“Não é o
mais forte que sobrevive, nem o mais inteligente. É aquele que é mais adaptável
à mudança.”
Leon C.
Megginson
As
Crônicas de Kat:
Afterworlds
Bucareste,
Romênia
7
de outubro de 2016
Sophie
Minhas mãos
apertam o peitoril da janela com tanta força que os nós dos dedos ficam
brancos. Elas suportam todo meu peso quando eu me inclino para frente, sentindo
o vento contra meu cabelo e o cheiro do orvalho. Se os céus estão chorando, eu
não preciso chorar. Se a natureza continua se movendo, dia após dia, noite após
noite, eu também posso.
Por isso
escolhemos o nascer do sol.
– Sophie? – Ouço
a voz de Kat pela porta aberta – Estamos prontas.
Me afasto da
janela e olho para Kat, cuja energia toma meu quarto inteiro. Kat parece ter
crescido depois que tomou sua alma de volta, se expandido. Mesmo agora, usando
preto pela primeira vez desde que a conheço, com o cabelo preso em uma coroa de
tranças igual à que eu uso, ela não se mostra menor. Ela emana poder.
Pego a pequena
urna que parece pesar uma tonelada sobre a minha mesa, e sigo Kat para fora de
casa. Lá fora, as outras seis restantes do Exército nos esperam. Persephone,
Pierre, Alexandra e Rowan queriam vir prestar suas homenagens também, mas um
não de Kat foi o bastante. Este funeral é nosso. É daquelas que compartilhavam
do sangue das que se foram. Daquelas que lutaram ao seu lado.
Minhas mãos
tremem e a urna se balança enquanto eu ando, fazendo a pequena pedra de lápis
lazuli balançar de um lado para o outro. Apenas duas urnas carregam os restos
mortais de suas donas: A de Louise, que Juliana carrega contra o peito e a de
Valentina, que Anika afasta do rosto para não deixar molhar. As de Charlottie –
que está comigo – e de Miranda – com Ellie – estão vazias, apenas com as suas
pedras. Nós nos desfizemos de seus restos mortais antes de pensar em um
funeral. Antes que a maior parte do Exército pudesse sentir o luto em sua forma
mais profunda. Naomi não tem uma urna, não porque não sintamos sua falta, mas
porque Kat está convencida de que ela não morreu.
Foi-se a época de
caminhadas silenciosas e soturnas no Exército. Agora caminhamos em meio a
lamentos e gemidos. A cada cinco passos, alguém para, tremendo de frio e
esfrega os braços antes de voltar a caminhar. Frio é comum quando seu corpo é
mais quente e vivo do que a de humano comum.
Andamos pela
parte desmatada e vazia da estrada até o começo da floresta, onde costumávamos
vir para treinar. Uma árvore antiga, um salgueiro bem cuidado, possui quatro
buracos próximos à sua raiz, ao lado de pequenos montinhos de terra. Paramos
ali, o mais próximo umas das outras que pudemos, sem formação definida. Não
parecemos um Exército ou um Clã. Parecemos um bando de freiras, ou talvez um
bando de bruxas. Oito jovens vestidas de preto com o cabelo preso em uma coroa
de tranças, olhos lacrimosos e almas cansadas. O sol está começando a despontar
do céu, uma linha branca em meio à imensidão escura e os olhos de Kat têm a cor
do salgueiro quando ela dá um passo à frente e diz, de alguma forma olhando
para todas nós ao mesmo tempo:
– Ainda não
acabou. Sei que pode ser fraco. Sei que algo acabou naquela noite, mas... Ainda
não acabou. Não acabou para nós, não acabou para elas. Tudo que nós conseguimos
foi conquistado pelo sangue derramado, por nós e por elas. Nós somos muito mais
do que o corpo que habitamos e mesmo que muitas vezes desejemos mantê-lo eterno
e habitar nele para sempre, mesmo quando ele vai embora, nós continuamos.
Infinitos. Nossas marcas continuam na manta do Tempo, nossas almas estrelas
brilhantes do Céu, nosso bem constantemente vencendo o Inferno, nossa
persistência negando direitos à Morte.
“Miranda.
Valentina. Charlottie. Louise. Sentimos falta de vocês, mais do que palavras
poderiam descrever. Vocês foram irmãs, amigas e mais que tudo, guerreiras. Não
estaríamos aqui sem vocês e isso é algo que nunca vamos esquecer, não importa
quanto tempo continuemos aqui. Cada uma das centenas de almas salvas na guerra
carrega uma parte de vocês agora. Não é o fim para vocês. Especialmente não até
que eu dê paz a todas vocês...”
– Kat. – Ellie
geme, ao meu lado.
A interrupção é
tão repentina que faz com que a urna trema na minha mão com mais força. Kat
ignora a reprimenda de Ellie e toma a urna das minhas mãos com um sorriso
compreensível. Não consigo controlar mais as lágrimas ou os temores. Eles saem
de mim em uma torrente, respingando magia. Kaylee, Olívia e Tatiana de repente
estão em torno de mim, me abraçando com força. Apenas Kaylee tem a minha altura
e abraça meu pescoço, então a cabeça de Olívia fica pressionada contra a minha
barriga e o nariz de Tatiana pressionado contra meu ombro direito. Retribuo o
abraço de Olívia, a esmagando contra minhas costelas. Estou tentando controlar
algo dentro de mim ao fazer isso, uma espece de energia que vem de perto do
coração e parece tomar meu corpo.
Existe algo de
diferente nessa ação, nesse abraço compartilhado em lágrimas ao invés de
palavras. Olívia tenta controlar a própria respiração, para que eu controle a
minha, Kaylee mede minha pulsação para se distrair e Tatiana me aquece, no dia
mais frio desde que voltamos da Antártica. É puro, inocente e mágico. O percebo
como algo que nunca tive, algo que nenhuma de nós conheceu. E em meio a
tremores dolorosos e a sensação de que nunca vou me adaptar à saudade de
Charlottie, eu me dou conta de que essa conexão de almas é muito mais forte que
qualquer conexão que tínhamos antes, de sangue.
Quando me
controlo o suficiente para que voltemos à solenidade, o céu já está tomado por
um cinza pálido, que só vai amarelar com mais alguns minutos. Me afasto do
abraço com carinho e tiro, do rosto molhado, mechas que caíram da trança antes
de pegar a urna de volta com Kat.
– Você quer dizer
alguma coisa? – Nossa líder pergunta, me entregando a caixinha.
Nego com a
cabeça. Juliana, Anika e Ellie fazem o mesmo. Estamos todas com o maxilar
cerrado e os rostos molhados de lágrimas. Juliana é a primeira a colocar a urna
de Louise no lugar. Logo após fazer isso, corta sua mão na árvore e deixa cair
gotinhas de sangue caírem sobre a urna antes de cobrir o buraco. Isso não foi
combinado, mas percebo que faz sentido. As outras três de nós fazemos a mesma
coisa.
Não sei porque
sou a última. Talvez porque já tivesse feito isso antes. Já enterrei o corpo
inexistente de Charlottie, já me enlutei por sua perda. Daquela vez, eu sabia
que ela continuava a existir em algum lugar, talvez diferente do que eu
conhecia, mas viva. Dessa vez é diferente? Eu não pude vê-la no Inferno. Quem
pode disse que ela seguiu Valentina para fora, pela ruptura, e então... O quê?
Eu só percebo que
estou sangrando sobre a urna há tempo demais quando Ellie toca meu ombro. Me
afasto com um sobressalto e Ellie me abraça com firmeza. Não choro em seus
ombros, esgotada pelo que já chorei, mas ela chora nos meus e eu permito. Ellie
foi minha irmã mais velha por muito tempo e continua sendo. Ela entende minha
dor. Eu entendo a sua.
Kat cobre a
pequena cova de Charlottie, ela mesma chorando. Antes de dar um fim a tudo, nos
reunimos em formação, olhamos uma para as outras e tocamos nossas pedras. As
cinco bruxas lançam um pequeno feitiço protetor sobre as outras, um que mães
lançam as suas filhas antes de deixar que elas se aventurem pelo mundo. Minha
mãe nunca lançou ele sobre mim. Charlottie lançava todos os dias.
