de energias com ela, incluindo as de Charlottie e Miranda.
A ruptura é um buraco como o buraco vermelho que é a janela, mas é escuro,
negro como a noite. Não existe noite no Inferno. Mas existem estrelas.
“Digam
a Ellie que nós sentiremos sua falta. E pensaremos nela para sempre.”
Valentina enfrenta a ruptura com um empurrão
de energia, sendo atacada por duas sombras assim que começa a atravessá-la. “A DEIXEM EM PAZ”, minha energia grita,
fazendo com que as duas sombras queimem em uma bola de energia vermelha.
A energia de Kat faz algo que eu não entendo.
Se move como se estivesse se afastando da ruptura, apenas para voltar com
força, atingindo a ruptura em cheio e empurrando a energia de Valentina e de
centenas de almas para fora.
“Deem
paz a ela.” Ela ordena, para algo que não se pode ver. “Deem paz a ela e libertem a alma de cada vampiro da maldição de estar
aqui. Eu sou mais forte que Você, mais Poderosa que Você e Você não pode me
tocar a menos que eu o diga.”
“Katerina.”
Não
existem paredes no Inferno, mas ela essa voz soa como se viesse de paredes,
como se viesse dos próprios fundamentos do Inferno. “Ainda crês ser pura?”
“Eu
nunca fui pura. Minha alma estava manchada pelo Inferno desde antes de eu
nascer. Mas eu consegui manter luz o suficiente dentro de mim para atrair doze
das almas mais puras que já habitaram nesse planeta. E todas elas, cada uma
delas, foi Abençoada com pelo menos um Poder que supera qualquer coisa que o
Inferno já tenha visto. E agora Eu Sei. Sei
que não podem me destruir a menos que eu permita. Sei que não podem me tocar a
menos que Esteja Escrito. Sei que não sou o que vocês quiseram de mim, mas o
que Nasci para Ser. E eu Nasci para Ser a Libertadora.”
“Este é
o fim dos vampiros. Da vida eterna que tão prontamente aceitou tantos anos
atrás.”
“Isso é
entre mim e a Morte.”
“O
último inimigo a ser vencido.”
“Tatiana,
Vá!” Kat
ordena.
Eu fico onde estou. Posso sair quando quiser
até o fim da janela. Ellie me pediu para guiar todas ao lado de fora e Kat não
vai sair depois de mim.
“Não
podemos lhes conceder paz.” A voz repete. “Elas saíram de nosso controle. Mas se você quer o fim daquilo que Deyah
criou, daquilo que todas vocês desejaram. É o fim que terão. Vivam como criaturas
próprias. Não voltem se arrastando até nós.”
O buraco vermelho se ergue, maior do que nós
duas. Posso notar a energia de Kat querendo gritar, fazendo exigências, mas é
tarde demais. Eles nos expulsaram. Me surpreendo quando volto à Terra acordada.
1º de outubro
Katerina
Ela que Nasceu, não
para Si Mesma
Mas como um Propósito
Pura, Tomada, Negada,
Imaculada
Tomou muitos Nomes,
dominou Faces
Desconhece Desejo,
Identifica na Dor
Salvadora da Criação,
Líder da Rebelião
Anjo; Libertadora
Eu sinto como se tivesse sido jogada de um
prédio e atingido o chão com o impacto dos meus joelhos. Caio no chão tremendo
de dor e de frio. Ao meu redor, minhas ex-vampiras estão nas mesmas posições ou
abraçadas, tentando se ajudar. Muitas estão chorando. A formação não mais
existe, a guerra acabou. Somos humanas. Ou algo próximo a isso. Somos sete.
Me coloco de pé rapidamente e olho em volta.
Dois corpos estão sobre a neve. Um cercado de sangue, outro queimado. Corro até
eles e me atiro na direção deles, as lágrimas escorrendo por meu rosto antes
que eu possa controla-las. Agarro os dois corpos, mesmo o ainda fumegante de
Louise e começo a recitar feitiços, magias de alma que tinha jurado nunca
fazer. Qualquer coisa, qualquer coisa. Preciso delas vivas ou pelo menos em paz.
O Inferno disse que não pode lhes dar paz, mas elas merecem isso. Merecem paz.
Ouço meu nome ser gritado, mas não respondo.
Reconheço as vozes que chamam, afastadas e se aproximando. Me tocando e
tentando me afastar dos corpos. Tentando me consolar. Persephone grita que eu
pare com os feitiços, mas não paro. Um par de olhos surge à minha frente e
então o mundo para. Ou melhor, congela.
– Kat. – Ellie chama. Meus olhos reconhecem
seu rosto e eu solto os corpos para abraça-la. Ela me abraça como se fosse a
primeira vez. Deus, é a primeira vez? – Kat. – Ela repete, sussurrando. – Nós
não somos sete. Somos oito.
Me afasto, surpresa e olho para cima, para as
humanas e bruxas me olhando com atenção, surpresa ou carinho. Olhos cheios de
sentimentos. Nove pares de olhos contando os de Ellie. Um par é roxo, então não
são importante. Mas os outros são da cor certa. E são oito. Não sete, como a
profecia dizia.
– Ainda não acabou. – Sophie diz,
entredentes.
Não. Não acabou.
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