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Ingrid Pitt como Carmilla em The Vampire Lovers (1970) |
Há exatos 10 anos, eu cheguei em casa depois da escola e fui direto procurar um livro, de domínio público, para baixar no computador. Isso era um pouco incomum, não só porque eu não tinha o costume de ler livro em PDF, eu tinha muito livro para ler me esperando. Durante a aula naquele dia, por exemplo, eu estava lendo pela segunda vez "O Guia de Vampiros para Mulheres" quando me esbarrei com um título que não tinha notado na primeira leitura. Carmilla estava erroneamente listado como a primeira história fictícia em prosa com uma vampira no papel principal — o que resultou no título da minha primeira resenha do livro. Eu pesquisei o livro no celular, meu primeiro smartphone, o que me levou a descobrir que ele era o primeiro livro com uma vampira lésbica — o que para a Giulia de 15 anos transformava ele em leitura obrigatória e imediata.
Não só eu estava questionando minha sexualidade na época (fato que eu jamais admitiria àquela altura) e lendo tudo levemente gay que aparecia, eu também estava entrando naquela que seria minha terceira ou quarta hiperfixação por vampiros, o que mais tarde naquele ano resultou em As Crônicas de Kat. Eu também estava na pior fase da minha depressão e evadindo a escola, ignorando minhas atividades. É claro que eu não sabia na época, mas também tinha um TDAH não-diagnosticado no meio que me fazia buscar hiperfixações e dopamina constantemente. Carmilla veio para suprir todas as necessidades e curar todas as feridas.
Quer dizer, imagina ter 15 anos, ser uma bomba de hormônio ambulante, com somente 3 dos meus 5 transtornos psicológicos diagnosticados, questionando minha sexualidade e minha fé... e encontrar uma novela com uma vampira lésbica que diz coisas como "But to die as lovers may — to die together, so that they may live together" (Mas, para morrer como as amantes devem morrer, morrer juntas para que possam viver juntas)?
Eu me sentei diante do computador naquela tarde de 2013 e consumi Carmilla de uma vez só (e estamos realmente falando de um computador, não notebook). Aquele primeiro impulso de hiperfoco simplesmente se tornou minha personalidade pelos 10 anos seguintes — a ponto de, no fim do ano passado mesmo, minha amiga ter me dado uma nova edição do livro (e eu tenho sete) e ter dito que é tão a minha cara que é quase como se tivesse meu nome na capa.
Nessa última década, eu li Carmilla inteiro um total de 18 vezes. Comecei e deixei de lado mais uma outra dezena de vezes. Volta e meia, eu checo trechos para reler ou os cito e repito como uma pessoa normal citaria trechos da Bíblia (o que, para ser bem justa eu também faço) (e para ser mais justa ainda, a própria coletânea onde Carmilla foi publicado pela primeira vez é uma citação bíblica 1º Coríntios 13:12a "For now we see through a glass, darkly" ou "Porque, agora, vemos por espelho em enigma"). Menciono acontecimentos citando capítulos. E s ei de fatos como o que o nome da Laura é citado pela primeira vez no capítulo 9, bem depois do primeiro beijo que Carmilla dá em Laura. O que diz muito sobre o processo de construção do Le Fanu, já que Carmilla foi originalmente uma novela de folhetim, publicada em capítulos na revista The Dark Blue, entre 1871 e 1872.
Eu também tenho teorias de fã e ideias sobre como eu escrevia a história diferente. Opiniões fortes que renderam brigas demais nessa última década. A raiva que tinha aos 16 anos quando Carmilla era lido como uma história de amor, por exemplo, ao invés do terror monstro x presa que realmente é. Minhas crenças do que fazia uma adaptação de Carmilla boa ou não renderam mais brigas do que consigo me lembrar. Mas o problema mais recente foi aquele viral do Twitter, dizendo que o livro é só queerbaiting, que o tuiteiro depois chamou de bait para que as pessoas ficassem com raiva e fizessem viralizar. A parte engraçada dessa situação específica é que 10 anos atrás, eu nunca imaginaria que meu livro preferido e incrivelmente obscuro seria, hoje, popular o suficiente para que qualquer imbecil no Twitter fale merda sobre ele sabendo que vai viralizar porque as pessoas gostam e defendem ele.