O momento se
quebra com Kat limpando o rosto e nos viramos ao mesmo tempo para ir embora
para casa, sem olhar para trás. À nossa frente e acima de nós o céu está em um
lindo tom de dourado e com um pequeno salto de exasperação, Olívia faz com que
olhemos para cima. Um lindo arco-íris está sobre nossas cabeças, mas em vez de
sete cores, ele possui três tons de rosa e um azul diamante.
13
de outubro
Katerina
Uma esfera de água
explode acima da minha cabeça encharcando minha blusa e transformando em lama
as manchas de poeira em minha calça.
– Isso foi longe
demais. – Grito, lançando feitiços imediatos que faz a terra sob os pés de
Anika tremer e Juliana tropeçar no ar.
Quando Anika
também cai, eu vejo uma ferida violenta se abrir em seu joelho. Me aproximo
para ajudá-la a ficar de pé e ela geme quando o osso volta para o lugar.
– Não. Isso foi longe demais. – Anika reclama,
segurando em minha mão. – Como você fez
isso?
– Uma boa bruxa
nunca conta seus segredos. – Eu digo, zombando, mas em seguida dou de ombros. –
Eu aprendi qualquer feitiço relacionado ao ambiente aos três anos. Não me
lembro como faço, apenas faço.
– Exibida. –
Juliana resmunga.
Sorrio para as
duas e me viro quando ouço os passos de Ellie e Sophie.
– Se vocês três
já terminaram de brincar de “Quem é a bruxa mais poderosa?”, Persephone está
aqui para falar com Anika. – Ellie diz, sorrindo.
– Era isso que
vocês estavam fazendo? – Sophie pergunta, erguendo a sobrancelha. – Isso
explica porque não me convidaram, seria perder de propósito.
Reviro os olhos e
olho em volta.
– Eu só preciso
chamar Kaylee e voltaremos. – Eu digo.
– Kaylee voltou
para casa há quase vinte minutos. – Ellie me interrompe.
Estou na ponta
dos pés e paro no ar. É claro que ela fez isso e fez de forma que eu sequer
percebesse. Tem sido impossível manter Kaylee fora de casa, mesmo que o que tem
feito com que ela se sinta tão mal esteja dentro da casa.
Saímos da
floresta em grupo e vamos para a casa em silêncio. Eu me pego observando a
energia das meninas apenas por costume. Desde que voltei a ser bruxa eu nunca
estou não fazendo um feitiço. Tantos sentimentos e sensações, tantos
pensamentos perdidos. A dor dentro delas que não vai embora nunca me machuca,
mas eu estou aprendendo que às vezes não é possível fazer nada pelo que os
outros sentem. Ou pelo que a gente mesmo sente.
– Bom dia, prima.
– Persephone diz, quando vê Anika entrar primeiro. – Bom dia, meninas. – Completa,
para nós.
– Bom dia,
tatarasobrinha. – Anika corrige, com um sorriso de lado. – Más notícias?
Me atiro no sofá
e Juliana faz o mesmo. Ellie vai para a cozinha e Sophie se senta no balcão.
Persephone e Anika estão de pé no meio da sala, conversando animadamente. Eu
vejo a semelhança entre elas melhor desde que Anika recebeu a alma de volta.
Quando penso nisso, Selene aparece, saindo do banheiro.
– Nós vamos
voltar para Piatra Neamnţ! – A doppelganger exclama, antes que sua irmã possa
fazer – Agora para sempre!
Persephone
suspira. Não é a forma como ela contaria a notícia.
– Sério? Vocês
vão vender a casa? – Anika pergunta.
– Não. –
Persephone discorda. – A sala de estudos torna isso impossível. Nós a demos de
presente para Rowan. Era a casa do irmão delas, afinal de contas.
– Espera. – Anika
diz, demorando a se dar conta do que está acontecendo. – Rowan não pode sair da
casa do oráculo. Ou de Piatra.
Persephone
respira fundo.
– Você quer se
sentar? – Pede.
– Não. – Anika
reclama.
– Anika...
– Diga o que você
tem a dizer.
Eu percebo antes
mesmo que Persephone diga:
– Rowan não é
mais o oráculo. Não é mais a vidente mais poderosa de sua linhagem. E eu perdi
todos os meus direitos de nascimento.
– Você não pode
estar dizendo...? – Anika mesma se interrompe. – Eu nunca sequer tive uma
visão.
– Porque você não
quis. – Eu digo, antes que possa me impedir. – Você tem bloqueado suas
previsões, Anika.
– Kat, eu não
posso assumir o lugar de Rowan. – Anika afirma.
– As duas
linhagens estão chamando por você. – Persephone diz, implorando com o olhar. –
Bruxas e videntes, todas de Piatra Neamnţ, querem você lá. Para liderar e para
cuidar. E eu sei que você quer isso também. Sei que sabe que seu coração e alma
pertencem àquela cidade.
– Não é justo. –
Annie insiste.
– É seu Destino.
– É Selene quem diz. Ela está escondida na saia de Persephone, mas estica a mão
para Anika delicadamente. Anika a aceita e olha para a sua cópia com carinho.
A cena é estranha,
para dizer o mínimo. Há algumas semanas Selene tinha medo de Anika como tinha
medo de pouquíssimas coisas. Agora, olha para ela como olha a irmã. As pessoas
realmente dizem que crianças conhecem energias. Criança bruxas, então...
– Eu ainda
poderia recusar... – Anika sussurra.
– Antes da
primeira das três luas sangrentas. – Persephone avisa.
– Isso é amanhã!
– Anika reclama. – Por que você não me disse nada antes?
– Porque eu sei
que você não vai recusar. – Persephone responde. – Você é A Princesa, Anika.
Pare de lutar contra isso e assuma o que é seu. Você foi para o Inferno
literal. Você merece.
Anika se vira
para mim e me olha como se quisesse que eu impedisse tudo. Sustento o olhar e
não digo nada. A guerra foi em nome da liberdade de minhas meninas. Não importa
se elas escolhem passar ela perto ou longe de mim.
Só tiro os olhos
dos dela quando ouço a voz de Pierre me chamar. Ele surgiu pela porta da
cozinha e agora me chama para conversar. Ao meu lado, Juliana acerta a postura
e sorri para ele. Quando percebe que eu estou olhando, foca no forro
descosturado do sofá. Eu sorrio.
– Certeza que é
comigo que você deseja falar? – Pergunto.
Pierre aperta os
olhos, não achando engraçado.
– Sim. –
Responde. – Podemos conversar a sós?
Com um suspiro, o
sigo até o andar de cima. A família no meio da sala agora conversa mais baixo e
Juliana se levanta, indo para a cozinha.
O quarto de
Pierre está um caos. Não sei porque me surpreendo. Parece natural que o quarto
de verdade dele fique desse jeito, depois de mais de cem anos vivendo como
nômade ou prisioneiro. Me sento em sua cama com cuidado para não sentar sobre
nada e fico olhando enquanto ele anda pelo quarto, falando:
– Me ajude a
entender: Qual o meu papel nisso tudo? A última vez em que fiz algo pela
guerra, foi quase dezenove anos atrás, quando fui o portal do demônio que
amaldiçoou Ellie. Eu tenho seguido vocês por todo esse tempo como o maldito
prisioneiro, pensando que ao menos seria morto na guerra, mas a batalha final
já foi ao fim e aqui eu estou. Vivo e respirando. Completamente inútil.
– Se você quer
morrer, eu conheço algumas pessoas que compartilham do desejo. – É minha
resposta.
Pierre me lança
um olhar cortante e revira os olhos quando eu sorrio.
– Kat. Eu falo
sério. – Insiste.
– Você já pensou
que talvez você não seja parte da guerra? – Eu digo. – Que talvez você seja
apenas um bebê nascido no meio dela que deu a sorte de não precisar fazer parte
dela?
– Eu fiz parte
dela. – Pierre lembra. – Esqueceu que eu recebi a missão de matar Ellie? E de
fazer com que Tatiana nascesse? Mas eu pensei que houvesse algo mais. Algo meu a ser feito.
– Algo que você
pudesse fazer para nos ajudar e não
apenas ser um joguete no Inferno. – Eu completo, pensando.
Pierre suspira e
se senta no meu lado na cama.
– Eu queria
acreditar que sou mais seu do que do Inferno. – Ele diz.
– Pierre, você
não é meu. – Respondo. – Ninguém mais é meu.
