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Com certa frequência, a Netflix lança algo que eu resolvo que preciso assistir assim que sair para escapar do Discurso™. Vocês conhecem o Discurso™. A conversa que toma as redes sociais quando um novo assunto popular entra no radar e parece que todo mundo tem a mesma opinião, o que influencia a sua opinião, até que uma pessoa diz "eu acho que essa opinião é burra" e aí o discurso muda, com todo mundo de repente resolvendo que a opinião, é sim, burra. Se você demora um pouco para assistir algo em 2023, você acaba sendo infectado pelo Discurso™, seja concordando com ele sem ter assistido ou resolvendo que é uma opinião burra um pouco cedo demais.
Assim que a Netflix anunciou Baby J — o especial de retorno do comediante John Mulaney — eu sabia que precisava assistir antes do Discurso começar. Desde que a notícia de que o comediante estava em reabilitação saiu, a internet (ou o pedaço dela que se importa) foi tomada de Discurso. Quando a notícia oficial que ele estava se divorciando da esposa saiu, piorou muito. O que realmente derrubou completamente a popularidade do comediante foi o nascimento do filho de Mulaney com a atriz Olivia Munn, poucos meses depois da notícia do divórcio. As reações dramáticas que volta e meia retornam à timeline me fazem pensar constantemente "Vocês não conhecem nenhuma dessas pessoas. Como é possível ter opiniões tão fortes sobre a vida delas?"
Eu acho que também é importante pontuar meu passado com John Mulaney. Em algum momento, os especiais de comédia deles se tornaram filmes de conforto para mim. Eu assisti "The Comeback Kid" e "Kid Gorgeous at Radio City" na Netflix tantas vezes que eventualmente eu tive que ir atrás — e COMPRAR — de estreia que ele fez com o Comedy Central "New in Town" e assistir mais um milhão de vezes. Eu nunca cheguei a assistir o último programa que ele fez na Netflix "The Sack Lunch Bunch" que tem um tom mais infantil, mas se você assistisse qualquer um dos outros três especiais comigo, me veria completando e repetindo piadas, rindo como se fosse a primeira vez.
Apesar disso, houve uma ação de John que afetou minha opinião pessoal sobre ele. Nada relacionado a sua vida pessoal: o convite a um comediante conhecido por fazer piadas transfóbicas na Netflix, cuja reputação chegou a gerar uma pequena paralização dos trabalhadores ano passado. Esse comediante em particular não merece ser citado, mas o mesmo foi convidado para abrir um evento de Mulaney junto à Netflix, escolha defendida por ele em um dos piores momentos políticos para pessoas trans. Essa escolha, política, manchou a imagem de "conforto" que eu tinha em relação ao comediante. Apesar dele estar longe de ser a pessoa mais "problemática" que eu já continuei consumindo, é difícil ignorar escolhas relacionadas a dinheiro e à vida de minorias.
Por que, então, eu estava à postos às 9 da manhã para assistir Baby J na última terça-feira? A promessa de contar tudo que aconteceu, os bastidores dos fatos que alimentaram o Discurso, que foi um dos principais pontos de marketing do especial, era deliciosa demais para ser ignorada. É claro que eu queria saber o que realmente aconteceu. Todo mundo queria saber o que realmente aconteceu. E talvez seja por isso que algumas resenhas estão tão furiosas pelo fato de que ele não conta tanto quanto uma parte da audiência queria.
Ironicamente, tendo amigos que foram a um show de Mulaney depois da sua saída da reabilitação, minhas expectativas eram de rir menos e ficar um pouco mais surpresa. As piadas, callbacks e o humor ácido e autocrítico de Mulaney, porém, me pegaram de surpresa e me fizeram cair na gargalhada logo no começo. O especial é mais sóbrio — sem trocadilhos — que os especiais anteriores, o que o próprio comediante menciona no começo falando que seria impossível ser a mesma versão energética de si mesmo depois dos últimos dois anos. Do meu ponto de vista, o tom mais seco não veio só da seriedade dos temas tratados, mas também do fato de que anteriormente, quando falava sobre o uso de drogas e ações negativas que afetaram as pessoas ao seu redor, seu tom energético trazia a sensação de que a situação não era tão séria quanto parecia.
E é sobre isso que o especial realmente é. Sobriedade, drogas e como as ações deles afetaram os outros. No meio disso tudo, Mulaney deixa de fora o que as pessoas mais queriam saber: não menciona seu divórcio, seu novo relacionamento e nem detalhes sobre o nascimento do filho. Mas são essas omissões, que causaram fúria e revolta em parte da audiência, que fazem com que certa admiração cresça em mim. Em não falar de nada além de si mesmo, o comediante só confirma que ele tem controle sobre a própria história e que o vício, a doença, é o vilão que todo mundo tentava encontrar nos vídeos do TikTok. Mulaney não fala sobre a separação, mas mostra de várias formas, quão impossível foi conviver com ele naqueles momentos. Ele fala sobre os amigos que interviram no seu vicio como os heróis, não idealiza seu novo relacionamento ou seu filho, que só é citado para mostrar a grande diferença entre sua vida agora e a vida dois anos atrás.
Também é importante notar que não se passaram dois meses entre a saída de Mulaney da reabilitação e o começo da sua turnê que levou a este especial, o que em si já deixa claro que o texto começou a ser trabalhado nos 60 dias que passou em tratamento. Ou seja, talvez o comediante não tenha tido tempo de escrever sobre os temas que as pessoas mais queriam ouvir. Talvez eles ainda estejam próximos demais de seu acontecimento para serem transformados em arte. A questão é que Baby J não atravessa um limite muito claro: o de envolver pessoas inocentes em uma história cujo vilão reside dentro do narrador.
Ao se contar uma história, callback é fazer referência a algo que já aconteceu ou já foi dito. Baby J é cheio de callbacks aos especiais anteriores. Piadas e mudanças de entonação que retornam ao fato de que John Mulaney construiu um legado em cima de uma imagem muito específica de auto depreciação, personagens engraçados e quase irreais, humor ácido e metáforas ridículas. Mas o maior callback de todos é o lembrete sutil e extremamente leve de que John nunca disse que era legal, saudável ou gentil. A imagem dele que as pessoas que não o conhecem têm, não é responsabilidade dele.
A piada mais popular e mais real do especial, então, faz todo sentido possível. Com uma expressão e postura reconhecível e marca registrada John diz para a plateia que a chave para que ele parasse de se importar com as opiniões dos outros foi perceber que nada do que fizerem com ele pode ser pior do que ele faz consigo mesmo e encerra "O que você vai fazer? Cancelar John Mulaney? Eu vou matá-lo. Eu já quase fiz isso."
1 Comentários
Eu deveria saber quem é John? Deveria! Mas não o conhecia, na verdade nem sequer cheguei a cogitar a sua existência.
ResponderExcluirOs únicos especiais de comédias que assisti foram os brasileiros, em específico, os do Whinderson Nunes. (que inclusive gosto bastante)
Prefiro as piadas saudáveis e que não vão machucar ninguém, mas a última frase com que encerra o seu texto é de impactar.
Não dá para acreditar que um comediante tenha feito tal comentário sobre si mesmo. Mas a opinião contida dentro é muito relevante.
Karolini Barbara