O problema que eu tinha para fazer as pessoas lerem Carmilla 10 anos atrás era tão sério, que até mesmo a pessoa a quem eu hoje me refiro como "meu primeiro amor" me traiu nesse sentido. Ela não confiou na minha indicação, mas um ano depois quando a websérie Carmilla (uma adaptação da KindaTV) saiu, ela se tornou uma das maiores fãs que a história já teve. E eu, à época, odiava essa adaptação porque parecia uma reescrita da história que para mim não precisava disso. Eu não gostava de adaptações que transformavam Carmilla em uma história de amor, porque eu precisava de mais histórias com protagonistas queer que não fossem histórias de amor — talvez um sinal da minha arromanticidade. Hoje, minha opinião é um pouco mais leve. Desde que seja bem feito e feito por alguém que tem o mínimo de respeito pelo texto original, como é Carmilla & Laura da S. D Simper, eu consigo me apaixonar pelas adaptações românticas da história.
Em 10 anos, eu assisti meu livro preferido ir de um clássico obscuro, para um livro que não para de ser re-traduzido e re-publicado no Brasil. As editoras estão amando publicar novas versões em capa dura de livros em domínio público e como fã, eu só reclamo dos preços. E talvez do fato de que quando seu livro preferido é exposto a um público maior, você é forçada a ver um número maior de opiniões — e se tem um negócio que eu nunca mais queria ler, é opiniões.
Para mim, o crescimento de Carmilla nos corações das pessoas na última década tem muito a ver com tudo que ela é. Apesar de avanços anteriores, eu sinto que nessa última década, a identidade e os direitos das pessoas LGBTQIA+ foram e estão sendo colocados em prova constante na última década. No momento, a transfobia corre tão solta que eu não lembro a última vez que eu entrei na internet e não vi uma notícia negativa sobre o assunto. Refúgios, assim, se tornam necessários.
E onde entra Carmilla no meio disso tudo? Por que nós, como pessoas queer, nos identificamos tanto com uma personagem que é demonizada, perseguida e tratada como bicho? Por que, mesmo que os personagens expliquem que ela é tudo isso, sim, pois não é humana, a morte dela ainda nos eviscera de uma forma tão violenta? Por que queremos saber mais sobre a condessa Mircalla, entender quem ela foi antes de morrer, entender porque ela chegou onde chegou?
Eu gosto de terror — em especial terror gótico, que fala sobre emoção, transtornos mentais e bem diretamente, loucura — porque ele dá aos meus medos um ponto final. Quando a história termina, meu medo do que acontece na história termina com ela. Eu posso simplesmente fechar o livro e nunca mais passar pela experiência de novo. E ainda assim, eu me pego voltando a Carmilla, várias e várias vezes. O medo não termina com a morte dela, este é o fato que causa o medo. Sua morte traz uma sensação de perda que causa quase uma saudade, uma dor inexplicável na boca do estômago.
Então, eu não só volto para o momento onde Carmilla está viva, cruel e perigosa, mas volto para adaptações onde ela mata seus algozes, mesmo que acabe morrendo com eles. Para adaptações onde ela conta a própria história, onde ela vive um momento a mais que seja. Para as adaptações onde Carmilla é protagonista, onde Laura não tem tanto poder narrativo. Ou adaptações onde Laura é mais que uma simples vítima.
Mas por mais que o final cause sentimentos complexos, Carmilla não seria sequer publicado em 1872 se sua história não terminasse como termina. Era necessário que ela existisse exatamente como existiu para que todas as outras Carmillas, em suas mais de 200 adaptações, existissem. No capítulo 8, Carmilla refere-se à sua primeira morte, aquela que a transformou em vampiro, como "um amor cruel — um estranho amor, que teria tomado a minha vida. O amor tem seus sacrifícios. Nenhum sacrifício sem sangue.". E talvez seja isso também que sua segunda morte seja, um sacrifício. Para que milhares de pessoas como ela se encontrem, vivam e se multipliquem. A seguindo até a morte, seja com amor ou com ódio.
G.
P.S.: Fiz um guia lá na Amazon com as traduções de Carmilla para o português. Algumas estão disponíveis sem custo adicional no KindleUnlimited. O livro como um todo é de domínio público, por isso é possível encontrá-lo legalmente e de graça na internet.
2 Comentários
Eu li Carmilla pela primeira vez em 2020. Quando por um acaso encontrei pela internet a primeira história de uma vampira lésbica. Cheguei até mesmo procurar o filme para ver, mas não me atraiu tanto quanto o livro. Lendo seu relato de como conheceu a história, enredo e a personagem, senti uma nostalgia e saudade por reler a obra. Tenho ela baixada em meu Kindle e guardada para ler futuramente, quem sabe...
ResponderExcluirKarolini Barbara
Fico feliz que minha descrição tenha te feito pensar em reler. A gente acaba criando uma ligação maior e diferente a cada leitura. Espero que isso aconteça com você!
ExcluirTem alguns vários filmes adaptados desse livro. Não sou grande fã dos de 2018 e 2019, mas gosto do de 1971 e curti o de 1989. Sempre vale a pena procurar por um que combine mais contigo.