E não é do Inferno também, é apenas seu.
Ele se concentra
na parte que não deveria:
– Você realmente
acredita nisso? – Pergunta. – Nem Ellie?
– Pierre.
– Você não vai
conseguir escapar dos sentimentos dela para sempre, Kat. – Pierre avisa.
– E você? Vai
conseguir fugir dos de Juliana? – Rebato.
O rosto de Pierre
escurece e a mandíbula trava.
– Ela sequer pode
me tocar.
Sorrio e dou um
tapa em seu braço com a mão dentro do casaco.
– Depois de todas
as coisas impossíveis que nós fizemos, isso vai ser fácil de resolver. – Digo,
o consolando. – Eu só fico feliz de você ter superado a quedinha que tinha em
mim.
– Você sabia
disso? – Pierre pergunta.
– Eu não nasci
ontem. – Dou de ombros, e com um suspiro, completo: – E eu sei que não posso
fugir dos sentimentos de Ellie, só queria uma forma de entender os meus.
Pierre se
surpreende.
– Não é mútuo?
– Eu não sei. –
Respondo com sinceridade. – Eu não senti por quase duzentos anos, como eu vou
entender tudo que estou sentindo em duas semanas?
Pierre se cala e
nós dois ficamos em silêncio no quarto escuro e bagunçado. Eu não tinha me dado
conta de que Pierre é a segunda pessoa que me conhece há mais tempo. Ele
cresceu me conhecendo. Nossos silêncios fazem quase tanto sentido quanto meus
silêncios com Ellie.
– Você acha que
algum de nós merece um final feliz? – Pergunto, como só faria com ele. – Matamos
tantas pessoas, fizéssemos tantas coisas horríveis.
– Katerina, não
existem finais felizes para criaturas eternas, porque não existem finais. – Pierre
recita. – Quem sabe o que vai acontecer amanhã? Ou daqui a cem anos?
– O Destino.
– E você aprendeu
sua lição sobre descobrir o que ele sabe.
Sorrio. Eu queria
abraçar Pierre, mas prefiro não fazer com que ele combusta, então simplesmente
digo:
– Sabe como eu
sei que você faz parte do Exército? Que é mais nosso do que deles, como você
diz? – Pierre olha para mim. Seus olhos são azuis, mas de alguma forma são
olhos Petry. Sempre esqueço que ele também tem meu sangue. Continuo: – Você
escolheu ficar. Sei que você sabe que poderia ir embora, mas está aqui.
Preocupado sobre não merecer seu lugar aqui. A vitória é tão sua quanto nossa,
Pierre.
– Eu sempre vou
ser um demônio, Kat. – Pierre diz, derrotado. – Vocês não estão mais no
Inferno, mas eu estou.
– Você é humano
também. E como humano tem o único poder que foi concedido a eles:
livre-arbítrio. Use-o com sabedoria.
Piatra
Neamţ, Romênia
15
de outubro
Anika
Coloco as mãos
sobre a porta de madeira, como se a conhecesse. Como se pudesse pedir que ela
me dissesse o que está acontecendo lá dentro e pedir que abrisse diante de mim
e ela fizesse isso de bom grado. Claro que eu poderia fazer isso, mas não quero, não ainda.
Olívia toca meu
ombro e Selene aperta meu braço, uma de cada lado, impacientes. Fecho os olhos
para não ver seus pedidos.
A primeira lua
sangrenta veio e foi embora e eu não fiz nada. Fiquei da minha cama, a
observando com os olhos bem abertos, durante toda a noite. Quando ela saiu do
meu campo de visão, me levantei e fui para a sala, acompanhada por um fantasma
conhecido. Continuei a observando da sala, com a janela aberta e o vento de
outono me fazendo tremer. Não tirei os olhos dela e em cada segundo que
passava, eu sabia que poderia fazer. Poderia recusar meus direitos e validar a
linhagem de Persephone e de Selene. Podia fazer de Selene a garota da previsão
de Persephone. Mas não fiz.
Quando o sol
começou a despontar no céu, eu deixei que o Destino falasse comigo e me
permitir ter minha primeira previsão. Quando o dia ficou claro, eu já tinha
empacotado tudo que precisava de importante e estava na sala da casa, diante do
Exército, implorando para que fossem comigo. Algumas das meninas queriam ir,
mas Kat disse que não. Eu não precisava de um Exército para conhecer minha
família. Elas iriam apenas quando eu estivesse pronta. Repeti o pedido e apenas
Olívia aceitou e foi autorizada a vir.
Rowan nos trouxe
em um dos carros de Persephone, já que a dona dele nunca aprendeu a dirigir e
não acha lógico fazer isso em seus últimos três meses de consciência. Eu disse
ao antigo oráculo que não queria sua casa, e que ela podia fazer o que quisesse
com ela. Rowan se mudou para Bucareste para estudar, começará um curso na
faculdade. Disse que estaria pronta para me ensinar o que eu precisasse em
minha nova função. Eu podia ver uma tranquilidade dela, a leveza de ter sido
libertada de sua sina, de seu Destino maior. Algo que Persephone nunca teria. E
nem eu.
Me instalei em um
hotel no centro e por onde passava, bruxas me saudavam e sorriam. Antes que eu
pudesse tomar um banho e planejar minha vida, uma mensagem chegou: O conselho
de bruxas esperava por mim. As bruxas e as videntes mais importantes da cidade me
aguardavam num salão no subsolo do museu. Ou como Sophie me descreveu quando
veio até aqui para pedir às bruxas que nos deixassem ficar, um centro de
convenções para uma família tão antiga quanto a própria cidade.
Minhas mãos pressionam
a madeira com mais força. É de uma árvore de tramazeira, madeira vermelha.
Sábias são as videntes que se cercam de tramazeiras. Bem-aventuradas aquelas
que temem o Destino. Malditas aquelas que tentam ser mais inteligentes que ele.
É a hora. Eu toco
a ametista sobre meu peito e sinto lágrimas se formarem em meus olhos. Eu
preciso de um Exército, sim, Kat. Preciso do meu Exército. O meu clã de
verdade.
Um cristal de
lágrima escorre por minha bochecha quando eu abro a porta. Cada vidente, bruxa,
humano ou qualquer outra criatura lá dentro se levanta e me segue com os olhos.
Eu devo parecer uma bela figura principesca neste momento, com a ferocidade de
uma vampira e o rosto lacrimoso de uma alma amaldiçoada. Pergunto a mim mesma
porque estou fazendo isso, se é o que eu realmente quero. Por que eu estive tão
perto de vencer o Destino e não o fiz?
Caminho até o
púlpito, o altar erguido para Deus sabe quem. Olívia e Selene estão em meu
encalço, como minhas damas de companhia. Como se uma lembrança repentina
tomasse conta do meu ser, eu ajeito a postura, ergo a cabeça e direciono meu
olhar a todos e a ninguém ao mesmo tempo. Olho para elas, as bruxas e videntes,
todas minhas irmãs de sangue e completas desconhecidas como se jurasse todos os
juramentos de vassalaria.
Eu não me lembro
muito bem de minha primeira melhor amiga, a arquiduquesa Marie Valerie da
Áustria. Mas me lembro dos gritos de sua mãe para que eu e ela nos portássemos,
de suas longas sessões de embelezamento, da importância que colocava em sua
coroa. Eu não sou nenhuma Imperatriz Sissi. Da mesma forma que nunca fui Kat,
Ellie ou Deyah. Se, apesar disso, elas querem que eu seja sua líder e princesa,
o mínimo que posso fazer é aceitar o papel com humildade.
Nova
Orleans, Estados Unidos
19
de outubro
Juliana
Adele Mayfair
espera por nós. Ela não é burra. Quando sua filha mais nova foi sequestrada do
hospital de fachada em Paris, ela sabia que apenas sua filha mais velha poderia
ter feito. Quando, meses depois, a antiga casa dos Delacrois foi comprada por
uma benfeitora misteriosa e a notícia circulou na alta sociedade da Louisiana,
ela sabia que apenas uma família teria interesse em adquirir a casa legalmente.
Ela sabia que eu
vinha e sabia que traria um Exército comigo. Por isso, quando uso a chave de
Amelie para entrar na antiga sede dos Apreciadores da Arte do Sangue, eu não faço
pelo elemento da surpresa. Estou apenas indo direto ao ponto.
– Parece vazio,
mas preciso que vocês chequem. Se alguém estiver aqui, não deixem sair. Vou
encontrá-la no andar de cima. – Anuncio.
Kat e Pierre
concordam com um aceno. Tatiana hesita, ela é a pessoa mais fácil de se machucar
entre nós quatro, a menos que fogo esteja envolvido. Digo a ela que nada de
ruim vai acontecer, mas em silêncio me sinto grata por ter distraído Alex e
evitado que ela viesse hoje. Ela não precisava estar aqui. Se depender de mim,
ela nunca mais verá nenhuma das pessoas que a machucaram.
Ando pelos
corredores e pela escada luxuosa com os olhos bem abertos e observando tudo,
mas poderia fazer o caminho de olhos fechados – meu sangue me guia até minha
mãe, pulsando em minhas veias e me lembrando que eu vim dela e a ela precisava
retornar.
Passo pelo antigo
salão de reuniões e percebo que em nenhuma das vezes que vim até aqui, esta
casa esteve tão quieta. Me lembro da última vez que estive aqui, a noite de
nossa festa de despedida, em que Pierre invadiu a casa, completamente bêbado.
Lembro de pensar que nunca mais poderia voltar a Nova Orleans e querer beijá-lo
por me possibilitar isso. Parece uma outra vida, tempo demais atrás. Tudo mudou
na noite da batalha final. Exceto por alguns desejos.
Abro a porta da
sala em que sei que minha mãe está sem cerimônias, mas fico parada na soleira
observando o lado de dentro. A luz clara do meio da tarde entra por cortinas
marrons, deixando a sala – decorada como a sala de estar de muitas das casas em
que servi: móveis caros, chaise longues de
couro e ouro, prateleiras tomadas de souvenires do mundo inteiro e cristaleiras
cheias de baixelas antigas – em um tom de bege. Tão bege quanto o resto da sala
é a imagem da mulher parada de costas para a porta, de frente para uma das
janelas.
Quando a porta é
aberta, uma força sobrenatural vira minha mãe para mim. Ela está vestida em um
roupão de seda, como se tivesse acabado de acordar. Os cabelos cacheados e
volumosos com pouquíssimos fios acinzentados estão derramados sobre seu colo,
delicadamente organizados. Na mão direita cheia de anéis um copo pela metade de
conhaque se pendura. Meu coração se afunda quando eu percebo o quanto pareço
com ela.
– Você parece um
fantasma. – Ela diz, andando até a mesa mais próxima para depositar seu copo.
– Não é a
primeira vez que ouço isso. – É a minha resposta.
Ela vem até mim.
Eu ainda estou na soleira da porta, sem querer entrar. Esta sala me traz
lembranças estranhas, coisas que eu não entendo.
– Você está
usando as joias dos Delacrois. – Ela diz, estendendo a mão para segurar meu
brinco.
Dou um passo para
trás.
– Eu sou uma
Delacrois. – O sorriso reluzente que minha mãe abre, satisfeita consigo mesma
como nunca esteve, me faz acrescentar: – Eu
quis dizer que sou herdeira de Louise.
– Ela se foi. –
Adele acrescenta, exasperada.
– Não aja como se
você não soubesse exatamente o que aconteceu na guerra. – Digo, uma ameaça no
olhar. – Se você tem poder o suficiente no Inferno para controlar um parasita,
o tem para saber sobre a guerra.
– Não fale assim
com sua mãe. – Adele ordena.
– Eu não estou
aqui para falar com a minha mãe. – Eu respondo, a desafiando com tudo que
tenho. – Estou aqui para falar com a criadora dos Apreciadores da Arte do
Sangue e a responsável pela morte de duas das minhas irmãs.
– Alexandra
morreu? – Adele pergunta.
De alguma forma
ela parece menos afetada por isso, do que fingiu ser pela morte de Louise. Me
forço a balançar a cabeça, negando.
– Estou falando
de Charlottie, a garota que o demônio no corpo de Alexandra matou. – Explico. –
E de Louise. O sangue dela também está nas suas mãos e você sabe disso.
– Você não pode
me culpar por cada coisa ruim que aconteceu na sua vida, Juliana. – Adele
zomba. – Você é mais madura que isso.
Explodo. Não
controlo a intensidade da minha raiva quando coloco fogo na manga de seu
roupão. Seus gritos tomam meus ouvidos como se fossem o ruído branco de uma
televisão, eu não estou consciente do horror neles. Um chamado pelo meu nome me
atravessa, mas eu não me movo, deixo ela queimar. De repente eu sinto a mão de
Pierre sobre meu braço. Ele não me toca desde que recebi minha alma de volta
justamente porque suas mãos queimam, como estão fazendo agora. Levanto os olhos
para ele enquanto Kat extingue o fogo em minha mãe.
Os olhos de
Pierre estão profundos e intensos nos meus e suas mãos se fecha com mais força
contra meu pulso. O cheiro de carne queimada toma conta da sala e eu não sei se
ela vem de Pierre ou de minha mãe. Quando Tatiana chega até a comoção, Pierre
limpa a garganta e eu tiro meu pulso de suas mãos com violência.
– Não faça isso.
– Sibilo para Pierre.
Volto a olhar
para minha mãe. Ela parece tão fraca agora, machucada e queimada. Vejo menos
dela em mim e gosto disso, não me arrependo de queimá-la. Sinto tanta raiva
dela. Não fosse por ela Alex não teria sofrido tanto, Charlottie não teria
morrido e Louise...
Malditos sejam dos Frutos de seu Poder. Louise pensou que sabia
o suficiente para tirar o parasita de Alex e fez todo tipo de encantamento que
conhecia. Ficou pior, muito pior. A doença se multiplicou e a alma de Alex tem
feridas abertas por isso. Não vai poder ser salva quando ela morrer a menos que
eu faça algo antes.
Indignos sejam os que Condenam quem Fez. Tivemos longas brigas
sobre isso, discussões complicadas causadas por raiva e ciúmes. Ninguém sabe
disso. Nem Alex. E é por isso que eu me sinto tão culpada e indigna de ter
recebido seus poderes e sua herança.
Da Noite se veste e A Noite se Torna. Louise foi a primeira
a chegar ao Inferno. Quando chegou, uma horda de sombras nos esperava e ela foi
a primeira atacada. Graças ao tratamento de Alex, ela conhecia os pontos fracos
das sombras, dos demônios de segunda categoria. Ela concentrou toda sua energia
em impedir essas almas, ao invés de fugir. Ela precisou abrir mão de sua energia
pela nossa, abrir mão de sua consciência e, finalmente, de sua alma. Era isso
que ser a Árvore significava: Uma fonte de vida, de alimento e poder, e algo
tão facilmente destruído com fogo.
Louise foi a
única de nós que se sacrificou por completo e cuja alma não pode ser salva, por
não existir mais. Se ela não soubesse o que fazer, talvez todas estivéssemos
mortas agora. Ou talvez, como aconteceu no último ataque do Clã Romeno, nós
saíssemos quase ilesas e todas vivas. E mesmo que isso tudo tivesse sido
previsto anos atrás, eu não me importo com os designíos do Destino. Eu me
importo com culpados mais imediatos.
– Por que você
fez tudo isso? – Pergunto, me abaixando para olhar minha mãe, que está sentada
no chão, chorando de dor. – Por que criou os Apreciadores? Por que teve Alex?
Por que nunca esqueceu de mim? Por que não passou pelo luto como uma mãe
normal?
Adele olha para
mim, a surpresa tomando seus olhos e substituindo a dor. As lágrimas que estão
em suas bochechas secam, tamanho é o tempo que ela passa me encarando.
– É isso que você
quer saber? – Ela pergunta, muito tempo depois. Sua voz está rouca pelos
gritos. – Os porquês?
– Se não for
muito incômodo. – Resmungo.
– Você foi a
única coisa que importou para mim, Juliana. – Adele responde. – Durante toda a
minha vida, a única coisa pela qual valeu a pena lutar.
– E você provou
isso me mandando para a casa de bruxas por toda Nova Orleans, para limpar
privadas e servir crianças mimadas. – Zombo.
– Isso fez de
você a mulher que você é. Te deu de presente o dom maravilhoso da vida eterna.
– Você não é
responsável por isso. – Digo, minhas feições se fechando. – Não se dê tanto crédito.
– Sou tão
responsável pelo que você é quanto sou pelas mortes de suas irmãs. – Ela
responde.
Agarro os dois
braços machucados dela, fazendo com que ela grite.
– E quanto a
Alex? – Pergunto. – Por que você fez o que fez com Alex?
– Eu queria que
ela tivesse o que você teve! – Ela grunhe – Eu sabia que o vampirismo acabaria
e eu queria que Alex tivesse o que você teve. A vida eterna, eu fiz os
experimentos e... – Fecho as mãos com mais força em seus braços para avisar que
ela não está me convencendo. – EU QUERIA QUE VOCÊ VOLTASSE. Queria que você
voltasse e imaginei que se machucasse sua irmã, você voltaria e falaria comigo.
Solto os braços
dela e fico com nojo das minhas mãos sujas.
– Eu falei com
todos os membros dos Apreciadores em Paris. – Lembro. – Você sabia onde eu
estava, por que não veio falar comigo?
Ela se coloca de
pé com dificuldade e volta para o interior da sala. Pega o copo de conhaque e o
termina em um gole, para anestesiar sua dor.
– Eu queria que
você voltasse, Juliana. – Diz, quando termina. – Que fosse você a falar comigo.
Queria ver você e ter certeza de que você estava bem. Se eu fosse atrás de você
não seria o mesmo que ver você vir até mim, falar comigo e erguer a voz para
mim.
Me coloco de pé
também e sem olhar para trás, entro na sala.
– Eu estou aqui,
mamãe. – Digo. – Voltei para você e para Nova Orleans. Eu voltei e fiz todas
essas coisas. Você tem o que você desejava. Agora me diga qual o sentido disso
tudo.
Adele Mayfair
lança um olhar na minha direção. O olhar transmite muita coisa, mas não me diz
nada, como se ela se comunicasse em outra língua.
No instante
seguinte, ela quebra o copo na mesa de café e enfia um grande caco de vidro na
própria traqueia.
Bucareste,
Romênia
21
de outubro
Eleanor
Depois de comprar
um caderno azul safira em uma papelaria no centro, eu me vejo escrevendo em um
diário pela primeira vez em mais um século. Faço isso em público, em uma
cafeteria com vista para uma rua de comércio, movimentada a essa hora da tarde.
Não sei exatamente o que estou fazendo aqui, exceto pelo silêncio que habita a
casa onde ainda estou. Me peguei sentindo falta até mesmo de Pierre, então
precisei sair. Ver gente melhoraria meu humor.
Começo a
escrever, sem me decidir em qual língua vou registrar meus pensamentos. A
caneta corre solta, variando entre o inglês dos meus pais, meu francês natal, o
romeno que me cerca, o português brasileiro de Olívia e o alemão firme de Kat.
Pensar nisso faz com que meus registros voem até o dia da batalha final. A
cacofonia de línguas com as quais nos comunicamos nos dias em que passamos na
Antártica – cada uma querendo falar sua língua materna, encontrar um pouco de
familiaridade no caos.
Uma bicicleta
buzina do lado de fora e me faz saltar. Percebo que já tomei sete páginas do
diário novo, me lembrando de como Kat costumava fazer com o seu. Seus registros
eram interrompidos por anos, para em seguida passarem das dezenas de milhares
de palavras em duas semanas. Eu preciso parar de comparar tudo que eu faço a
Kat – de me lembrar dela a cada situação –, mas não consigo.
Deixo a caneta de
lado e pego a garrafa de água que pedi como distração. Observo as pessoas ao
meu redor, envolvidas em sua conversa ou em seu café. Apenas dez pessoas estão
ali, mas a cafeteria é tão pequena que parece cheia. Um jovem distraído lê um
livro enorme enquanto engole grandes goladas de um copo grande café. Uma
família de quatro aproveita um momento de paz enquanto um bebê dorme e uma
menininha de dois anos assiste alguma coisa em um tablet. Uma adolescente
parece entretida demais no seu bolo de chocolate para perceber qualquer outra
coisa. Um senhor de idade lê jornal enquanto toma uma pequena xícara de espresso. Enfim, duas mulheres apenas um
pouco mais velhas que eu, conversam animadamente. De onde estou, só vejo o
rosto de uma e antes mesmo que preste atenção com mais cuidado, eu posso sentir
que a parte mais irritante de ser o Réquiem vai acontecer novamente.
Uma vez ou outra,
eu me pego olhando para alguém e acabo vendo mais do que eu deveria estar
vendo. Quando seus poderes envolvem conhecer corpo e alma, você acaba sabendo
demais e o conhecimento é uma grande maldição. Às vezes eu posso sentir quando
alguém enfrentou um trauma profundo ou está escondendo um grande segredo. Não
consigo entender como, mas eu sei. Em outras vezes, eu olho para o corpo de
alguém e noto um movimento imperceptível de uma bexiga cheia ou até mesmo
células de câncer se formando. É rápido, dura um milésimo de segundo, mas eu
sei o que sei e permanece comigo por muito tempo. Às vezes eu não consigo tirar
os olhos da pessoa por tempo demais e em outras eu tenho rompantes dos sentimentos
transmitidos pela pessoa. E quando você é amaldiçoada a ser controlada pelos
próprios sentimentos...
Quando olho para
a moça de cabelos altos e feições sinceras, eu não sei o que deveria estar
vendo. Ela tem aquela impecável pele negra de Juliana e a confiança de alguém
que consegue assumir o controle de qualquer situação. Não vejo nada, mas não
consigo tirar os olhos, então a examino novamente. Meus olhos finalmente se
ligam aos dela.
Seus olhos são
enormes bolas amendoadas, com repuxos quase imperceptíveis. São castanhos, mas
de um castanho tão profundo que parece vermelho. Eles absorvem a luz a sua
volta, lançando pequenas faíscas rubras. Brilham tanto que chegam a refletir em
sua pele. Só de olhar naqueles olhos eu sei que ela não é romena, mas está em Bucareste
com um objetivo muito específico. Seus olhos se movem lentamente e eu percebo
que a mulher à sua frente é sua melhor amiga e... ex-namorada? Algo aconteceu
que afastou as duas romanticamente, mas sua ligação segue firme. Me pego
desejando saber mais, mas ela pisca e um cílio cai de seus olhos até a mesa.
Sou distraída por esse movimento e acompanho a queda do cílio com atenção.
Quando ele atinge a mesa, eu tenho um lampejo de algo. Um sentimento? Uma
impressão? É rápido demais para mim.
Quando olho
novamente, ela está olhando em minha direção, assim como sua amiga.
Afasto o olhar
rapidamente, encarando minha garrafa de água como se fosse a coisa mais
interessante do mundo. Deus, Ellie, quão
entediada você pode estar?
Volto ao diário,
mas perdi a vontade de escrever. Rabisco distraidamente as formas de um
vestido. Dois minutos depois, resolvo sair para comprar tecidos, evitando o
olhar das duas amigas, mesmo estando muito consciente de sua presença. Respiro
fundo quando volto à rua, evitando olhar para qualquer pessoa. Não quero que
isso aconteça de novo, ou nunca mais. Não me importo em saber demais sobre
estranhos ou ver o que não queria. O problema é a sensação de que estou me
revelando para eles também.
Quando chego à
loja de tecidos sinto uma mão em meus ombros e me viro me preparando para lutar
se for preciso. As duas amigas me esperam do outro lado. A segunda delas tem a
pele da cor dos olhos da primeira e é tão atraente quanto. Seus cabelos são uma
cascata negra e ela tem o tamanho de Anika, talvez um pouco mais alta. De
perto, as duas são tão lindas que chega a doer.
– Eleanor? – A
mais baixa pergunta.
– Como você sabe
meu nome? – Pergunto, em romeno.
– Desculpe, não
entendemos romeno. – A dos olhos hipnotizantes avisa, em inglês com um sotaque
carregado.
Minha mente
treinada precisa de tão pouco para identificar um sotaque que quando eu
respondo, falo em sua língua nativa, o espanhol:
– Eu disse: Como
vocês sabem meu nome?
– Você é o
Réquiem, certo? – Aquela cujos olhos eu evito diz – Todo mundo em nossa cidade
sabe seu nome.
– Meu nome é Siena.
– Diz a menor. – Esta é Rubí. Estamos aqui à sua procura.
– E me
encontraram. – Respondo, querendo escapar daquilo. É tudo que precisava: Além
dos mortos me procurando, os vivos me perseguindo. – O que desejam de mim?
– Podemos ir para
um lugar privado? – Rubí pergunta.
Queria que ela
parasse de falar comigo. Existe um tempo máximo durante o qual eu vou conseguir
evitar seus olhos.
– Não tenho tempo.
– Minto. – Podem falar agora.
– Ellie...
Meu apelido em sua
boca me faz soltar um rosnado. Estou ficando com raiva e perdendo o controle.
Ótimo.
– Tudo bem. – Siena
diz, levantando as mãos em uma oferta de paz. – Se assim você deseja, falaremos
aqui.
– Por favor. – Peço,
tomando coragem e olhar diretamente em seus rostos.
Os olhos de Rubí
me atraem para ela quando são tomados por uma raiva surpreendente e apavorante.
É ela quem fala, me acusando em sua língua materna, muito mais antiga que o
espanhol falado hoje:
– Que diabos você
fez com nossas almas?
Kaylee
– Já chega! –
Sophie grita, atirando uma almofada em meu rosto.
– O quê? – Digo,
confusa.
– Como passar
tempo com você consegue ser mais chato do que passar tempo com Ellie? – Sophie
pergunta. – Estamos falando de Ellie.
Coço o braço
distraidamente e desvio o olhar dela. Estamos deitadas no sofá da sala,
esperando uma chuvinha chata que cai lá fora passar. Fechei os olhos há dois
minutos e Sophie deve ter suspirado umas cinco vezes durante esse tempo.
– Talvez você
devesse ter ido com ela. – Digo.
Sophie revira os
olhos.
– Não seja
ridícula. – Ela despreza a ideia. – Existe um limite no número de vezes que eu
consigo ouvir o nome de Kat e ele foi extrapolado dois dias atrás. Só estou
dizendo que se eu soubesse que ficaria com alguém que nem está aqui de verdade,
eu teria arranjado algo para fazer.
Me encolho ainda
mais no sofá, querendo sumir no estofado confortável.
– Desculpe por
estar pensando nos meus próprios problemas, vossa alteza. – Digo, baixinho.
– O termo correto
para uma condessa é vossa graça, mas eu entendo e perdoo a confusão. – Sophie
sorri, mas dá um pequeno chute no meu joelho com a ponta dos pés. – Se você
quer pensar nos seus problemas, pelo menos os diga em voz alta. Juro que eu
ficarei calada e ouvirei você.
– Não sou de
falar sobre meus problemas, Sophie. – Digo, mas meus olhos viajam tão
rapidamente para o teto que ela entende no mesmo momento.
– Ah sim, seu problema.
Não digo nada e
me recuso a voltar a olhar para Sophie, mas me pergunto se ela também consegue
ouvir Amelie dormindo. Eu consigo ouvir cada respiração dela, cada movimento,
como se eu estivesse dentro daquele banheiro, ao seu lado. A energia mortal
dela toma conta da minha e me enfraquece.
– Bêtises lesbiennes. – Sophie resmunga,
se levantando.
Olho para ela,
surpresa.
– Você sabe que
eu sei francês, certo? – Pergunto.
– Sei. – Sophie
responde. – E sabe mais o que eu sei? Que você vai ficar cada dia mais
deprimida e distante enquanto não resolver isso. A única coisa de que você
costumava ter medo era de si mesma, Kaylee. Não deixe que ela seja outra dessas
coisas.
Ela estica a mão
para mim, para me ajudar a levantar do sofá, mas eu me encolho na direção
contrária. Sophie revira os olhos e se aproxima e quando eu tento novamente me
afastar para o mais longe possível, ela toca minha mão com carinho. Uma onda de
energia me atravessa. É doce e suave como um banho quente. Invade meus ossos,
relaxa meus músculos e me deixa mais desperta. Eu me vejo me esticando e me
espreguiçando quase contra minha vontade.
– Como você...? –
Começo a perguntar.
Sophie dá de
ombros, afastando as mãos das minhas.
– Ellie me
ensinou. – Ela responde. – Aparentemente a mãe dela podia fazer isso, mas ela
não pode. É só uma projeção de sentimentos bons de mim para você. Depressão é
só uma reação química no seu cérebro, não é tão difícil de alterar.
– Você não
deveria me ensinar isso? – Pergunto. – Já que eu sou sua pupila?
– Uma regra bruxa
para você: Nunca ensine aos seus pupilos tudo que você sabe, ao menos que você
queira ser destruída por eles. – É a resposta dela.
Quero rebater,
mas de repente algo vem à minha cabeça.
– Foi isso que
você fez quando Charlottie morreu não foi? – Pergunto, sem pensar muito. – Alterou
a química do cérebro de todo mundo.
Sophie não
responde. Seus olhos ficam tristes por um momento, mas não saem dos meus.
Queria ser metade de quão forte ela é.
– Podemos ir lá
para cima? – Ela pergunta.
Ainda não quero
ir, mas com o ânimo renovado, eu sei que preciso ir. Me coloco de pé e sigo
Sophie até meu quarto. A maçaneta do banheiro está quebrada e queimada como
garantia de que ela não sairá de jeito nenhum.
– Sério, Kaylee? –
Sophie pergunta.
Dou de ombros e
desfaço o feitiço que sela a porta com um pensamento. A volta do feitiço para
mim faz com que um pouco da tristeza volte e eu queira sair correndo, mas
Sophie sente minhas intenções e toca meu ombro, me empurrando para a frente.
Ainda assim, é ela que abre a porta e anuncia para Amelie, indicando a privada
fechada:
– Sente-se.
Eu entro e evito
olhar para Amelie quando Sophie sai para pegar uma cadeira. Olho para todos os
outros aspectos do banheiro: O espelho quebrado, a janela suja de sangue das
diversas tentativas de fuga, os tufos de poeira e cabelo no chão. Respiro fundo
e sinto o fedor de esgoto e excrementos. Me sinto enjoada, mas parte disso se
deve a ter que lidar com Amelie.
Sophie volta e
coloca a cadeira com as costas viradas para a privada, se sentando como um
policial de um filme de comédia.
– Eu vou fazer
uma série de perguntas e resolveremos sua situação hoje. – Ela explica. – Você
conhece Pierre, sabe que as condições de prisioneiros do Exército são muito
mais confortáveis do que as que você tem. Se você está presa aqui hoje é porque
tem desagradado Kaylee e isso não é nada que não possa ser resolvido. Então,
tente agradá-la, ok?
Sinto o peso do
olhar de Amelie em mim e finalmente reúno forças para olhar para ela. Ela está
um caco. Suja, cansada e com os olhos muito fundos. Consigo ver feridas em todo
seu corpo e a blusa parece mais funda em seu peito. Desvio o olhar assim que
vejo esse machucado em especial.
– Por que ela não
me pergunta? – Amelie pergunta.
Sophie ergue a
sobrancelha.
– Eu disse que eu
faço as perguntas. – Ela avisa. – Se você tem algum problema com isso, a gente
sempre pode ir embora ou te transferir para o porão. E você sabe muito bem que não existe porão nessa casa.
Amelie rosna e
encara Sophie com ferocidade no olhar. Sophie responde ao olhar com a mesma
intensidade. Eu me aproximo da pia e me escoro nela para acompanhar o debate.
Sei que ao menos vou me entreter.
– Então, nós não
podemos matar você? – Sophie diz, mudando a entonação no fim da frase para
deixar claro que é uma pergunta.
– Vocês já me
mataram. – Amelie responde.
– Uma evasiva? Sério?
Um suspiro chiado
ressoa pelo banheiro.
– Não. – Amelie
resolve responder. – Vocês não podem me matar. Eu pertenço à Morte agora e se
ela não me aceitar, eu não posso morrer.
– Mas claramente
nós poderíamos machucar você... – Sophie diz, mais para si mesma do que para
ela. – Você sente dor. E ainda tem sentimentos.
– Isso não são
perguntas. – Amelie diz.
– Eu sei. –
Sophie responde. – Só estou pensando em como você não veio em busca do Exército
para matar Kaylee, apenas o resto de nós.
Isso aconteceu
mais rápido do que eu pensava.
– Você não tem
como saber disso. – Amelie rebate.
– Sim, eu tenho. –
Sophie diz. – Você estava com o Exército quando o Clã Romeno descobriu como
matar o Réquiem e sabia como matar Kaylee. E você é um soldado, sabia que matar
Louise e em seguida matar Kaylee era a opção mais lógica. Ao invés disso, você levou
o Clã para distrair todas nós enquanto tentava recrutar Kaylee para a Morte.
Amelie encara
Sophie sem mover um músculo do corpo. Duvido até que respire. É claro que
Sophie estava certa e eu sabia muito bem disso. Dias e dias sem querer sair do
meu quarto pensando sobre o ataque me fizeram chegar à mesma conclusão.
– Volte às
perguntas, Sophie. – Digo, de onde estou.
Sophie me lança
um olhar surpreso e dá de ombros distraidamente, antes de perguntar:
– De que forma
você ama Kaylee?
– Sophie! –
Grito.
– Pelo amor de
Deus. – Sophie diz, revirando os olhos. – Eu não sou cega. E sinceramente,
somos um Exército de treze jovens mulheres. Eu estou surpresa por eu ser hétero. Kaylee, se os seus
sentimentos por Amelie são mais do que fraternos, não tem porque essa ser uma
das coisas que te fazem se odiar.
– Ela está certa,
Kaylee? – Ouço a voz de Amelie dizer.
A voz está
diferente, não é a mesma voz raivosa que eu ouvi gritar nos últimos meses e nem
a voz desafiante com a qual ela respondia a Sophie. É a voz de Amelie, a minha
Amelie, a Amelie de antes de eu matá-la.
– A pergunta foi
para você. – É tudo que eu respondo.
Amelie volta a
olhar para Sophie, para quem lança faíscas de ódio.
– Eu amo a Kaylee
da mesma forma que ela me ama. – É sua resposta. – Ou que eu achava que amava,
antes que ela me matasse.
– Ah, por favor.
Não se faça de vítima. – Sophie revira os olhos – Ela te amava tanto quanto
amava a própria alma, por isso te sacrificou.
– Ela nem tinha
uma alma.
– Touché. – Sophie responde. – Ainda
assim, você fez com que uma vampira criasse uma ligação forte o suficiente com
você quando ela nem podia sentir. Romanticamente falando, você foi a única
pessoa a conseguir essa proeza com alguém do Exército, não estando ligada a nós
por sangue.
– Seu ponto? –
Amelie pergunta, travando a mandíbula em seguida.
Sophie lança um
olhar para mim antes de dizer:
– Por que você
não está fazendo o mínimo esforço para recuperar sua ligação com Kaylee? E não
me diga que é por causa da Morte, porque esse é um péssimo motivo.
Amelie cruza os
braços sobre o peito. Sua camiseta se afunda ainda mais na pele e mesmo sendo
menos sensível ao cheiro de sangue agora, eu sei que sangue fresco sai da
ferida em seu peito. Será que ela realmente tem um buraco onde ficava seu
coração?
– O único motivo
pelo qual eu estou diante de vocês agora é a Morte ter me trazido de volta. –
Amelie diz. – Ela me fez renascer para ser um soldado, sua guerreira sem
coração. Eu deveria convencer Kaylee a se juntar a ela e destruir a guerra por
dentro. Usar os sentimentos da nova bruxa do Exército. E até onde eu sei a guerra
ainda não terminou.
– Você ainda está
tentando me recrutar? Para a Morte? – Pergunto antes de perceber que falei.
– Você não
declarará qual seu lado até a batalha. – É o que Amelie responde.
– Eu já fiz essa
escolha, Amelie. Terminou com a sua Morte. – Lembro a ela.
– Então por que
você me mantém presa aqui? – Ela pergunta. – Não pode ser apenas por medo de
que eu mate você. Sua alma está bem guardada.
Não respondo.
Sophie enfia as duas mãos no cabelo, uma de cada lado do rosto, pensando
enquanto respira fundo.
– É sobre isso
que a batalha com a Morte será? – Ela pergunta. – Sobre Kaylee fazendo uma
escolha entre suas irmãs e a mulher que ela ama?
– Sophie... –
Começo a resmungar.
– Pergunte à sua
vidente. – Amelie me corta.
Eu e Sophie nos
entreolhamos.
– Ela não está...
– Sophie busca as palavras certas – Disponível para previsões no momento.
Amelie ergue a
sobrancelha e olha para nós duas antes de dizer:
– A batalha com a
Morte será sobe mostrar que vocês são fortes o suficiente e merecedoras o
suficiente para viver para sempre. O Inferno já derrubou cinco das mais fracas,
a Morte levará a última.
– Mas eu já venci
à Morte. – Digo. – Nesse sentido, ao menos.
– Você tem tanta
sorte. – Amelie resmunga – Premiada com a vida eterna neste novo obscuro e
doentio.
Sophie se coloca
de pé.
– É o suficiente
por hoje. – Ela diz. – Tenho uma proposta para você.
– Vocês negociam
com prisioneiros agora? – Amelie pergunta.
– Kaylee... – Sophie
chama, a ignorando. – Ela merece um acordo?
– Faça o que
quiser com ela. – Respondo, dando de ombros.
Sophie sorri
cruelmente.
– Essa frase é
cada palavra que eu queria ouvir. – Ela se aproxima de Amelie – Digamos que eu
encontre uma forma de curar essa ferida em seu peito que está prestes a me
deixar maluca e te deixe dormir em um quarto confortável esta noite... – Ela
deixa no ar. Amelie não demonstra fraqueza ou intenção de aceitar, então ela
continua – Você contaria o que sabe sobre os planos da Morte?
– E colocar a
minha existência em risco? – Amelie pergunta.
– Se ela matar
você é uma vantagem para nós. – Sophie diz. – Ela não fará isso. Se fizer, não
é como se eu me importasse.
– Kaylee se
importaria.
Eu bufo, cansada
de ser jogada nisso com tanta frequência.
– É um acordo,
ninguém está obrigando você a aceitar. – Digo.
– Exato. – Sophie
concorda – Eu posso dar a você mais algumas horas aqui dentro. Ou, eu posso
ligar para Ellie e pedir que ela traga sopa e pão de Bucareste.
Amelie se
surpreende.
– Você amoleceu
desde que sua irmã morreu. – Ela diz, de sobrancelha erguida.
– Você está
acabando com a minha paciência. – Sophie rebate.
– O quarto mais
distante daqui possível. – Ela pede. – E sem tranca no quarto. Coloque um
feitiço na casa ou um guarda-costas, mas eu quero ao menos poder sair do
quarto.
– Tudo bem. –
Sophie concorda, abrindo espaço para Amelie deixar o quarto – Eu estou
realmente me sentindo mais piedosa hoje. Porém, você vai contar tudo para
Ellie, Kaylee e eu. Ainda esta noite.
– Como quiser,
vossa alteza. – Amelie resmunga, saindo de sua prisão improvisada.
– É vossa graça.
– Corrijo, seguindo as duas para fora do banheiro com um suspiro de alívio.
Piatra
Neamţ, Romênia
25
de outubro
Olívia
Estou quase
pegando o sono quando vejo o grupo de pessoas se aproximar da casa. Estou tão
cansada e a luz do sol é tão acolhedora que eu nem me dou conta do que
significa um grupo tão grande se dirigindo na direção da porta. Apenas quando o
som da campainha ressoa no andar de baixo, eu me dou conta de que porque fui
para a janela do meu quarto em primeiro lugar.
Quando chego à
entrada, Anika já abriu a porta e está abraçando Ellie animadamente. A sala
está em fuzuê de abraços e saudações, mais de quinze pessoas se entrelaçando.
Corro para fazer o mesmo com as outras recém-chegadas. Quando chego a Juliana,
me surpreendo com sua altura.
– Você está... Diferente. – Digo, dentro do abraço
dela.
Em resposta,
Juliana se afasta e chuta os saltos do pé.
– Nova Orleans
não vai aceitar uma nova rainha se ela parecer ter treze anos. – Ela diz, com
um suspiro.
Me afasto e vou
para o próximo abraço, um abraço efusivo de Tatiana. Quando termino de saudar a
todas e lançar um aceno para Pierre, eu percebo duas visitantes desconhecidas
atrás de Ellie. É por causa delas que a sala cai em um silêncio completo por
alguns segundos. Uma delas, a mais alta, é negra com lindos cabelos crespos que
se agigantam sobre ela e o par de lábios mais bonito que eu já vi. São os
olhos, intensos, ferozes e quase vermelhos de tão castanhos que chamam mais
atenção.
– Essas são Rubí
– Ellie começa a apresentar, em espanhol, apresentando a mais alta. – E Siena.
Finalmente olho
para a mais baixa. Ela tem traços indígenas e cabelos tão lisos quanto os de
Kaylee. Elas inclusive se parecem um pouco e eu olho para Kaylee para confirmar
a observação, apenas para me surpreender quando percebo Amelie ali, parada ao
lado dela.
– Vocês têm muito
o que contar. – É a única resposta que tenho.
Uma respiração
profunda generalizada corre a sala, confirmando o que eu disse. Anika corre
para instalar todas em seus lugares, a boa anfitriã que é. Eu a ajudo nisso e
aos poucos a casa se organiza. Quase duas horas depois da chegada de todas, nós
nos trancamos espalhadas em meu quarto, apenas as oito restantes do Exército,
prontas para colocar todas as informações em dia.
– Comece você,
Anika. – Kat diz – Por que nos chamou aqui?
Ah, isso. Anika
se sente ainda mais incomodada pela situação do que eu. Ela enfia as mãos nos
bolsos do vestido dourado que usa, tira os sapatos, os calça novamente, toca a
coroa de flores no cabelo e finalmente a arranca, começando a destruir as flores,
quando diz:
– Algo estranho
aconteceu há dois dias. Eu mandei um demônio de volta para o Inferno com apenas
uma palavra.
– Exorcismo não tem nada de incomum. –
Sophie comenta.
– Sophie, a
palavra foi Valentina. – Anika conta.
Nos entreolhamos
em silêncio, as meninas completamente confusas.
– Conte mais. –
Ellie pede.
Anika suspira,
uma flor vermelha perdendo as pétalas em sua mão.
– Uma família
trouxe um senhor para mim. – Ela começa. – Ele havia morrido na noite do dia 30
de setembro, mas voltou minutos depois. Não era ele de verdade. Um demônio
assumiu seu corpo e vindo da guerra, ele não parava de falar no Exército.
Então, a família não o levou em um exorcista normal, o trouxe para mim. Eu
tentei a coisas normais, mas nada adiantava. Pensei que talvez não fosse um
demônio, fosse uma das almas que Valentina tirou do Inferno, mas quando me virei
para Olívia para dizer isso, o demônio deixou o corpo violentamente assim que
ouviu o nome.
O quarto cai em
silêncio. Eu pego uma almofada que está ao meu lado e abraço, esperando por
algo.
– Ao menos temos
certeza de que foi um demônio? – Kaylee pergunta, olhando para mim.
Eu deveria saber
esse tipo de coisa, mas não é tão fácil.
– Eu não sei. –
Respondo. – Pode ter sido. Ou pode ter sio outra criatura que escapou do
Inferno naquela noite. Ou uma das almas de Valentina.
– Não foi uma das
almas de Valentina. – Kat diz, decidida.
– Como você tem
tanta certeza? – Pergunto.
Sophie, Kaylee e
Kat olham para Ellie, que solta um gemido antes de explicar:
– Eu sei onde as
almas que Valentina libertou estão. As que não voltaram para o controle do
corpo de seus donos, naturalmente.
Anika e eu nos inclinamos
na direção de Ellie, atraídas por ela.
– Porto Williams.
– Ellie diz, simplesmente.
– A cidade no sul
do Chile onde aconteceram eventos sobrenaturais? – Juliana pergunta.
Ellie concorda
com a cabeça.
– A cidade
habitada mais meridional do mundo. – Ela começa. – Existe uma montanha lá, onde
dizem existir um buraco que leva direto para o Inferno. Foi onde as almas
saíram.
O queixo de Anika
cai.
– Então elas
estão lá? – Ela diz. – Simplesmente assombrando todo mundo?
Ellie coloca as
duas mãos nas bochechas.
– É esse o
problema. – Ellie explica. – Elas estão lá e fora do Inferno, mas não estão
livres. Sabem Rubí e Siena? Elas são ex-vampiras chilenas, nascidas em Porto
Williams que não queriam receber a alma de volta, mas estariam satisfeitas com
o seu destino não fosse por um pequeno problema: Elas agora carregam a mesma
maldição que eu.
– Você vai ter
que rebobinar um pouco e explicar isso direito. – Tatiana reclama.
Kat assume o
papel de Ellie nesse sentido:
– A lenda diz que
o primeiro Réquiem nasceu ao cair em um buraco que levava direto ao Inferno. Ao
cair, ela ficou presa pelo tornozelo e foi puxada de volta por ele. Ela recebeu
a chave do Inferno porque ninguém vai ao Inferno e volta da mesma forma.
Eu olho em volta,
sabendo que é verdade. Juliana voltou bruxa. Eu tenho o Toque dos Céus. Tatiana
não pode mais ser queimada. Ellie é o Réquiem.
– Aparentemente,
isso tudo aconteceu em Porto Williams. – Ellie diz – Que então se tornou
habitada. Graças a isso, sempre que um Réquiem surge, a alma de todos que
nasceram ou foram formados na cidade enquanto ela está viva, pertencem a ela.
Estão ligados a ela.
– Todas as almas
em Porto Williams estão amaldiçoadas. – Anika solta.
– Todas as
nascidas nos últimos treze meses ou as que foram para lá nos últimos treze
meses. – Ellie concorda. – Isso inclui as almas que saíram do Inferno.
– Por isso os
olhos de Rubí são tão estranhos. – Eu resmungo.
Ellie ergue a
sobrancelha, mas não diz nada.
– Vocês fazem
minhas novidades não parecerem nada. – Juliana comenta, se jogando em minha
cama.
– Isso significa
que você pode salvar elas? Mandá-las para a paz? As almas de Valentina, Miranda
e Charlottie? – Anika pergunta, quase de uma vez só.
– Em teoria, não,
mas com a ajuda de Olívia, sim. – Ellie diz. – O problema é que não posso fazer
enquanto eu estiver amaldiçoada. Eu ainda pertenço ao Inferno nesse sentido.
– Então
precisamos acabar com sua maldição. – Anika completa, se colocando de pé.
Como se essa
frase invocasse o Inferno, a porta – que estava trancada – abre com vontade,
todas as partes da fechadura se quebrando. As que estavam mais perto da porta
se afastam enquanto um Pierre claramente possuído entra no quarto.
– Você só pode
estar de brincadeira comigo. – Kat diz se colocando de pé. – O que foi agora?
– Ora, Katerina.
Eu trago boas notícias. – Uma voz rouca e deformada sai da boca de Pierre. Seus
olhos estão febris e hipnotizados.
Por alguns
segundos, eu penso em como algo assim poderia ter acontecido facilmente durante
a guerra, mas não aconteceu. O pensamento vai embora tão rapidamente quanto
veio.
– Não há como
boas notícias virem do Inferno, Abadom. – Kat anuncia.
– Eu vim propor
um acordo. – O demônio responde. – Qualquer coisa que você quiser, qualquer
pedido que desejar fazer, apenas por uma coisa em troca.
– Minha resposta
é não, assim como a das meninas. – Kat responde. – Não desejamos nada do
Inferno.
– Nem mesmo a
liberação da maldição de Ellie? A liberdade de Pierre? – O silêncio recai sobre
a sala novamente. Nos entreolhamos sem dizer nada. A resposta pairando diante
de nós. – Foi o que eu pensei.
– O que o Inferno
deseja em troca disso tudo? – Kat pergunta, mais baixo.
– Que o Exército
de Kat feche a ruptura. – Abadom responde. – Vocês são as únicas que podem
fazer isso. Até a maior lua sangrenta.
– Isso é quando a
batalha contra a Morte vai acontecer! – Anika anuncia.
Mas o demônio já
deixou o corpo de Pierre sem dizer mais nada. Enquanto o corpo sem vida cai no
chão, Kat xinga em três línguas diferentes, reclamando de como ela terá que
retornar o contato. Em seguida, ela olha para nós.
Em silêncio,
tocamos nossas pedras. Somos um Exército mais uma vez.
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